Tatiana Salem Levy*
"Sem sangue, a criação perde o sentido, perde
a força
que faz da arte um gesto de saúde.
Em outras palavras, é o sangue que faz da
arte,
da escrita vida pulsante. Num momento em
que o governo quer que os
artistas se calem,
criar será nosso maior grito."
Já faz um
século e meio que Nietzsche cantou a morte de Deus e o niilismo advindo do
vazio deixado por ela. Sem Deus, o homem de repente ficou sem resposta para
perguntas sobre o sentido da existência. Se, afinal, caminhamos todos para o
fim, e ninguém nos redimirá um dia, qual a razão de se estar aqui? Diante do
niilismo gerado pelo esvaziamento de uma crença que transportava a força da
vida para um além, Nietzsche afirmou o valor da arte e, com ele, o valor deste
mundo onde vivemos, não daquele que supostamente viria com a eternidade.
Tanto
tempo depois, parece que Deus está mais vivo do que nunca e anda se metendo
onde não deve. Não por culpa dele, que talvez preferisse descansar no tal além,
mas dos homens, que insistem em trazê-lo para a vida em sociedade, até mesmo
para um lugar de onde havia sido banido, como a presidência de algumas
repúblicas laicas feito a nossa. E, ao levarmos a religião para o Estado,
terminamos por engendrar o movimento contrário ao de Nietzsche, negando o valor
da arte, expulsando-a da polis.
No caos político
dos últimos anos no Brasil, uma parte significativa da população vociferou que
artista era sinônimo de vagabundo acostumado a "mamar nas tetas do
Estado". Vimos crescer um ódio assustador aos artistas, como se fossem o
mal da sociedade. Nem os fascismos do século passado detestaram tanto a arte. O
que aconteceu no Brasil foi um desprezo brutal à expressão artística - claro
que isso se deve também a uma banalização do pensamento, à falta de educação e
contato com a arte, mas não só. Deve-se, acima de tudo, à afirmação de uma
moral religiosa baseada na família tradicional, na suposta ordem, numa
sociedade que se pretende distante da transgressão.
"O governo
que tomou posse no dia 1º já havia
deixado claro não ser amigo das artes,
anunciado cortes na Lei Rouanet, ou da própria lei.
Não teve pena nem vergonha
de extinguir
o Ministério da Cultura e incluir a pasta
no Ministério da Cidadania."
De
repente, são os artistas que se veem diante de um abismo - e com esse abismo
pode advir outro niilismo. Afinal, lutamos tanto para o cinema brasileiro se
expandir, para a literatura ser divulgada e traduzida, para as artes plásticas
circularem pelas maiores instituições internacionais, e agora parece que vão
nos tirar tudo, o fomento sem o qual a arte deixa de existir em qualquer lugar
do planeta? Seremos banidos, excluídos, tratados como seres indesejados?
O governo
que tomou posse no dia 1º já havia deixado claro não ser amigo das artes,
anunciado cortes na Lei Rouanet, ou da própria lei. Não teve pena nem vergonha
de extinguir o Ministério da Cultura e incluir a pasta no Ministério da Cidadania.
Estamos vendo escorrer tudo aquilo em que acreditamos e construímos a duras
penas ao longo das últimas décadas. Quem era vivo nos anos 90 com certeza se
lembra do choque que foi para o audiovisual a política do então presidente
Collor, tornando o cinema brasileiro, que tinha sido tão potente, uma produção
escassa.
É
preciso, mais do que nunca, lembrarmos a potência da arte. Que os artistas do
Brasil acordem todos os dias e se digam que vão resistir, e a melhor forma de
resistir, nesse caso, é continuar criando, transgredindo, reinventando valores,
desorganizando a ordem que acredita que menino deve vestir azul e menina deve
vestir rosa. Nesse momento em que nos sentimos tão desanimados diante da falta
de sentido, devemos criar sentidos, afirmar a estética. Afinal, como disse
Nietzsche em "O Nascimento da Tragédia", "só como fenômeno
estético se justificam a existência e o mundo".
É um bom
momento para (re)lermos Nietzsche e sua filosofia, que busca a afirmação da
existência. Um grande "sim" ao mundo - a este mundo daqui, não a
outro -, é disso que precisamos. Em sua luta contra o niilismo, Nietzsche
encontra na arte a pulsão da vida, a recriação do mundo e dos valores gastos.
"Nietzsche
define o niilismo como falta de uma meta,
falta da resposta ao porquê da
existência.
Uma espécie de doença, sem dúvida,
que mina a alma.
A arte aparece,
então,
como saúde."
