Por Maria Cristina Fernandes | De São Paulo
Os
oficiais do Exército brasileiro creditam à televisão, aos bancos, ao Congresso Nacional
e às multinacionais, nesta ordem, o maior grau de influência política no país.
Indagados que instituições deveriam exercê-la, os oficiais se incluem. Colocam
as Forças Armadas em quarto lugar entre as aquelas que deveriam ter mais peso
político, depois do Congresso, da academia e do Judiciário.
Confrontados
com a afirmação do ex-ministro da Guerra do Estado Novo e ex-candidato à
Presidência da República, general Pedro Aurélio de Góis Monteiro, de que a política
deveria ser mantida fora dos quartéis, a maioria dos oficiais do Exército
manifestou discordância. A maior aderência à afirmação de que "cabe ao
Exército agir, mesmo que politicamente, quando a pátria estiver em perigo"
se dá entre jovens tenentes (63,5%). A adesão à tese agrega menos da metade
(48,7%) dos coronéis e generais.
Os dados
estão em "A Construção da Identidade do Oficial do Exército
Brasileiro", publicado no ano passado pela editora da PUC-RJ. O autor, o
major Denis de Miranda, é professor da Academia Militar das Agulhas Negras,
escola de formação de oficiais e única porta para o generalato na Força. Por lá
passaram o presidente Jair Bolsonaro (turma de 1977) e todos os generais do
primeiro escalão, o vice Hamilton Mourão (1975), o ministro do Gabinete de
Segurança Institucional, Heleno Ribeiro (1969), o titular da Secretaria de
Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz (1974) e o da Defesa, Fernando de
Azevedo e Silva (1976).
O livro é
resultado do mestrado em sociologia das instituições militares, da PUC-Rio,
incentivado por convênio entre os Ministérios da Defesa e da Educação. Para
escrevê-lo, Miranda enviou 2.015 formulários para oficiais formados na Aman.
Recebeu de volta 643, o que deu à pesquisa uma margem de confiança de 98%.
Entre aqueles que responderam, estão 90 generais e coronéis, 249
tenentes-coronéis e majores, 216 capitães e 88 tenentes.
No prelo,
na mesma editora, está novo levantamento, ainda mais amplo, encabeçado pelo
coordenador do núcleo de sociologia das instituições militares, Eduardo de
Vasconcellos Raposo. Os primeiros tabulamentos sugerem uma convergência entre
os valores militares e aqueles que se fizeram vitoriosos no eleitorado
nacional.
A
pesquisa de Miranda mostra que a geração de oficiais pós-redemocratização quis
se notabilizar pelas operações militares propriamente ditas, mas foi tragada
por atividades como o combate à seca e as operações de garantia da lei e da
ordem. Mais da metade dos entrevistados reconhece que as ações subsidiárias
lhes trazem mais reconhecimento da sociedade.
Esse
perfil explica por que generais do Alto Comando do Exército têm demonstrado
preocupação com a politização dos quartéis. A judicialização da política, como
se viu, levou à politização do Judiciário. Não parecem infundados os temores de
que a militarização da política leve à politização dos militares.
A
corporação que se vê mais reconhecida em atividades civis e advoga o dever de
agir politicamente quando a 'pátria' estiver em perigo revela sua maior
insatisfação com os seus rendimentos. Este batalhão de insatisfeitos terá uma
proeminência política inédita nos últimos 30 anos num governo supostamente
comprometido com o ajuste fiscal.
A tabela
de soldos das Forças Armadas é parte da explicação para o primeiro tiro do
general Mourão no anunciado conflito com o Judiciário - "Eles não conhecem
o Brasil" (Valor, 28/12/2018). O soldo de um tenente (R$ 7,5 mil) equivale
a um terço do salário de entrada de carreiras do Judiciário e do Executivo.
A
insatisfação salarial mitiga o espírito de corpo dos oficiais. Entre tenentes,
grupo que tem menos de dez anos na carreira, mais da metade mudaria de carreira
se pudesse preservar a estabilidade. No grupo de coronéis e generais, que já
têm mais de 30 anos de Exército e estão às portas da aposentadoria, a intenção
de virar a vida pelo avesso atinge apenas um em cada dez.
"Se
não fosse militar, qual outra carreira seguiria?" A resposta demonstra o
desacerto entre o espírito das Forças Armadas e o coração liberal do ministro
Paulo Guedes. Ao ingressar na carreira, o oficial tem, a seu dispor, todo o
plano de carreira das décadas seguintes, com as promoções e aperfeiçoamentos
que precisará fazer para atingi-las. É essa mentalidade, e não o apetite da
livre-iniciativa, que prevalece. Sem a farda, mais da metade rumaria para fazer
um concurso público. Entre os mais jovens essa opção abocanha 72,7% de adesão.
Esse
espírito de corpo se dilui no momento em que o Exército é mais endógeno do que
nunca. A pesquisa de Miranda mostra que 45% dos oficiais são filhos de
militares. Na década de 1960 a fatia de cadetes da Aman cujos pais estavam na
carreira pouco ultrapassava um terço. Um outro estudioso das Forças Armadas e
professor da Universidade Federal de São Carlos, Piero Leirner, atribui a essa
endogenia o caldo de receptividade da base das Forças Armadas à candidatura de
Jair Bolsonaro.
