Bruno Nogueira*
Juan CaviaOs nossos dias não são o que nós queremos que eles sejam, mas são nossos. Com culpa, com luto, com alegria, com tudo e com nada. Fugir deles é a pior coisa que podemos tentar fazer, porque eles têm pernas longas e hão-de correr até nos conseguirem apanhar e levar de volta.
É curiosa esta ideia de os dias da semana
terem pesos e medidas diferentes. Vistos ao longe até parecem ser feitos
da mesma matéria, mas aquilo que provocam em cada um de nós varia
consoante a nossa história e a nossa disposição. Acrescentamos quilos
aos que nos cansam, e tiramos peso aos que nos fazem falta, num ajuste
de contas diário que nos serve sobretudo a nós. Os dias da semana têm
bagagens diferentes e personalidades fortes, e a chegada de cada um
deles pode provocar uma espécie de baque, como se nos apanhassem de
surpresa todas as semanas. Tratamos os dias consoante o que eles nos
dão, num desafiante leilão diário. Gostamos das terças porque temos uma
combinação que adoramos, das quartas porque sim, das quintas porque
praticamos o desporto que gostamos, e por aí fora. Mas essas âncoras não
são garantia de um dia bom, porque o que ele tem lá dentro pode até ter
coisas previsíveis, mas pelo meio há outras que desequilibram a ordem
que dávamos como certa. A sexta-feira é o dia que tem melhor reputação,
porque é o dia que devolve o descanso a quem o perdeu nos outros dias.
Anuncia um fim-de-semana onde podemos reivindicar os horários que bem
entendermos. Mas mesmo assim há quem baralhe o jogo e trabalhe ao fim de
semana, e veja afinal na semana o descanso que a maior parte das
pessoas não consegue lá encontrar. São os mesmos dias, mas só para quem
os trata pelo nome, e não por aquilo de que são feitos.
Num canto nublado e triste está o domingo, e que leva com o peso
de todos os outros que se acham melhores e mais leves. O domingo tem 24
horas, mas há quem lhe dê menos. É o dia que dizem não servir para nada,
que está só a fazer-se de sonso até vir a segunda-feira, o dia em que
começa tudo outra vez. A má fama do domingo não é culpa dele, é nossa.
Ele oferece-se para que o aproveitemos com a mesma fome que tivemos pelo
sábado, mas nós não vamos em cantigas. Gastamos os domingos com a dor
antecipada daquilo que vamos penar durante a semana, e quando damos por
isso já é segunda. E o domingo, coitado, lá tem de nos dar colo e
fazer-se de mau da fita para que tenhamos um saco de pancada onde
descarregar as culpas. Às vezes, dentro de um dia, pode estar uma semana
inteira. Há dias que duram até hoje em mim, e outros que foram tão
vazios que ia jurar que tinham sido só metade. Dias que são feitos para
ficarmos presos ao que eles nos puseram à frente, a tentarmos deslindar
que fios são aqueles que se embaraçam todos uns nos outros até serem só
um novelo onde não se encontra o princípio nem o fim. Tentar passar por
ele sem lhe dar a atenção merecida é só uma provocação até que comece a
crescer e fique de um tamanho que nos faz frente. No meio desse novelo,
às vezes aparece um outro pequenino e complexo, e que foi quem fez o
maior às escondidas. Esse novelo pequeno e complexo chama-se culpa. A
culpa aparece disfarçada ao domingo, porque se quer infiltrar onde há
fendas. Começa a espalhar-se silenciosamente para que possa fazer o seu
trabalho sem ser notada, até se esticar para lá do tamanho que nós
suportamos. A culpa é a nossa fraqueza vista de frente. É o resultado do
que fizemos - ou deixámos por fazer -, e que não nos dá descanso.
Imagino que seja isso, enlouquecer. A cabeça sempre à procura de uma
janela para poder respirar um bocadinho, e as portadas a fecharem-se de
par em par, até que se tenha mais tempo e foco para olhar para os
problemas que lá estão dentro. A culpa pode matar quem a tem, e quem
está à frente de quem a tem. É uma arma de arremesso que dispara para
nós e faz ricochete nos outros. Um dia inteiro que nos rouba a
felicidade dos dias que lutaram tanto para o ser. Enlouquecer também
deve ser isso, não termos por onde fugir de nós. Os dias estão cheios de
muitas coisas que falam línguas diferentes. Quando alguém nasce, esse
dia fica feliz para sempre, numa festa anual que nos relembra da nossa
pequenez, por ser indiferente para quem não sabe o que está ali a
acontecer. Mas quando morre uma pessoa de quem gostamos, morre também o
dia em que ela morreu. O dia veste-se de luto todos os anos; e assim vão
sobrando cada vez menos que estejam livres de memória. Os nossos dias
nem sempre são o que nós queremos que eles sejam, mas são nossos. Com
culpa, com luto, com alegria, com tudo e com nada. Fugir deles é a pior
coisa que podemos tentar fazer, porque eles têm pernas longas e hão-de
correr até nos conseguirem apanhar e levar de volta.
O peso dos nossos dias pode assustar muito, mas a falta
deles é bem pior. Se eu tivesse um diário, todos os dias partilhava com
ele a sorte que tinha. Começava assim:
“Querido diário,
hoje, por sorte, o dia voltou a acontecer.”
Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico
*Humorista português
Fonte: https://www.sabado.pt/opiniao/cronistas/bruno-nogueira/detalhe/o-peso-dos-nossos-dias?&utm_source=Newsletter&utm_campaign=Editorial_S%c3%a1bado_EdicaoManha+-+Alive&utm_medium=email&sfmc_segment=Alive&sfmc_term=Alive##utm##
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