Por Maria da Paz Trefaut, para o Valor — São Paulo
Gilles Lipovetsky: “A moda para os intelectuais é o diabo” — Foto: Ana Paula Paiva/Valor
Certos intelectuais nutrem certo desprezo pelo mundo da moda. No entanto, o filósofo francês Gilles Lipovetsky resolveu estudar a moda e o mercado de luxo. Com vários livros publicados e traduzidos em mais de 20 países sobre temas diversos como a era do vazio e a hipermodernidade, ele causou controvérsia ao lançar, em 1987, “O império do efêmero - A moda e seu destino nas sociedades modernas” (Companhia de Bolso).
Na semana passada, Lipovetsky foi a estrela do evento France Excellence América Latina, no hotel Rosewood, em São Paulo, que teve como tema “A tradição da inovação” e foi organizado pela Atout France, agência que atua para o turismo na França. O mercado global de luxo atingiu o valor de 345 bilhões em 2022, segundo a Bain & Company. É natural que a França, terceira economia da Europa, veja no Brasil um parceiro essencial para consumir seus produtos.
Apesar de toda essa aura que cerca o mundo do luxo, Lipovetsky passou uma mensagem clara. “Para se reinventar, a indústria do luxo precisa se engajar na transição ecológica e parar com o desperdício”, disse. “Essa será a inovação maior, uma transformação estrutural e cultural que representa uma mudança de paradigma. Até agora o luxo ignorou o futuro. Chegou a hora de incorporar a ética do futuro.”
Laurence Picot é roteirista do filme “A Invenção do Luxo à Francesa” — Foto: Ana Paula Paiva/Valor
O evento trafegou por várias áreas, do turismo à beleza. Houve espaço para reflexões sobre a “construção de marcas icônicas”, as “experiências de viagens de alto luxo” e sobre moda e esporte, já que Paris vai sediar os Jogos Olímpicos de 2024. As conversas se deram em clima informal e uma das convidadas foi a jornalista e escritora Laurence Picot que, há 20 anos, pesquisa a indústria francesa de luxo e é roteirista do filme “A Invenção do Luxo à Francesa”, que está no Canal Arte1.
O filme usa corretamente a palavra invenção no título e prova que, ao diferentemente do que se pensa sobre a ancestralidade do luxo francês, a indústria foi, na realidade, um investimento de Estado conquistado à custa de espionagem, cópias descaradas e comportamentos pouco éticos. A criação dessa indústria ocorreu no reinado do absolutista Luís XIV, o “Rei Sol”, que assumiu o trono em 1643 e o ocupou até a morte, em 1715.
O artífice da mudança foi o Ministro da Economia e Finanças Jean-Baptiste Colbert, que percebeu o desequilíbrio na balança comercial causado pelas vultosas importações feitas pela aristocracia. Na época, a nobreza importava espelhos da Itália, têxteis da Holanda e rendas inglesas. Era, portanto, urgente que a França começasse a fabricar o luxo que consumia em demasia para deixar o dinheiro em casa.
“Depois do século XIX o luxo entrou na era moderna, em seguida na hipermodernidade, no mundo globalizado, e hoje usa a inteligência artificial”, disse Lipovetsky. “O segredo dessa permanência talvez seja ter conseguido se constituir como um mercado acessível e, ao mesmo tempo, inacessível.”
Hoje, há várias formas luxo para diferentes públicos e idades. O inacessível sobrevive no universo da alta costura, mas há o intermediário, o prêt-à-porter, que se traduz na moda de grifes de renome. E o luxo mais acessível é aquele dos perfumes e pequenos acessórios como lenços e chaveiros. “Não é um falso luxo, é o luxo contemporâneo. Mas para que uma marca mantenha sua essência é preciso manter a qualidade independentemente do preço”, disse o filósofo. E exemplificou: “Um chaveiro com o monograma da Louis Vuitton é uma inovação do luxo da nossa época, um ‘neo-luxo’ que permite a extensão do domínio das marcas e que não diminuiu sua sedução; pelo contrário, as tornou mais desejáveis.”
Para que essa transformação tenha ocorrido, há uma estratégia de comunicação poderosa que adentra o mundo da cultura pop, utiliza a imagem de estrelas de Hollywood e até de rappers transgressores que se tornaram garotos propaganda de marcas que, agora, ocupam espaço até em displays colocados em aeroportos. Vale tudo na conquista de novas gerações.
Essa repaginação não deixa de parecer um paradoxo. “Antes as marcas de luxo cultuavam a discrição”, lembra Lipovetsky. “Passamos da poesia discreta à superexposição. Não há mais marcas de luxo sem um trabalho de comunicação global. O estado hipermoderno do luxo se concretiza com a multiplicação de lojas Louis Vuitton, Dior, Hermès.” Nesse processo, as marcas contratam vedetes da arquitetura como Renzo Piano e Frank Gehry para projetar flagstores impactantes, mas, por outro lado, vendem até na web. “Há algo menos glamouroso do que a web?”, pergunta o filósofo. “Mesmo assim, para se ter uma ideia, a Hermès investe 10% de sua comunicação na internet”.
