Anselmo Borges*
A Igreja só se justifica enquanto vive, transporta e entrega a todos,
por palavras e obras, o Evangelho de Jesus, a sua mensagem de dignificação de
todos, mensagem que mudou a História.
Para se entender o que se passa com as narrativas dos Evangelhos à volta
do Natal, há pressupostos fundamentais.
1. Em primeiro lugar, a fé cristã dirige-se a
uma pessoa, Jesus confessado como o Cristo (o Messias) e, através dele, a Deus
que Jesus revelou como Pai e poderemos também dizer como Mãe, com todas as
consequências que daí derivam para a existência.
O que diz o Credo cristão, símbolo da fé? “Creio em Jesus Cristo.
Gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Nasceu da Virgem Maria, padeceu sob
Pôncio Pilatos, foi crucificado, ressuscitou ao terceiro dia.” Segundo a fé
cristã, isto é verdade? Sim, é verdade. Mas segue-se a pergunta fundamental: o
que deriva dessas afirmações para a nossa existência de homens e mulheres,
cristãos ou não? O Credo é teologia dogmática, especulativa, em contexto
linguístico da ontologia grega. Ora, a teologia dogmática tem que ver com
doutrinas e dogmas, com uma estrutura essencialmente filosófica. Pergunta-se:
os dogmas movem alguém, convertem alguém, transformam a existência para o
melhor, dizem-nos verdadeiramente quem é Deus para os seres humanos e estes
para Deus?
Exemplos mais concretos, um do Antigo Testamento e outro do Novo, até
para se perceber a passagem do universo hebraico em que Jesus se moveu e o
universo grego no qual aparecem redigidos os Evangelhos. No capítulo 3 do livro
do Êxodo aparece a manifestação de Deus na sarça ardente e Moisés dirige-se a
Deus: se me perguntarem qual é o teu nome, que devo responder-lhes? E Deus: “Eu
sou aquele que sou”. Dir-lhes-ás: “Eu sou” enviou-me a vós. A fórmula em hebraico:
ehyeh asher ehyeh (“eu sou quem sou”, “eu sou o que sou”) é o modo de
dizer que Deus está acima de todo o nome, pois é Transcendência pura, que não
está à mercê dos homens, mas diz também (a ontologia hebraica é dinâmica) o que
Deus faz: Eu sou aquele que está convosco na história da libertação, que vos
acompanha no caminho da liberdade e da salvação. Depois, com a tradução dos
Setenta, compreendeu-se este ehyeh asher ehyeh como “Eu sou aquele que
é”, “Eu sou aquele que sou”, o Absoluto. Filosofando sobre Deus, a partir
daqui, Santo Tomás de Aquino dirá que Deus é “Ipsum Esse Subsistens” (O próprio
ser subsistente), Aquele cuja essência é a sua existência. Isto é verdade, mas
significa o quê para iluminar a existência? Perdeu-se a dinâmica do Deus que
está presente e acompanha a Humanidade na história da libertação salvadora.
No Novo Testamento, João Baptista, preso, mandou os discípulos perguntar
a Jesus se ele era o Messias. Jesus não afirmou nem negou. Mas deu uma resposta
existencial, prática: “Ide dizer-lhe o que vistes e ouvistes: os coxos andam,
os cegos vêem, a Boa Nova é anunciada, a libertação avança, a salvação está em
marcha”.
