Vista antes como conservadora e burguesa, ela pode criar sensibilidades criativas e antissitêmicas — e ser chave para o bem viver e a cooperação. Diante de um mundo gris, é preciso novos vínculos afetivos e eróticos; nem repressores, nem coisificante
“Povos felizes não têm história”
A felicidade tem uma fama muito ruim hoje para o pensamento crítico. É considerada uma ilusão, mais uma injunção obrigatória, um sonho trapaceiro de classe média.
Posto no Facebook uma frase de Pasolini a favor da felicidade e logo alguém responde: “Pasolini capacitista!” A felicidade cancelada.
No entanto, a relação entre felicidade e revolução tem sido muito próxima até recentemente. Um ligava seu destino à outra, como Pasolini chegou a dizer justamente na citação respondida.
A felicidade talvez tenha sido a forma europeia e ocidental de discutir o que hoje, na América Latina mais influenciada por tradições indígenas, chama-se “o bom viver” ou “o viver saboroso” (nas belas palavras de Francia Márquez). Ou seja, discutir a própria definição de vida boa.
Os grupos subalternos tinham suas próprias imagens de felicidade, a partir das quais disputavam com a concepção hegemônica. Imagens não só do futuro, de uma felicidade possível depois ou mais tarde, mas aqui e agora, relativa à experiências vividas no presente.
Por acaso esse potencial se esgotou? Será que a ideia de felicidade é algo agora apenas a ser desmontado, denunciado e desconstruído? Não existem imagens de plenitude e alegria fora das concepções hegemônicas? As centelhas de felicidade subversiva se apagaram para sempre?
Felicidade e revolução
Encontramos o primeiro elo entre felicidade e revolução nítido nos discursos públicos – Robespierre, Saint-Just ou Babeuf – durante a Revolução Francesa.
“O ser humano nasceu para a felicidade e para a liberdade, em toda parte ele é escravo e miserável”, afirma Robespierre. Se o ser humano é escravo e miserável, não é por nenhuma fatalidade inscrita nas marcas de nascença, mas pela “corrupção do poder”. Ao poder mesmo como corrupção.
Corrupção de quê? Do “estado de natureza” segundo o qual se deveria legislar para devolver a liberdade, a virtude e a felicidade ao povo. Contra a promessa compensatória de uma felicidade só possível no outro mundo, a revolução espalha por toda parte a ideia de uma felicidade terrena e acessível a todos.
“A felicidade é uma ideia nova na Europa”, escreve Saint-Just como toque final de um texto-decreto sobre o confisco de bens dos inimigos da revolução e a indenização dos indigentes. A felicidade é possível e sua ferramenta é a política.
“Pertence às grandes assembleias criar a felicidade comum”. Uma legislação revolucionária de acordo com o estado de natureza pode tornar efetiva esta aspiração humana, dissolvendo as desigualdades sociais e promovendo os direitos necessários à assistência, ao trabalho, à educação. É a ideia do Estado social natural.
Os jacobinos apostaram na revolução permanente “enquanto houver apenas um pobre ou miserável na terra”, mas o processo terminou no ano II com a reação do Termidor. “A revolução congelou”, observa Saint-Just antes de silenciar para sempre.
O fracasso das revoluções comunistas do século XX
Na década de 1970, o filósofo alemão Herbert Marcuse refletiu com Jürgen Habermas e outros sobre sua própria trajetória política e intelectual. Tudo começou com um fracasso, diz ele, a derrota da revolução espartaquista de 1918-1919 na Alemanha.
“Fiz parte da última concentração de massa em que Rosa Luxemburgo falou; eu estava em Berlim quando ela e Karl Liebknecht foram assassinados. O que eu queria entender era como, com a presença de massas genuinamente revolucionárias, a revolução pôde ser derrotada. Por que o potencial revolucionário daquela época, historicamente raro, não só não foi aproveitado, como foi desperdiçado por décadas? Por que foi desativado diretamente? Significativamente, comecei estudando Freud”.
A derrota de 1918-19 antecipa outro fracasso: o das vitoriosas revoluções comunistas do século XX. Também nelas o potencial revolucionário das massas é inutilizado e o sonho coletivo de liberdade e felicidade se transforma em um pesadelo de terror e escravidão. Como é possível?
