Por MIA COUTO*
O que Rosa perseguiu na escrita foi “essa coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, a que chamamos de ‘realidade’, e que é a gente mesmo, o mundo, a vida”.
Caros amigos:
Interrogo-me sobre o que poderei dizer sobre Guimarães Rosa, eu que venho de tão longe e quando tanto estudo abalizado foi já produzido sobre o grande escritor mineiro. Essa dúvida marcou a preparação desta minha fala.
Vocês conhecem o escritor brasileiro melhor do que eu e não teria nenhum sentido eu, moçambicano, vir ao Brasil filosofar sobre um autor brasileiro. Sobretudo, não sendo eu um estudioso de literatura nem brasileira nem nenhuma outra.
Decidi, então, que não iria falar de um escritor nem da sua escrita. Falaria, sim, das razões que creio assistirem a essa poderosa influência que João Guimarães Rosa teve em alguma da literatura africana de língua portuguesa. Falarei também da minha relação com a escrita, falarei da minha atitude perante a produção de histórias (com h minúsculo) e a desconstrução da História (com H maiúsculo).
Na realidade, reconheço algumas razões pessoais que fizeram do meu encontro com Guimarães Rosa uma espécie de abalo sísmico na minha alma. Algumas dessas razões eu as reconheço hoje. Enunciarei a seguir essas razões, uma por uma:
A importância do escritor poder não ser escritor
Guimarães Rosa não foi apenas escritor. Enquanto médico e diplomata, ele visitou, e tardiamente, a literatura, mas nela não fixou residência exclusiva e permanente. Ao ler Rosa percebe-se que, para se chegar àquela relação de intimidade com a escrita, é preciso ser-se escritor e muito escritor. Mas por um tempo é preciso ser-se um não-escritor.
É preciso estar livre para mergulhar no lado da não-escrita, é preciso capturar a lógica da oralidade, é preciso escapar da racionalidade dos códigos da escrita enquanto sistema de pensamento. Esse é o desafio de desequilibrista – ter um pé em cada um dos mundos: o da escrita e o da oralidade. Não se trata de visitar o mundo da oralidade. Trata-se de deixar-se invadir e dissolver pelo universo das falas, das lendas, dos provérbios.
O exemplo de uma obra que se esquivou da obra
João Guimarães Rosa não fez da literatura a sua carreira. Interessava-o sim a intensidade, a experiência quase religiosa. A maior parte dos seus nove livros foi publicada postumamente. Para Guimarães Rosa não são os livros que importam, mas o processo da escrita. No momento em que ele se incorpora na instituição que simbolizava a solenidade da obra – a Academia Brasileira de Letras – essa luz parece ser demasiada e o faz sucumbir.
A sugestão de uma língua que se liberta dos seus regulamentos
Eu já bebia na poesia um gosto pela desobediência da regra, mas foi com o autor da Terceira margem do rio que eu experimentei o gosto pelo namoro entre língua e pensamento, o gosto do poder divino da palavra.
Mas decidi não falar de mim, nem de Guimarães Rosa, nem de escritores. O meu propósito aqui é sobretudo entender por que razão um autor brasileiro influenciou tanto escritores africanos de língua portuguesa (o caso paradigmático será o Luandino Vieira, mas há outros como o angolano Boaventura Cardoso, os moçambicanos Ascêncio de Freitas e Tomaz Vieira Mário).
Haverá por certo uma necessidade histórica para essa influência. Há razões que ultrapassam o autor. Haveria uma predisposição orgânica em Moçambique e Angola para receber essa influência, e essa predisposição está para além da literatura. Tentarei neste encontro listar alguns dos factores que podem ajudar a compreender o modo como Rosa se tornou referência no outro lado do mundo.
A construção de um lugar fantástico
A palavra “sertão” é curiosa. A sonoridade sugere o verbo “ser” numa dimensão empolada. Ser tão, existir tanto. Os portugueses levaram a palavra para África e tentaram nomear assim a paisagem da savana. Não resultou. A palavra não ganhou raiz. Apenas nos escritos coloniais antigos se pode encontrar o termo “sertão”. Quase ninguém hoje, em Moçambique e Angola, reconhece o seu significado.