A
primeira vez em que se deu conta disso foi em 2012, quando ministrou curso na
Fundação Getúlio Vargas, no Rio, para uma turma majoritariamente de militares.
Um major reclamou da Comissão da Verdade. Mais tarde, em viagem de pesquisa a
São Gabriel da Cachoeira (AM), região que vivia sob uma onipresente liderança do
general Heleno Ribeiro, o clima era o mesmo.
O
relatório da Comissão colocaria sob o mesmo carimbo os brigadeiros Eduardo
Gomes, patrono da Aeronáutica, e João Paulo Burnier, cuja ficha corrida vai da
tentativa de golpe contra Juscelino Kubitschek à trama que planejava explodir o
gasômetro do Rio em 1968 para incriminar os dissidentes da ditadura.
O
relatório também teria abespinhado a geração da caserna que subiu a rampa com
Bolsonaro por ter colocado no mesmo balaio Cyro e Leo Etchengoyen,
respectivamente tio e pai do ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional
do governo Michel Temer, Sérgio Etchengoyen. O primeiro foi apontado pelo
coronel Paulo Malhães como um dos responsáveis pelo centro de tortura de
Petrópolis, que ficaria conhecido como Casa da Morte, mas o irmão foi chefe do
Estado-Maior sem registro de envolvimento com tortura.
Ao
relatório some-se a reação da ex-presidente Dilma Rousseff ao manifesto do
Clube Militar contra o documento. A determinação para que a entidade, de
caráter privado, se retratasse, foi seguida por outro manifesto, ainda mais
duro. Foi depois desses fatos que Bolsonaro compareceu, pela primeira vez como
convidado, à uma cerimônia de formatura da Aman, em 2014. Dava início ali a uma
campanha marcada pela presença em cerimônias militares de toda ordem, às quais
não compareceria sem a anuência dos comandantes.
O
capitão, que ao longo de seus seis mandatos anteriores como deputado federal
não ultrapassara as plateias de mulheres e viúvas de militares, cativaria, ao
longo do sétimo, as bases das Forças Armadas e seu comando.
Na
pesquisa do major Miranda, o tema aparece na caixinha 'revanchismo político'
como um dos maiores problemas das Forças Armadas, ainda que atrás das
limitações materiais dos 'soldos baixos' e 'orçamento inadequado'. Serviu de
amálgama a uma corporação, que desgastada pela ditadura, se construiu em torno
de valores que buscavam diferenciá-la das instituições civis.
Se o
revanchismo, a corrupção da esquerda à direita e a crise pavimentaram o apoio
militar, não bastarão como norte para o governo. Na bússola do presidente não
faltam ímãs que o empurram em direções opostas, a começar pela abertura ao
investimento externo e à aliança incondicional com Donald Trump.
Ao longo
das três décadas em que os militares estiveram longe do poder, o anticomunismo
perdeu lugar para a defesa da soberania contra a internacionalização das
organizações não governamentais.
O
discurso que embala a revisão da reserva Raposa Serra do Sol vem daí. Leirner identifica
na ascensão da Batalha dos Guararapes, do século XVII, em que as três raças se
uniram para derrotar os batavos, a construção simbólica de um exército em busca
de inimigos externos.
Parece um
discurso desbotado, particularmente na era de um militar bandeirante, como
Bolsonaro, mas ainda encontra ressonância. A presença das multinacionais identificada
na pesquisa de Miranda como um dos interesses que exercem influência demasiada
no país, é uma evidência clara das pressões para que o governo Bolsonaro se
encaixe nos moldes do ultradireitismo nacionalista que tem em Trump e em Viktor
Orbán, o primeiro-ministro da Hungria que prestigiou sua posse, como os
principais representantes.
O
nacionalismo, no entanto, está longe de unificar os militares do governo, a
começar por Hamilton Mourão, de quem se registram, ao contrário dos demais
generais do governo, posições mais alinhadas com o pró-americanismo pregado
pelo novo Itamaraty do chanceler Ernesto Araújo.
Um posto
avançado desta batalha já se estabeleceu na Petrobras. O novo presidente,
Roberto Castello Branco, foi ungido por Paulo Guedes para comandá-la porque
comunga de suas convicções liberais.
O
ministro da Economia já deixou claro que pretende se valer da cessão onerosa
para recompor o caixa do governo, ainda que sua regulamentação esteja pendurada
no Congresso. Duas semanas antes da posse, no entanto, o almirante Bento Leite
de Albuquerque Junior, nomeado ministro de Minas e Energia, pediu à empresa que
providenciasse acomodações para que lá se instalasse com nove assessores. A
presença de um cozinheiro na comitiva é um sinal mais do que eloquente da
batalha que está por vir.
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Maria
Cristina Fernandes, jornalista do Valor, escreve neste espaço quinzenalmente
Foto: Elson Provazi
E-mail:
mcristina.fernandes@valor.com.br
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6047841/os-valores-da-farda-que-volta-ao-poder 04/01/2019
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6047841/os-valores-da-farda-que-volta-ao-poder 04/01/2019
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