O que Marcuse pensa é que as revoluções são derrotadas não apenas por forças externas, como a repressão ou a cooptação de revolucionários, mas também por dinâmicas internas e inconscientes. Ao Termidor histórico-social acrescenta-se um “Termidor psíquico” cujo mistério deve ser penetrado para compreender algo da maldição das contrarrevoluções.
As revoluções comunistas do século XX retomam sem questionar o imaginário do progresso: desdobramento das forças produtivas, domínio da natureza e da fabricação de bens de consumo. O socialismo é definido como a redistribuição igualitária do progresso industrial, que Lênin resume em sua famosa fórmula: “o comunismo são os sovietes mais a eletricidade”.
O problema, diz Marcuse, é que esse imaginário já pressupõe um tipo de corpo. Somente o corpo reprimido e insatisfeito, que aprendeu a adiar o prazer e a se sublimar em ideais futuros, é capaz de impulsionar o progresso quantitativo infinito. Só esse tipo de corpo pode experimentar a vida como um trabalho sem prazer baseado na produtividade e na promessa de um futuro.
Como se “educa” esse corpo? Claro, a partir de todos os tipos de violência externa: nós os conhecemos bem graças às obras de Marx, Foucault ou Silvia Federici. Mas não só. O que Freud permite a Marcuse é pensar a “interiorização do poder” através do próprio fato cultural.
O acesso à cultura e à linguagem impõe a cada ser humano o sacrifício do corpo pulsional em favor do princípio da realidade. O delegado do princípio de realidade dentro de cada um de nós é chamado de superego. Este vigilante interno, que tomamos como a voz da consciência moral, trabalha para manter a ordem com as armas mais eficazes que existem: o sentimento de culpa e dívida, a angústia à menor transgressão, o desejo de punição como redenção. E nessa estrutura (ontológica) que se enraízam os diferentes poderes histórico-sociais.
No caso do princípio de realidade capitalista, o mandato transmitido pelo superego é primeiro a renúncia pulsional em favor da produtividade. A pulsão amorosa (Eros) será reduzida à sexualidade genito-reprodutiva. E a pulsão destrutiva (Thanatos) será instrumentalizada contra os “inimigos do progresso” externos e internos: as paixões inúteis, inclinações à vagabundagem e à preguiça, tudo o que resiste a sacrificar a felicidade do presente à produtividade.
Agora podemos entender melhor o fracasso das revoluções comunistas do século XX: ao copiar o imaginário burguês do progresso como ele é, querendo simplesmente colocá-lo a serviço de outras finalidades, reproduziram o mesmo “tipo humano”, o corpo da renúncia pulsional e da sublimação ao futuro, o corpo sempre insatisfeito e infeliz.
Esse corpo se materializa na subjetividade que concebe a revolução como “trabalho”, a militância como “sacrifício”, o tempo como “espera” e o comunismo como sociedade da produtividade total. A luta pelo socialismo – e logo o próprio socialismo – se objetiva e reifica. O potencial pulsional e criativo das massas fica inutilizado. A revolução é derrotada por dentro.
A libertação de Eros
Ao contrário de Robespierre, não nascemos para a liberdade e a felicidade. O acesso à cultura nos predispõe antes à alienação e à infelicidade. A revolução política não é suficiente, pensa Marcuse, é necessária uma revolução cultural. Uma mudança radical na estrutura das necessidades pulsionais, invariante e ao mesmo tempo aberta à modificação histórica.
Essa revolução cultural consiste em reativar as forças eróticas reprimidas. A libertação como felicidade. O que é Eros? O impulso de proteger, enriquecer e embelezar a vida, o instinto de cooperação, a energia capaz de compor coletivos a partir de uma solidariedade sentida (e não apenas forçada), única força capaz de deter a destruição.
A libertação de Eros é antes de tudo um protesto: contra o mundo da produtividade autopropulsada, da agressividade permanente e da instrumentalização de tudo. Sem esse fio negativo, sem esse poder de rejeição, Eros corre o risco de ser reduzido a uma mera compensação tolerada.