O que é que isto significa? A teologia, a partir da Bíblia, é, antes de
mais, teologia narrativa e não dogmática. Quer dizer: tem uma estrutura
existencial, histórica. Na teologia especulativa, o centro de interesse é o
ser; na teologia narrativa, o decisivo é o que acontece. Assim, na perspectiva
cristã, o essencial consiste na pergunta: O que é que acontece quando Deus está
presente? Na linha dogmático-doutrinal, exige-se e até se pode dar um
assentimento intelectual, subordinando-se, mas a existência continua
inalterada. Corre-se então o perigo de uma “fé” em fórmulas doutrinais
coisistas, petrificadas, sem qualquer transformação da vida, que é o que
acontece tão frequentemente. Ora, a vida cristã, se quiser ser verdadeiramente
cristã, no discipulado de Jesus, tem de ser determinada mais pela ortopráxis do
que pela ortodoxia (sem menosprezo, evidentemente, pela ortodoxia, segundo uma
hermenêutica adequada): Jesus louvou a cananeia pela sua fé, que não era
ortodoxa, deu como exemplo o samaritano, que não seguia a ortodoxia, mas
praticava a misericórdia, e, sobretudo, leia-se o Evangelho segundo São Mateus,
no capítulo 25 sobre o Juízo Final, no qual não há perguntas sobre fórmulas
teóricas religiosas, mas sobre a prática: “Destes-me de comer, de beber,
vestistes-me, visitastes-me na cadeia e no hospital…”.
2. Não há figura mais estudada do que Jesus
Cristo e não há hoje nenhum historiador sério que negue a sua existência
histórica. E sabe-se que frequentava a sinagoga, trabalhou no duro como tekton,
que é mais do que um carpinteiro (ele trabalhava a madeira e outros materiais,
tanto na construção de uma casa como de instrumentos agrícolas), portanto,
poderíamos dizer: um artesão.
Fez a experiência funda e única de Deus como Abbá, Paizinho,
querido Papá, que ama com amor de pai e de mãe. Em seu nome, quando tinha pouco
mais de 30 anos, anunciou o Evangelho (notícia boa e felicitante da parte de
Deus para todos) e o Reino de Deus, que é o reino da justiça, da paz, da
fraternidade, da realização plena de todos os homens e mulheres. Fê-lo por
palavras e obras para todos, a começar pela proximidade em relação aos mais
fracos, pobres, abandonados, impuros, heréticos… Enfrentou a religião oficial
do Templo, escandalizando aqueles que viviam da religião explorando o povo. Foi
condenado pelos sacerdotes, que não o toleravam, e foi crucificado pelo poder
imperial romano. Morreu como blasfemo religioso e subversivo social e político.
Depois, mais uma vez, lembro E. P. Sanders, da Universidade de Oxford, que, na
sua obra A figura histórica de Jesus, quis dar uma visão convincente do
conjunto da vida do Jesus real, portanto, apenas a partir da história,
independentemente da fé. Ele conclui que é possível saber que o centro da
mensagem de Jesus foi o Reino de Deus, que entrou em conflito com o Templo, que
compareceu perante Pilatos e que foi executado. Mas, continua, também sabemos
que, “depois da sua morte, os seus seguidores fizeram a experiência do que
descreveram como a ‘ressurreição’”: aquele que tinha morrido realmente apareceu
como “pessoa viva, mas transformada”. “Acreditaram nisso, viveram-no e morreram
por isso”. Assim, criaram um movimento, que cresceu e se estendeu pelo mundo e
mudou a História. Grande parte da Humanidade foi atingida por esse movimento e
pela esperança que transporta. Não se pode esquecer, muito menos ignorar, que
da biografia de alguém faz parte a sua Wirkungsgeschichte, na reflexão
de Hans-Georg Gadamer, isto é, a história dos efeitos dessa vida ou, por outras
palavras, as consequências dessa vida na História.
A experiência pascal — Jesus, o crucificado, está vivo em Deus para
sempre — foi avassaladora para os discípulos. São Paulo fez também essa
experiência e, assim, de perseguidor passou a apóstolo, percorrendo 25.000
quilómetros para anunciar a Boa Nova. O que vale um morto? Nada. O que vale um
crucificado? Ainda menos. Mas, se Jesus, o crucificado, está vivo em Deus, isso
significa o aval de Deus a tudo quanto Jesus disse e fez, Deus ratifica a sua
pessoa e a sua mensagem. Então, se Jesus, o crucificado, vale para Deus, todos
valem, concluindo Paulo que “já não há judeu nem grego, homem ou mulher,
escravo ou livre”, pois todos valem para Deus: “foi para a liberdade que Cristo
nos libertou”, “já não és escravo, mas filho; e, se és filho, és também
herdeiro, por graça de Deus”. Ernst Bloch, o ateu religioso, um dos maiores
filósofos do século XX, viu bem: “O cristianismo venceu mediante a proclamação:
‘Eu sou a Ressurreição e a Vida’”.
