Em entrevista à CartaCapital, Pedro Serrano critica a proposta de importar os acordos penais do modelo jurídico norte americano.
Ao tomar posse como Ministro
da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro anunciou que levará ao
Congresso Nacional, em fevereiro, sua proposta de Lei Anticrime. O plano
inclui a previsão de operações policiais disfarçadas para combater o
crime, a proibição da progressão de regime para membros de organizações
criminosas armadas e a importação do plea bargain norte americano.
O plea bargain é basicamente
uma negociação entre o Ministério Público e o réu, que concorda em se
declarar culpado em troca de uma acusação menos séria ou uma sentença
menor. Isso evitaria ao Estado os custos de um julgamento e “resolve rapidamente casos criminais nos quais haja confissão“,
afirmou Moro. Estima-se que hoje o instrumento é usado nos Estados
Unidos em até 97% dos acordos da Justiça Federal, na área criminal.
Após a divulgação de sua
proposta anticrime, Moro recebeu apoio do Fórum Nacional de Juízes
Criminais (Fonajuc), instituição formada por juízes estaduais, federais,
militares e trabalhistas, que em nota afirmaram que “as técnicas de
negociação no Direito Penal e Processual Penal são instrumentos
relevantes e fundamentais para a concretização de um Sistema de Justiça
mais efetivo no país”.
A aprovação veio também por parte do
Conselho Nacional de Procuradores Gerais dos Estados e da União, que
apontaram “a Justiça Negocial como alternativa legítima para cumprir, de
forma rápida e segura, a resolução de conflitos” e que o instituto
trará economia de tempo e recursos para o que sistema de justiça
criminal exerça uma tutela penal mais efetiva nos crimes que merecem
esse tratamento.
Porém, nem tudo são flores.
Constitucionalistas e criminalistas já se posicionaram críticos em
relação às medidas. Apesar de parecer ser bom na teoria, em matéria de
Direitos Humanos o plea bargain
é criticado globalmente, sobretudo por não haver suficientes
salvaguardas processuais, o uso de coação e os altos índices de
inocentes que são persuadidos a admitirem a culpa por crimes que não
cometeram.
Nessa entrevista para entender melhor as críticas em relação ao plea bargain e a sua aplicação no sistema jurídico brasileiro, Igor Leone, editor de Justiça da Carta Capital, bateu um papo com Pedro Estevam Serrano,
professor doutor de Direito Constitucional e de Estado na PUC/SP e
autor dos livros “A Justiça na Sociedade do Espetáculo” , “Autoritarismo
e Golpes na América Latina” e o mais recente, “Democracia em Tempos de
Fúria”, em que foi organizador.
Igor Leone – Como você está vendo essa proposta do Sérgio Moro de importar dos Estados Unidos os acordos penais, “plea bargain“?
Pedro Estevam Serrano
– Eu sou crítico a essa medida, tanto no plano jurídico, como no plano
político. Esse é um conceito incompatível com a nossa Constituição, algo
que vai gerar muita distorção, mas principalmente muita injustiça. Essa
proposta é um modelo de realização processual penal que faz parte dessa
onda global de medidas de exceção no interior das próprias democracias.
IL – Mas em que sentido você vê o plea bargain como inconstitucional?
PS – É
inconstitucional porque permite ao Ministério Público transacionar com o
interesse público, o que não é permitido no nosso sistema. Só a lei
pode dispor do interesse público e nunca a vontade administrativa do
agente. Isso pra mim já é um fator importante de inconstitucionalidade,
sobretudo porque a nossa lógica não é a lógica do direito anglo saxão,
nós não temos tradição pra isso.
IL – O que você quer dizer com isso?
PS – Que o que ocorre no Brasil é uma crise de identidade. Nós temos uma tradição europeia, continental, do civil law.
Sempre que o direito anglo saxão foi trazido pra cá, foi de forma
parcial, seletiva e autoritária. Isso ocorre desde a primeira
Constituição da República, quando Campos Salles era Ministro da Justiça,
ele produziu um decreto determinando que a Constituição fosse
interpretada nas suas dúvidas e contradições pelo direito anglo
saxônico. Então veja, sempre houve essa influência saxônica no país, só
que de uma forma péssima.
IL – Por exemplo…?
PS – A própria
Constituição de 34, que foi nossa primeira Constituição democrática a
trazer o voto das mulheres, a universalizar de fato o voto, a trazer os
primeiros direitos sociais da nossa história, incluindo educação. Nessa
mesma Constituição, em seu artigo 138, por conta da influência do debate
norte americano e da concepção de ciência que os norte americanos
venderam pro mundo, ela excluiu expressamente os negros do direito à
educação.