E também é uma afirmação. O aparecimento de um novo tipo de ligação entre os seres, as coisas e o mundo. Um vínculo sensível e afetivo capaz de cuidar de cada ser vivo como uma potência singular, como sujeito e não como objeto. Uma nova sublimação da energia libidinal, não mais repressiva ou compensatória, mas criativa.
A força de Eros, antes antecipada e reservada ao campo da estética, deve agora impregnar a vida toda: organizar o trabalho, orientar a construção de ambientes habitáveis, determinar as relações com a natureza, encharcar os espaços educativos.
Esta libertação implica uma outra temporalidade, não mais o tempo da espera infinita, mas o dos processos que trazem em si a recompensa. O tempo de amadurecimento, crescimento e desdobramento do que já está aí, como semente e potencia. O tempo do processo e não do progresso.
Implica um outro corpo, não mais o do militante sempre insatisfeito e em guerra com o mundo, sem nada a perder a não ser suas correntes, mas um corpo que tira sua força dos mil laços amorosos que já o prendem ao mundo: as formas de vida desejáveis, os territórios que habitamos, as memórias e histórias que nos constituem.
Em suma, implica uma nova concepção da revolução, como mutação antropológica, mudança de pele e surgimento de uma nova sensibilidade. Essa nova concepção, reivindicada teoricamente por Marcuse desde a década de 1950, vai se concretizar praticamente nos movimentos da década de 1960: os estudantes pacifistas contra a Guerra do Vietnã, o feminismo e as primeiras lutas ambientalistas, anticoloniais e raciais. Os diferentes atores do que Marcuse chamou de Grande Rejeição.
O mandato de desempenho
A Grande Rejeição não consegue derrubar o capitalismo, mas força uma reorganização geral em resposta. É o que se conhece como passagem entre fordismo e pós-fordismo, ou sociedade industrial e neoliberalismo; e implica também uma mudança profunda no nível psíquico e subjetivo, que é o que nos interessa agora.
O sujeito industrial torna-se o sujeito performático dos nossos dias. Não mais definido pela renúncia pulsional, mas pelo envolvimento total na guerra econômica: entrega, motivação, participação. Não por obediência e conformismo, mas por desenraizamento e autossuperação constante. Não por ascetismo puritano, economia ou moderação, mas por excesso: hiperatividade, hiperexpressividade, hiperestimulação.
A acumulação como principal característica do capitalismo é internalizada, tornando-se uma modalidade subjetiva e modo de vida. Além do próprio trabalho, afetando toda a existência.
O novo mandato do superego dita: “você deve sempre tirar vantagem, tirar o máximo proveito de cada situação”. A energia amorosa de Eros é subjugada sob todas as formas de hiper-sexualização. A energia destrutiva de Thanatos é instrumentalizada para a competição geral e a guerra de todos contra todos.
E o desconforto? Como fica o sofrimento psíquico nesse tempo de desempenho obrigatório?
É a sensação constante de que o tempo está se acelerando, de que “não consigo chegar lá” ou “não tenho vida”. A sensação de estar sempre em falta, sempre em déficit, de não ser suficiente, de não fazer o suficiente, de não ter o suficiente. A dificuldade vivida na relação com o outro, sempre rival e nunca cúmplice, um constante medir-se pela inveja e pela frustração, uma exigência sufocante.
Se Freud ofereceu a Marcuse um esquema para pensar a internalização do poder, o psicanalista Jacques Lacan acrescentou posteriormente mais um elemento, bastante perturbador: o mandato do superego se regogiza. Somos nós mesmos que aceleramos a roda do hamster, que entramos na competição com o outro, que cobramos de todos e de tudo um resultado imediato.
Há uma alegria nisso tudo, uma satisfação na insatisfação, um certo apego emocional, uma espécie de vício. O reclamante basicamente não quer mudar nada, a vítima está satisfeita com sua posição.
Sem pensar profundamente em todas essas questões, sem entrar seriamente no “ninho de víboras” da subjetividade, os apelos à transformação social permanecem mero discurso, um cadáver na boca, a preparação de um novo Termidor psíquico.