Lembremos
Zaratustra, que "aos 30 anos de idade deixou sua pátria e o lago de sua
pátria e foi para as montanhas" ("Assim Falou Zaratustra",
Companhia das Letras, trad. Paulo Cesar de Souza). Dez anos depois, desceu das
montanhas e, ao anunciar que Deus estava morto, anunciou também seu amor aos
homens. Um filósofo poeta que, embora não fosse ouvido pelo povo, continuava
falando, dizendo preciosidades que hoje estampam camisetas, como: "É
preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela
dançante" ou: "Eu acreditaria somente num deus que soubesse
dançar."
Nietzsche
define o niilismo como falta de uma meta, falta da resposta ao porquê da
existência. Uma espécie de doença, sem dúvida, que mina a alma. A arte aparece,
então, como saúde. No pequeno artigo "A Literatura e a Vida", o
filósofo francês Gilles Deleuze retoma essa ideia lançada por Nietzsche e fala
do escritor como um médico. Acho que é esse o papel do artista numa sociedade
que tem se revelado doente na intolerância à diferença, que não aceita os
"espíritos livres" e quer que sejamos todos iguais, não em termos
econômicos, mas em termos morais. A doença da intolerância deprime todos
aqueles que não se enquadram nas regras predefinidas. A arte e sua potência
surgem aqui como forma de resistência, de reinvenção do mundo.
"Onde
não encontrei o que precisava, tive que obtê-lo à força de artifício, de
falsificá-lo e criá-lo poeticamente para mim (- que outra coisa fizeram sempre
os poetas? Para que serve toda a arte que há no mundo?)", afirma Nietzsche
na introdução a "Humano, Demasiado Humano" (Companhia das Letras, trad.
Paulo César de Souza). Este parece um bom caminho para os dias atuais no Brasil
e em todos os países onde voltaram ao poder os valores ultraconservadores cujo
lema "menino de azul e menina de rosa" é apenas a ponta do iceberg.
Foi assim
que Nietzsche inventou como companhia, para manter a alma alegre em meio a
muitos males, os "espíritos livres". Como estamos precisando inventar
mais espíritos livres em meio a tanto conservadorismo! "Ai de nós!",
profetiza Zaratustra, "aproxima-se o tempo em que o homem já não dará à
luz nenhuma estrela". Lutemos, então, contra essa profecia, para, com o
nosso caos, dar à luz muitas estrelas dançantes.
Lembremos
de Chico e Caetano, de Glauber, do Teatro Oficina e de tantos artistas que se
comprometeram durante a ditadura militar em fazer da arte um grito de vida. São
momentos distintos, é verdade. Não estamos numa ditadura, Bolsonaro foi eleito
pelo voto. Isso não nos assusta menos, afinal, grande parte da população está
de acordo com a ideia de que o Estado laico deve ser invadido pela moral
religiosa e não se escandaliza, para dar um exemplo, com o assassinato de um
rapaz na avenida Paulista pelo simples fato de ser homossexual, colocando em
risco a liberdade de cada um.
No trecho
sobre o ler e escrever, afirma o poeta Zaratustra: "De tudo escrito, amo
apenas o que se escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue: e verás que
sangue é espírito". Sem sangue, a criação perde o sentido, perde a força
que faz da arte um gesto de saúde. Em outras palavras, é o sangue que faz da
arte, da escrita vida pulsante. Num momento em que o governo quer que os
artistas se calem, criar será nosso maior grito. E a quem acha que artista é
vagabundo que "mama nas tetas do Estado", indico Nietzsche mais uma
vez, e suas sábias palavras: "Todos os grandes (artistas) foram grandes
trabalhadores, incansáveis não apenas no inventar, mas também no rejeitar,
eleger, remodelar e ordenar." Pablo Picasso dizia que quando a inspiração
chegasse iria encontrá-lo trabalhando, desmitificando, como Nietzsche, a ideia
de que artistas são gênios que não trabalham. Mas há gente parada no tempo,
gente que às vezes até gosta de ir ao cinema ou ao teatro, mas acha que artista
é vagabundo, e aquilo se faz por magia.
A gente
sabe que os próximos anos serão assim: os artistas falam, o pessoal do governo
ri de escárnio. Mas a gente tem que continuar falando assim mesmo, ou melhor:
por isso mesmo. Falando, cantando, escrevendo, pintando, desorganizando,
dançando. Nossa forma de resistir, de existir. Ninguém ouvia Zaratustra e, no
entanto, ele está aqui. Afinal, "existem tantas coisas entre o céu e a
terra com que somente os poetas sonharam!" e os efeitos mais poderosos da
arte, como afirma Nietzsche em "Humano, demasiado humano", são
"dobrar almas, mover pedras, humanizar animais."
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* Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente E-mail: tatianalevy@gmail.com
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* Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente E-mail: tatianalevy@gmail.com
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6059649/espiritos-livres
11/01/2019
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