João Guimarães Rosa criou este lugar fantástico, e fez dele uma espécie de lugar de todos os lugares. O sertão e as veredas de que ele fala não são da ordem da geografia. O sertão é um mundo construído na linguagem. “O sertão”, diz ele, “está dentro de nós”. Guimarães Rosa não escreve sobre o sertão. Ele escreve como se ele fosse o sertão.
Em Moçambique nós vivíamos e vivemos ainda o momento épico de criar um espaço que seja nosso, não por tomada de posse, mas porque nele podemos encenar a ficção de nós mesmos, enquanto criaturas portadoras de História e fazedoras de futuro. Era isso a independência nacional, era isso a utopia de um mundo sonhado.
A instauração de um outro tempo
Já vimos que o sertão é o não-território. Veremos que o seu tempo não é o vivido, mas o sonhado. O narrador de Grande sertão: Veredas diz: “Estas coisas de que me lembro se passaram tempos depois”. E ele poderia dizer de outro modo: as coisas importantes passam sempre para além do tempo.
O que Rosa perseguiu na escrita foi (estou citando) “essa coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, a que chamamos de ‘realidade’, e que é a gente mesmo, o mundo, a vida”. A transgressão poética é o único modo de escaparmos à ditadura da realidade. Sabendo que a realidade é uma espécie de recinto prisional fechado com a chave da razão e a porta do bom-senso.
A construção do Estado centralizador e a recusa da homogeneidade
É importante situar em que contexto histórico João Guimarães Rosa escreve. Grande parte da obra rosiana é escrita quando os brasileiros fazem nascer do “nada” uma capital no interior desse sertão (Brasília acabava de ser construída). O que estava ocorrendo era a consumação do controlo centralizado de uma realidade múltipla e fugidia.
Na realidade, o sertão de Guimarães Rosa é erguido em mito para contrariar uma certa ideia uniformizante e modernizante de um Brasil em ascensão. O lugar distante e marginal, que é o planalto interior do Brasil, converte-se num labirinto artificialmente desordenado e desordenador.
Também Moçambique vive a lógica de um Estado centralizador, de processos de uniformização linguística e cultural. A negação dessa globalização doméstica é, muitas vezes, feita por via da sacralização daquilo que se chama tradição. África tradicional, África profunda e outras entidades folclorizadas surgem como espaço privilegiado da tradição, lugar congelado no tempo, uma espécie de nação que só vive estando morta.
O que a escrita de Guimarães Rosa sugeria era uma espécie de inversão deste processo de recusa. Tratava-se não de erguer uma nação mistificada, mas da construção do mito como nação.
A impossibilidade de um retrato de nação
Moçambique e Brasil são países que encerram dentro de si contrastes profundos. Não se trata apenas de distanciamento de níveis de riqueza, mas de culturas, de universos, de discursos tão diversos que não parecem caber numa mesma identidade nacional. A escrita de João Guimarães Rosa é uma espécie de viagem em cima dessa linha de costura. O que ele busca na escrita: um retrato do Brasil? Não. O que ele oferece é um modo de inventar o Brasil.
Com Mário de Andrade, João Guimarães Rosa é um dos fundadores da identidade territorial e cultural da nação brasileira. Ao contrariar uma certa ideia de modernização, Rosa acabou criando os pilares de uma outra modernidade estilística no Brasil. Ele fez isso numa altura em que a literatura brasileira estava prisioneira de modelos provincianos, demasiado próxima do padrão de literatura portuguesa, espanhola e francesa. De uma similar prisão ansiávamos, também nós, por nos libertar.