A Igreja só se justifica enquanto vive, transporta e entrega a todos,
por palavras e obras, o Evangelho de Jesus, a sua mensagem de dignificação de
todos, mensagem que mudou a História.
3. A História lê-se de trás para a frente, a
partir do princípio, evidentemente, mas tem sobretudo de ser lida do fim para o
princípio. Portanto, com a história e a razão hermenêutica. No caso de Jesus e
do cristianismo, essa leitura é essencial, para se não cair em alçapões
mortais.
Frequentemente, com certas formulações dogmáticas, acabar-se-ia por
fazer concretamente de Jesus e de sua mãe, Maria, autênticos robôs, com tudo
pré-sabido e pré-determinado. Ora, evidentemente, no princípio, Maria e José
não sabiam quem era aquele menino a quem deram o nome de Jesus e perguntaram
como todos os pais: o que será deste filho? Ele ia crescendo e umas vezes
entendiam o que estava a acontecer e outras vezes não entendiam. Está no
Evangelho segundo São Lucas, no relato de Jesus perdido no templo: “Filho,
porque nos fizeste isto? Olha que teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura.
Ele respondeu: Não sabíeis que devia estar na casa de meu Pai? Mas eles não
compreenderam as palavras que lhes disse”. E Jesus ia crescendo “em sabedoria,
em estatura e em graça”. E no Evangelho segundo São Marcos: “E quando os seus
familiares ouviram isto, saíram a ter mão nele, pois diziam: Está fora de si”.
Os Evangelhos escrevem sobre realidade histórica, mas foram escritos por
quem, à luz do fim, já acreditava que Jesus é, na confissão de São Pedro, “o
Filho do Deus vivo”. Concretamente no que se refere aos Evangelhos ditos da
infância, é necessário ter em atenção a sua significatividade mais do que a
historicidade. De facto, eles são construções teológicas, colocando no
princípio a revelação do fim: Jesus é o Messias. Se é o Messias, nele
realizam-se as profecias e as promessas de Deus. Assim:
3.1. O que é o Natal? Sim. É “um novo começo”,
como bem viu o famoso teólogo Hans Küng, com quem falei várias vezes.
Como se escreve no Evangelho segundo São João, “No princípio era o Logos (a Palavra) e o Logos (a Palavra) era Deus” — repare-se que não se diz que é ho theós, o Deus em si mesmo, mas theós, sem artigo, Deus, divino: “a Palavra é divina”. “E a Palavra fez-se carne”. Assim, Jesus é Deus presente, a revelação, a manifestação visível do Deus invisível: Deus fez-se humano, história, neste homem concreto que é Jesus de Nazaré.
Tive o privilégio de ter tido como professor o maior teólogo católico do século XX, Karl Rahner, que escreveu: “Quando dizemos ‘é Natal’, estamos a dizer: ‘Deus disse ao mundo a sua palavra última, a sua mais profunda e bela palavra numa Palavra feita carne’. E esta Palavra significa: amo-vos, a ti, mundo, e a vós, seres humanos.”
3.2. Como foi o seu nascimento? Maria é virgem?
Jesus teve irmãos? Foi também a Karl Rahner que ouvi pela primeira vez que os
Evangelhos e a teologia não são tratados de anatomia.
Diz o Evangelho segundo São Lucas, referindo a admiração dos seus conterrâneos, quando Jesus começou a pregar: “Donde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós? E isto parecia-lhes escandaloso.”
