Anselmo Borges*
Também fora de Lisboa ou do Porto, há
iniciativas de relevância mundial, que merecem a atenção de todos, também como
exemplo.
Hoje, quero felicitar, muito sinceramente,
Fafe, na pessoa do seu ilustre Presidente, Raul Cunha. Porque Fafe já não é símbolo
da “justiça de Fafe”. É símbolo da justiça, sim, mas da Terra Justa: Encontro
internacional de Causas e Valores da Humanidade. Em Fafe, com inexcedível força
e dignidade, celebra-se e combate-se pela cidadania universal, na liberdade, na
justiça e na paz. Concretamente através dessa iniciativa anual, por onde têm
passado grande figuras de renome, como António Guterres, o cardeal Maradiaga,
Manuela Eanes, Eduardo Lourenço, Leonor Beleza, Artur Santos Silva... Ali têm
sido homenageadas grandes instituições de cultura e solidariedade: a Fundação
Calouste Gulbenkian; a Fundação António Champalimaud; o IAC (Instituto de Apoio
à Criança); a Agenzia Habeshia, uma ONG fundamental para salvar vidas de
refugiados; a UNICEF, uma agência das Nações Unidas, essencial na defesa dos
direitos das crianças, tantas vezes espezinhados; Talitha Kum, a organização
internacional que trabalha em rede contra o tráfico de pessoas...
Deixo aí algumas chaves de leitura deste
prestigiado Encontro Internacional.
1. Terra Justa. Aí está uma utopia. Mas qual
é a função da utopia? Ela tem duas funções principais: constatar o ainda não do
que deve ser e, ao mesmo tempo, obrigar a lutar pela transformação do presente
a caminho de um futuro com a realização desse dever-ser.
2. Porquê? Porque se trata do imperativo de
Causas e Valores da Humanidade na Terra. E a Terra há só uma, uma só Terra: a
Terra da Humanidade. Há 13.700 milhões de anos foi o Big Bang. A Terra terá uns
5.000 milhões de anos, a vida apareceu há uns 4.000 milhões de anos e, depois,
a evolução continuou e há uns 150 mil anos aparecemos nós, o Homo sapiens
sapiens — acrescento sempre: e demens demens (sapiente sapiente e demente
demente). De qualquer modo, é em nós, seres humanos, autoconscientes, que este
gigantesco processo da evolução sabe de si e toma consciência de si.
O ser humano será sempre objecto de espanto para si próprio. Talvez tenha sido Pascal quem de modo mais pertinente e lúcido “definiu” a condição humana, ao escrever que se situa algures entre “o nada e o infinito” (le néant et l’infini). Por isso, o ser humano é constitutivamente o ser da pergunta e, de pergunta em pergunta, pergunta ao Infinito pelo Infinito, isto é, de um modo ou outro, por Deus. É nesta sua condição que eu vejo o fundamento da dignidade humana. De facto, se o ser humano, finito, frágil, débil, mortal, pergunta ao Infinito pelo Infinito, é porque tem algo de infinito nele e, por isso, não é da ordem das coisas, porque é fim. Na verdade, o que é que há para lá do Infinito? A pessoa humana é fim e não meio. Como escreveu Kant, as coisas são meios para outra coisa e, assim, têm um preço; o ser humano é fim e não meio e, por isso, não tem preço, mas dignidade. Aí está, pois, a resposta para a pergunta: Porquê o combate pela Terra Justa? Porque é o combate pela dignidade de todas as pessoas.
O ser humano será sempre objecto de espanto para si próprio. Talvez tenha sido Pascal quem de modo mais pertinente e lúcido “definiu” a condição humana, ao escrever que se situa algures entre “o nada e o infinito” (le néant et l’infini). Por isso, o ser humano é constitutivamente o ser da pergunta e, de pergunta em pergunta, pergunta ao Infinito pelo Infinito, isto é, de um modo ou outro, por Deus. É nesta sua condição que eu vejo o fundamento da dignidade humana. De facto, se o ser humano, finito, frágil, débil, mortal, pergunta ao Infinito pelo Infinito, é porque tem algo de infinito nele e, por isso, não é da ordem das coisas, porque é fim. Na verdade, o que é que há para lá do Infinito? A pessoa humana é fim e não meio. Como escreveu Kant, as coisas são meios para outra coisa e, assim, têm um preço; o ser humano é fim e não meio e, por isso, não tem preço, mas dignidade. Aí está, pois, a resposta para a pergunta: Porquê o combate pela Terra Justa? Porque é o combate pela dignidade de todas as pessoas.