O que Guimarães Rosa instaura é o narrador como mediador de mundos. Riobaldo é uma espécie de contrabandista entre a cultura urbana e letrada e a cultura sertaneja e oral. Esse é o desafio que enfrenta não apenas o Brasil, mas também Moçambique. Mais que um ponto de charneira necessita-se hoje de um médium, alguém que usa poderes que não provêm da ciência nem da técnica para colocar esses universos em conexão. Necessita-se da ligação com aquilo que João Guimarães Rosa chama de “os do lado de lá”. Esse lado está dentro de cada um de nós. Esse lado de lá é, numa palavra, a oralidade.
A necessidade de contrariar os excessos do realismo
Vivíamos em Moçambique e em Angola a aplicação esforçada do modelo estético e literário do realismo socialista. Nós mesmos fomos autores militantes, a nossa alma tomou partido e tudo isso nos parecia historicamente necessário. Mas nós entendíamos que havia uma outra lógica que nos escapava e que a literatura tinha razões que escapavam à razão política.
A leitura de Guimarães Rosa sugeria que era preciso sair para fora da razão para se poder olhar por dentro a alma dos brasileiros. Como se para tocar a realidade fosse necessário uma certa alucinação, uma certa loucura capaz de resgatar o invisível. A escrita não é um veículo para se chegar a uma essência, a uma verdade. A escrita é a viagem interminável. A escrita é a descoberta de outras dimensões, o desvendar de mistérios que estão para além das aparências. É Guimarães Rosa quem escreve: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.
Há aqui um posicionamento político nunca enunciado mas inscrito no tratamento da linguagem. É na recriação da linguagem que ele sugere uma utopia, uma ideia de futuro que está para além daquilo que ele denuncia como uma tentativa de “miséria melhorada”. Esta linguagem mediada entre classes cultas e os sertanejos quase não existia no Brasil. Através de uma linguagem reinventada com a participação dos componentes culturais africanos também nós em Angola e Moçambique procurávamos uma arte em que os excluídos pudessem participar da invenção da sua História.
A urgência de um português culturalmente remodelado
Nós vivemos em Angola e Moçambique uma certa saturação de um discurso literário funcional. Mais que funcional: funcionário.
Numa entrevista com Günter Lorenz, Rosa revoltava-se contra a escrita panfletária e utilitarista da literatura, mesmo que isso fosse feito em nome da boa intenção de mudar o mundo. “Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo. O que chamamos hoje linguagem corrente é um monstro morto. A língua serve para expressar ideias, mas a linguagem corrente expressa apenas clichés e não ideias; por isso está morta, e o que está morto não pode engendrar ideias.”
Para João Guimarães Rosa, a língua necessitava “fugir da esclerose dos lugares-comuns, escapar à viscosidade, à sonolência”. Não era uma simples questão estética, mas era, para ele, o próprio sentido da escrita. Explorar as potencialidades do idioma, desafiando os processos convencionais da narração, deixando que a escrita fosse penetrada pelo mítico e pela oralidade.
Guimarães Rosa, como Manoel de Barros, trabalha fora do senso-comum (ele cria um senso-incomum), elabora no mistério denso das coisas simples, entrega-nos a transcendência da coisa banal.
A afirmação da oralidade e do pensamento mágico
O autor insurge-se contra a hegemonia da lógica racionalista como modo único e exclusivo de nos apropriarmos do real. A realidade é tão múltipla e dinâmica que pede o concurso de inúmeras visões. Em resposta ao to be or not to be de Hamlet o brasileiro avança outra postura: “Tudo é e não é”. O que ele sugere é a aceitação da possibilidade de todas as possibilidades: o desabrochar das muitas pétalas, cada uma sendo o todo da flor.
Caros amigos,
Aventurei-me sobre possíveis razões dessa ponte mágica entrecriada entre o autor mineiro e os nossos autores africanos. Possivelmente, nada disto faz sentido. Essas razões valem para mim, com a minha história e a minha vivência.