Essa Constituição mostra bem a alma
nacional, de um lado a busca e a criação de direitos para as ondas de
imigração branca vindas da Europa, criando todo tipo de direito para o
branco europeu recém chegado, mas não para o negro que estava aqui faz
tempo.
IL – Que loucura, nunca vi ninguém comentar sobre esse artigo.
PS – É por isso que
quando o movimento negro fala de débito histórico, é algo concreto,
observável por documento constitucional. Somos o único país que traz a
exclusão da negritude de um direito social expressamente na sua
Constituição.
IL – Completamente eugênico mesmo.
PS – Exato. E a
ideia da eugenia chega ao debate público no Brasil não pela Alemanha,
mas pelos Estados Unidos. Isso pra você começar a entender como o
direito anglo saxônico vem sendo usado como forma de suspensão dos
direitos fundamentais e de valores democráticos e humanísticos.
IL – Com o plea bargain não vai ser diferente então.
PS – O que hoje nós
temos é a importação de partes e elementos selecionados do direito penal
anglo saxônico pra cá, mas descolados do sistema como um todo. Trazem
apenas os elementos punitivos, não trazem os protetivos juntos.
IL – A forma como a gente tem feito as delações aqui no Brasil não é uma espécie de plea bargain? Parece que a gente já misturou os dois conceitos.
PS – A delação deveria ser, pela lei, não uma negociação entre réu e Ministério Público. O réu vai, confessa ao MP um crime e com base nessa confissão o MP negocia benefícios. Mas só se dessa confissão vierem provas ou caminhos de obtenção de provas que tragam outros criminosos a baila. É diferente do plea bargain, que significa você em qualquer crime negociar com o MP qual a sua punição. A nossa delação tem sido conduzida na prática como um plea bargain, só que sem regulação de lei.
IL – A delação que a
gente faz aqui se resume a prender a pessoa e forçá-la a delatar. É o
famoso “prende para delatar, solta porque delatou”.
PS – Exato, o que é
praticado é autoritarismo bruto, prender para a pessoa confessar. Uma
forma de obter, ao meu ver, uma confissão por tortura psíquica. É um mix
disso com usar a delação como forma de plea bargain, onde a
pessoa faz uma confissão geral, não relativa ao caso, mas da vida toda
dela. E então recebe benefícios que também estão fora dos previstos em
lei, muitas vezes superiores ao que a lei prevê.
IL – Com o plea bargain a gente vai fazer uma salada aqui no Brasil, pegar um conceito jurídico de fora e bater no liquidificador.
PS – Sim, só que uma
salada bem autoritária no caso. Que vai obter uma eficiência
superficial. Vamos trocar direitos por uma eficiência administrativa
IL – Eu li que mesmo nos Estados Unidos eles estão estudando rever o modelo de plea bargain. É verdade isso?
PS – Sim, o plea bargain
funciona nos Estados Unidos de uma forma muito criticada. Eu estive lá
recentemente dando palestras e debati muito esse tema no meio acadêmico.
O último índice que eu vi é que 97% dos acordos na Justiça Federal
norte americana, na área criminal, são feitos por plea bargain e isso retira o júri.
Acaba trazendo muita injustiça e se
transformando comum nos EUA o pessoal que não cometeu nenhum crime, com
medo de serem condenados em uma justiça tirânica, acabam aceitando penas
de crimes inferiores que não cometeram.
Essa história de quem não deve não
teme é conversa, isso não existe quando você tá sujeito ao olhar de um
terceiro, especialmente um olhar autoritário.
IL – Sim, e o que não falta é autoritarismo por aqui…
PS – O Brasil hoje é terreno fértil para esse tipo de instrumento, na realidade o plea bargain vai
ser usado para produção de injustiças. Hoje em dia é muito vulgar a
gente ouvir promotores e juízes dizendo que é melhor inocentar um
culpado do que culpar um inocente, que é a regra essencial da
democracia. O problema é que isso é completamente distorcido por aqui,
subvertido e depois visto como algo normal.
Isso significa submeter a ordem
jurídica ao poder político, é nazismo. Quando você vai estudar uma ordem
jurídica que tem esse valor, você tá falando que o poder de punir e o
poder político estão acima da Constituição, e isso é uma forma
autoritária de Estado e as pessoas não estão percebendo.
Quando você fala em plea bargain, você está falando que uma
negociação privada entre duas partes vai ser superior à Constituição. É
inaceitável.
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Reportagem Por Igor Leone -14 de janeiro de 2019
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