A felicidade do desertor
E então, hoje, felicidade? Não, claro, a felicidade obrigatória do mandato de desempenho (“seja feliz, aproveite!”), mas a felicidade de justamente desfazer todos os comandos, a felicidade que subverte, a felicidade de Eros.
Vamos ensaiar um pouco, sem negar outras possíveis linhas de interpretação, nem tê-las todas conosco. Hoje há quem abandone o emprego, quem rejeite o consumo como relação privilegiada com o mundo, quem dê as costas à política e aos meios de comunicação, quem se vá, quem desapareça. Grande Resignação, declínio, êxodo das cidades, novos comunalismos, mil tentativas de desligar e desacelerar a vida, desamor libidinal.
O pano de fundo da época, pelo menos no Norte global, é esse vasto movimento de afastamento dos mecanismos de ansiedade. Às vezes sozinho e outras em grupo, às vezes trocando de lugar e às vezes sem sair do lugar, às vezes com fala e outras vezes apenas por instinto. Não se trata exatamente de lutas ou movimentos sociais, mas de uma espécie de deslocamento de placas tectônicas, em que novas lutas e movimentos podem surgir. Estou pensando, por exemplo, na atual desidentificação geral em relação ao trabalho, considerado por décadas como a principal fonte de autorrealização e felicidade. Não pode faltar ao trabalho, porque é dinheiro e renda, mas toma distância.
Franco Berardi (Bifo) propõe a imagem da deserção para pensar esse movimento de retirada. A deserção vai além do simples desligamento momentâneo: uma licença médica, uma fuga, um verão. Porque implica precisamente um gesto de renúncia: de subtração e desapego do nó que nos prendia, de elaboração da armadilha em que estamos presos, de abertura a novos ritmos e respirações.
A deserção implica uma ruptura subjetiva. Um corte com o gozo do desempenho. Uma perda de certas certezas às quais nos apegávamos e a passagem dessa angústia.
Atrever-nos a perder. Essa é a proibição por excelência sob o imperativo de desempenho: perder tempo e não fazer render, perder prestígio na disputa por visibilidade, perder posições na guerra econômica. A famosa síndrome FOMO (fear of missing out), o medo constante de perder algo, expressa essa terrível ansiedade.
O perdedor (el loser) é a figura mais desvalorizada do neoliberalismo, o espantalho com o qual nos assustamos e normalizamos. Mas só ousando perder podemos enfraquecer esse mandato do superego que nos mortifica. Perder, como diz Jorge Alemán, sem se identificar com o que se perde, sem melancolia.
Perde-se, também, por amor. Como aconteceu na excepcional história de “Loco” Pérez, o jogador que abriu mão de um contrato de dois milhões de euros e caiu para a Terceira Divisão por seu amor de infância a La Coruña. Perder como forma de dar e doar-se sem cálculo, na fidelidade ao que verdadeiramente sustenta a vida.
Perder, não para depois ganhar, como dizem os atletas de elite e os loucos empresários, mas para aprender a viver em uma perda, no sentido de que o desejo – ao contrário do gozo – não acumula, fica à deriva o tempo todo, tem maré alta e baixa, se dissipa, constrói labirintos sem saída.
A felicidade do desertor passaria por esse abandono da obrigação-alegria de ceder, de acumular, de controlar. Essa deserção pode se tornar um movimento coletivo, estratégico, organizado? Um movimento de engenheiros, técnicos e pesquisadores franceses, unidos em sua rejeição a “robotizar, mecanizar, otimizar, acelerar e desumanizar o mundo”, autodenominaram-se recentemente “os desertores felizes” e convidam a uma grande renúncia construtiva, criativa, ofensiva.
Marcuse fala em algum lugar sobre “felicidade sem mérito”. Não aquela que se consegue com esforço, aquela que se adquire ou conquista, aquela que é prêmio ou decretada, mas aquela que pode irromper, sem garantias e inesperadamente, justamente se ousarmos perder.
Referencias:
Filosofía radical: conversaciones con Herbert Marcuse, Jürgen Habermas y otros, Gedisa (2018).
“La idea del progreso a la luz del psicoanálisis”, Herbert Marcuse (1969).
La nueva razón del mundo, Pierre Dardot y Christian Laval, Gedisa (2013).
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