Depois da palestra, Lipovetsky conversou com o Valor e recapitulou as dificuldades que enfrentou na academia. “A moda para os intelectuais é o diabo”, afirmou. “Nos anos 1980 eu era completamente ignorante a respeito desse tema. Sou oriundo de um meio popular onde não se falava nem de costura, nem de moda, muito menos de luxo. E era uma época contestatária, marxista.”
Ao escrever um artigo sobre a vestimenta, o filósofo partiu da observação de que havia signos que os ricos usavam para se distinguir e que as pessoas mais modestas copiavam. Quando isso ocorria, imediatamente os ricos mudavam a indumentária. Esse movimento é assim até hoje. Mas não explica o nascimento da moda na Idade Média. “Se a rivalidade entre os grupos sociais era milenar, por que não havia moda em Roma e nas sociedades primitivas? O que aconteceu no século XIV, no Ocidente, para os aristocratas embarcarem nessa nova folia de troca de vestimentas? Aí me dei conta de que não havia nenhum estudo a respeito do assunto em termos de reflexão”. Por quê? “Porque os intelectuais costumam pensar: A moda, imagina, isso é coisa para mulheres, é uma pequena coisa sem importância. Vamos falar da guerra, da política, da religião, de coisas relevantes. Além do mais, a moda é conformista... ditada por tendências, o que é contrário à liberdade, à singularidade.”
Essa visão é falsa, afirma. “Precisei me debruçar sobre a questão desde a base e percebi que o problema é muito mais complicado, que a moda demanda uma explicação muito complexa e que ela significa, em primeiro lugar, uma ruptura com a tradição. Era preciso que o modelo tradicional perdesse seu valor, o que demanda uma revolução civilizatória enorme. Em segundo lugar, não é verdade que a moda é totalmente conformista. Por um lado é, mas sempre houve uma pequena parte de individualidade na moda.”
Lipovetsky compara a moda ao momento em que as mulheres começaram a dançar sozinhas. “Elas não queriam mais depender de um convite masculino. E a liberdade também esteve presente na moda. O minimalismo é uma moda para as mulheres e não para o olhar masculino. Nele, veste-se de maneira simples, elegante, nada sexy, e as mulheres que adotam esse estilo não querem parecer uma presa sexual. Com relação à moda tradicional, o minimalismo é uma grande mudança. Porque a moda sempre pareceu um teatro. Portanto, há mudanças grandes na lógica da moda que não são compatíveis com o conformismo.”
As mulheres adoram a moda por quê? ele pergunta e reponde: “Porque era o único domínio em que podiam ter um pouco de liberdade, de aventura. Aventuras sexuais, não podiam ter, aventuras políticas, também não. O que lhes restava? Cuidar das crianças, da casa... O escape era se vestir, trocar de look. A moda era o único lugar onde podiam se divertir. Acho que subestimamos isso. A moda tem um lado emancipatório. Onde não há moda é perigoso. Para as mulheres é horrível.”
Ele também percebeu que um mundo sem moda seria menos divertido. Sim, ela tem aspectos negativos, mas também positivos. “A moda é uma invenção de uma civilização. Os ocidentais criaram a racionalidade científica e a superficialidade. Inventaram essas duas coisas ao mesmo tempo. Os ocidentais iniciaram uma guerra contra a tradição, e a ciência é contra a tradição, busca a verdade, muda o tempo todo, é o contrário da terra plana.”
“Na ciência discute-se tudo. E na moda é parecido”, diz o filósofo. “A gente copia, sim, mas também inventa o tempo todo. De alguma forma, a ciência e a moda são expressões de um mundo que não é mais regido por Deus nem pelos ancestrais. As pessoas fazem o próprio mundo, diferente do que receberam do passado”.
Ao ser perguntado sobre temas atuais como trabalho escravo, hiperconsumo, queima de sobra de coleções no deserto de Atacama, Lipovetsky afirma que denunciar tudo isso é “um imperativo existencial”. E que a saída está em todos os atores. Na indústria, num estado com leis rigorosas, nos consumidores, mas, essencialmente, num investimento maciço na pesquisa para encontrar novos materiais e tecnologias que respeitem o ambiente. “É preciso caminhar no sentido da transição ecológica. É uma revolução planetária. Não basta a tomada de consciência, deve se traduzir em atos.”
“Acho que o século XXI precisa se voltar para a escola”, diz Lipovetsky. É ali que se formam os cidadãos, os homens completos. Consumir demais é sinal de uma existência pobre. Vamos investir na cultura, no saber, na arte. A educação tem um poder infinito.”
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