Aí fiquei pensando: tenho 61 anos e muitas dúvidas. Não sei se tenho futuro, duvido do meu passado, ando às turras com o presente. Já fui ambicioso, briguento e corajoso. Quis ser cronista, virei articulista, publiquei muito e hoje escrevo para tentar entender quem eu sou, onde estou, o que posso esperar. Tive covid duas vezes, na entrada e na saída de pandemia. Parecia ter pressa em conhecer o vírus, que chegou a ficar mais de três meses alojado em mim. Por fim, partiu. Mas voltou. Nas duas vezes, parei no hospital. Fiquei com sequelas. Houve o tempo em que, quando um médico me receitava um remédio, eu perguntava: por quanto tempo, doutor?
A resposta era certa e terapêutica: até ficar curado. Eu já saía bom do consultório. Mudei de prateleira. Entrei na fase da resposta definitiva, que torna a pergunta supérflua: “Para sempre”. Quando era jovem, fui demitido pela esquerda. Velho, a direita me botou na rua. Adolescente, admirei o anarquismo. Lia um alemão chamado Max Stirner, que não sorria e olhava o mundo de esguelha. Na idade da razão, ou seja, na crise dos 40, virei socialdemocrata, que é como as pessoas se chamam quando não querem mais cometer as loucuras da juventude e se tornam chatas até envelhecer. Sexagenário, flerto novamente com os libertários. Por favor, não confundir com o libertarianismo, cujo estado de graça é um Estado sem graça. O libertário quer um mundo sem poder. O libertarianismo, um Estado mínimo.
Nessas mutações todas, fui me tornando cada vez mais perigoso: passei a gostar mais de árvores do que de edifícios, para desespero dos vendedores de praças e parques, mais de poesia do que de prosa, mais de caminhadas do que de corridas. Troquei a Fórmula 1 na televisão pelos lentos passeios no parque. Ainda sou um tanto rebelde, como um resquício dos meus primeiros enfrentamentos, e recuso me vestir de jovem ou usar roupas de turista, esportista, “academista” e de homens da minha idade. Sento na minha poltrona, mais confortável do que qualquer divã, e tento me autoconhecer. Penso que, se a vida permitir, saberei alguma coisa de mim em trinta anos.
Cometi muitos erros na vida e não nego: não escolhi partido, tenho amigos de direita e de esquerda, minhas convicções ideológicas são tão profundas quanto o espelho de água da Redenção, fui colorado na infância, gremista por interesse na idade adulta, colorado novamente por nostalgia, maragato por influência de Palomas, chimango por leitura de Augusto Comte, gaudério por andar solto no mundo. Guri, odiava couve e repolho. Velho, resisto a espinafre e berinjela. Tenho todos os defeitos do mundo e talvez uma única qualidade: a certeza de não ter certeza, o que faz muita gente duvidar de mim. De tanto andar errante, errei o passo o aqui estou.
Nos últimos anos, dei o passo que faltava: passei a escrever e publicar poesia. Meus críticos, que não aceitam pessoas múltiplas, não perdoam: “Facebook aceita tudo”, dizem. Entrei numa fase em tudo me serve, mas nem sempre uso. Simplesmente estou ocupado demais reescrevendo meu passado, vivendo meu presente, projetando meu futuro. Nada mais urgente quando se conhece o ritmo do tempo.
Vivi em Paris como quem morre
Entre livros, quadros e passantes,
Vivi em Paris como quem corre,
Entre mulheres com seus turbantes,
Estranhos com as suas amantes,
E o céu cinza me beijando a nuca.
Sempre soube que viveria ausente,
Como se estivesse noutra parte,
Do outro lado da rua, em frente,
Olhando sombras dalguma arte.
Morri quando cheguei sozinho,
Era um domingo de solzinho
A luz pontilhava os telhados,
Impressão, sol tão distante.
Não sofri, nunca amaldiçoei,
Havia a chuva como parceira,
Nesses dias onde andava não sei.
Sei que era em Paris, quinta-feira.
* Jornalista. Escritor. Prof. Universitário
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