3. Todos os seres humanos são dignos e a
Terra é de todos. E aqui colocase para todos um dos problemas maiores: a
questão da ecologia, do meio ambiente. E entra a política. Aristóteles definiu
o ser humano como “animal político”. Porquê? Porque, ao contrário dos outros
animais, que produzem sons, exprimindo prazer ou desprazer, o Homem tem
linguagem duplamente articulada, pela qual debate o bom e o mau, o justo e o
injusto, o digno e o indigno. Já se tornou claro que hoje, tomando consciência
de que há uma só Terra e uma só Humanidade, sendo todos igualmente dignos, a
política tem de ser global, tem de ter o horizonte de um mundo global. Só há, portanto,
futuro com uma Governança Global.
4. O ser humano é como uma árvore: somos
enraizados, temos um lugar de nascimento, uma história única, estamos situados,
mas, ao mesmo tempo, estamos abertos, ilimitadamente abertos aos outros, a
todos os outros, a possibilidades sem fim. Nesta abertura, mostra-se que somos
constitutivamente em relação. Fazemo-nos uns com os outros. A nossa relação é
local e global, nesse enraizamento de uma situação concreta e única e numa
abertura sem fim.
5. Característica essencial do ser humano é a
neotenia, isto é, nascemos prematuros, sendo esta a condição de possibilidade
de sermos o que somos: humanos. Enquanto os outros animais já nascem feitos, o
ser humano nasce por fazer. Então, qual é a sua missão e tarefa? Fazer-se a si
mesmo. Fazendo o que fazemos, estamos sempre a fazer-nos a nós próprios, de tal
modo que no fim pode resultar uma obra de arte ou, permita-se a expressão, uma
porcaria. Como devemos fazer-nos? Uma vez que somos livres — auto-possuímonos e
somos responsáveis —, devemos fazer-nos bem. Concretamente, fazermo-nos com a
interligação da bondade e da razão. De facto, a bondade sozinha não abre
horizontes e pode não abrir caminhos; a razão sozinha pode ser cruel. Da
conexão da razão e da bondade resultará certamente uma Humanidade boa, justa,
livre e a viver em paz.
6. Já não há Deus? Deus, ao contrário do que
se pensa e diz, existe, o que se passa é que, como reflectiu o filósofo G.
Agamben, tornou-se Dinheiro. E o ídolo Dinheiro é o valor que mede todos os
outros valores, afirmando-se acima deles. Por isso, o Papa Francisco não se
cansa de repetir, na linha do que disse Jesus, que não é possível servir a
Deus, Pai-Mãe de todos os homens e mulheres, interessado no bem de todos, e
servir o Dinheiro enquanto o novo único deus. A financeirização especulativa da
economia “mata” e faz um número incontável de vítimas. A política tem, pois, de
ser acompanhada da ética. E, mais uma vez, precisamos urgentemente de uma
Governança Global (não digo um Governo Mundial). De facto, problema maior hoje
é que os mercados são globais, mas a política é local, nacional, quando muito,
regional. Como se pode regular assim os mercados?
7. Last but not least, é cada vez mais
urgente o diálogo inter-religioso, como desde há anos não se cansa de sublinhar
o célebre teólogo Hans Küng, autor principal da “Declaração para uma Ética
Mundial”, aprovada pelo Parlamento Mundial das Religiões em Chicago, em 1993:
“Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre
as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as
religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso
planeta sem um ethos global, um ethos mundial.”
É claro: sem um novo ethos, isto é, sem uma
nova atitude ética, concretamente, sem justiça social global, continuará a
violência, a guerra, e não haverá paz.
*Anselmo
Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado o no DN | 20 JAN 2019
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado o no DN | 20 JAN 2019
Fonte: https://www.dn.pt/edicao-do-dia/20-jan-2019/interior/terra-justa-causas-e-valores-da-humanidade--10461080.html?target=conteudo_fechado
Nenhum comentário:
Postar um comentário