O meu país tem países diversos dentro, profundamente divididos entre universos culturais e sociais variados. Eu mesmo sou a prova desse cruzar de mundos e de tempos. Sou moçambicano, filho de portugueses, vivi o sistema colonial, combati pela independência, vivi mudanças radicais do socialismo ao capitalismo, da revolução à guerra civil. Nasci num tempo de charneira, entre um mundo que nascia e outro que morria. Entre uma pátria que nunca houve e outra que ainda está nascendo. Essa condição de um ser de fronteira marcou-me para sempre. As duas partes de mim exigiam um médium, um tradutor. A poesia veio em meu socorro para criar essa ponte entre dois mundos aparentemente distantes.
E eu cresci nesse ambiente de mestiçagem, escutando os velhos contadores de histórias. Eles me traziam o encantamento de um momento sagrado. Aquela era a minha missa. Eu queria saber quem eram os autores daquelas histórias e a resposta era sempre a mesma: ninguém. Quem criara aqueles contos haviam sido os antepassados, e as histórias ficavam como herança divina. Naquele mesmo chão estavam sepultados os mais velhos, conferindo história e religiosidade àquela relação. Nessa moradia, os antepassados se convertem em deuses.
Por aquela razão, aquele momento agia em mim de maneira contraditória: por um lado, me aconchegava, por outro me excluía. Eu não podia partilhar por inteiro daquela conversa entre deuses e homens. Porque eu estava já carregado de Europa, minha alma já bebera de um pensamento. E os meus mortos residiam num outro chão, longínquo e inacessível.
Quando me pergunto porque escrevo eu respondo: para me familiarizar com os deuses que eu não tenho. Os meus antepassados estão enterrados em outro lugar distante, algures no norte de Portugal. Eu não partilho da sua intimidade e, mais grave ainda, eles me desconhecem inteiramente. O que faço hoje, sempre que escrevo, é inventar esses meus antepassados. Essa reinvenção pede artifícios que só a infância pode guardar. Uma reaprendizagem tão profunda implica uma perda radical de juízo. Isto é, implica a poesia.
E foi poesia o que me deu o prosador João Guimarães Rosa. Quando o li pela primeira vez experimentei uma sensação que já tinha sentido quando escutava os contadores de histórias da infância. Perante o texto, eu não lia simplesmente: eu ouvia vozes da infância. Os livros de João Guimarães Rosa atiravam-me para fora da escrita como se, de repente, eu me tivesse convertido num analfabeto selectivo. Para entrar naqueles textos eu devia fazer uso de um outro acto que não é “ler”, mas que pede um verbo que ainda não tem nome.
Mais que a invenção de palavras, o que me tocou foi a emergência de uma poesia que me fazia sair do mundo. Aquela era uma linguagem em estado de transe, que entrava em transe como os médiuns das cerimónias mágicas e religiosas. Havia como que uma embriaguez profunda que autorizava a que outras linguagens tomassem posse daquela linguagem. Exatamente como o dançarino da minha terra que não se limita a dançar. Ele prepara a possessão pelos espíritos. Ele cria o momento religioso em que emigra do seu próprio corpo.
Os contadores de histórias do meu país têm de proceder a um ritual quando terminam a narração. Têm de “fechar” a história. “Fechar” a história é um ritual em que o narrador fala com a própria história. Pensa-se que as histórias são retiradas de uma caixa deixada por Guambe e Dzavane, o primeiro homem e a primeira mulher. No final, o narrador volta-se para a história — como se a história fosse uma personagem – e diz: “Volta para casa de Guambe e Dzavane”. É assim que a história volta a ser encerrada nesse baú primordial.
O que acontece quando não se “fecha” a história? A multidão que assiste fica doente, contaminada por uma enfermidade que se chama a doença de sonhar. João Guimarães Rosa é um contador que não fechou a história. Ficamos doentes, nós que o escutamos. E amamos essa doença, esse encantamento, essa aptidão para a fantasia. Porque a todos não nos basta ter um sonho. Queremos mais, queremos ser um sonho.
Muito obrigado a vocês por me ajudarem a ser esse sonho.
*Mia Couto é escritor. Autor, entre outros livros, de Terra sonâmbula (Companhia das Letras).
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