Maria é bem-aventurada, não por ser a mãe de Jesus, mas porque acreditou e se converteu à mensagem do seu Filho, como se lê no Evangelho segundo São Lucas: “Enquanto Jesus falava, uma mulher, levantando a voz do meio da multidão, disse: Bem-aventuradas as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram! Ele, porém, retorquiu: Bem-aventurados, antes, os que escutam a Palavra de Deus e a põem em prática”.
Outro jesuíta, filósofo e teólogo, Juan Masiá, disse, neste contexto, o essencial: Maria é bem-aventurada “ao conceber com José a Jesus por cooperação com o Espírito Santo. Agraciada ao dar à luz Jesus e os seus irmãos e irmãs. Salve!, Maria e José, agraciados e abençoados, com todas as mães e pais que recebem como um dom do Espírito os filhos que procriam e, ao gerá-los, consumam a virgindade simbólica que se realiza na maternidade e na paternidade. Porque não é incompatível a união dos progenitores com a acção do Espírito: a criatura nasce pela união dos seus progenitores e pela graça, a força, do Espírito Santo”.
Acrescenta: “Toda a criatura nasce em graça original. Maria não é uma excepção. O chamado pecado original não é originário nem mancha. O seu nome exacto é o pecado do mundo. A criatura, que nasce sem nenhuma mancha, vem à luz num mundo no qual já é vasta uma rede de pecado. Como quem entra numa sala de fumadores e se contamina com o fumo”.
3.3. Quando nasceu? Ninguém sabe exactamente, mas
terá sido entre o ano 6 e o ano 4 a.C. Parece paradoxal, mas isso deve-se a um
erro do monge Dionísio, o Exíguo, quando no século VI quis estabelecer
precisamente a data do nascimento de Jesus.
Evidentemente, não se pode dizer que nasceu no dia 25 de Dezembro. Esse dia do Natal de Jesus foi fixado no século III em substituição da festa pagã do Sol Invicto, porque Jesus é que é o verdadeiro Sol, a Luz invencível.
3.4. Onde nasceu? É quase certo que Jesus nasceu
em Nazaré, por isso lhe chamavam o Nazareno. Mas, se ele, segundo a fé, é o
Messias, então ele é o verdadeiro rei, da linhagem de David, que era de Belém.
E puseram-no a nascer em Belém.
3.5. Os pastores foram os primeiros avisados,
porque Deus manifestou a sua salvação a todos, a começar pelos que constituíam
a classe baixa dos pequenos e pobres e viviam à margem da prática religiosa.
3.6. E os magos vieram do Oriente? E quantos
eram? E viram uma estrela sobre a manjedoura?
Será inútil procurar nessa data algum sinal especial no céu, porque, mais uma vez, os Evangelhos também não são nenhum tratado de astronomia. Eles vêm do Oriente, porque “ex Oriente lux” e Jesus é a verdadeira luz. E o salvador veio para todos, também para os pagãos. E Herodes não precisava de preocupar-se com a notícia, porque Jesus é rei, mas o seu reino implica um reinado de serviço e não de domínio.
Será inútil procurar nessa data algum sinal especial no céu, porque, mais uma vez, os Evangelhos também não são nenhum tratado de astronomia. Eles vêm do Oriente, porque “ex Oriente lux” e Jesus é a verdadeira luz. E o salvador veio para todos, também para os pagãos. E Herodes não precisava de preocupar-se com a notícia, porque Jesus é rei, mas o seu reino implica um reinado de serviço e não de domínio.
3.7. E, claro, a chamada fuga para o Egipto não
aconteceu, é apenas uma metáfora para dizer que Jesus é que é o verdadeiro novo
Moisés, porque é o Libertador definitivo de toda a escravidão e opressão,
incluindo a libertação da morte. Como Jesus não morreu para o nada, mas para a
plenitude da vida em Deus, com a fé nele nasceu para todos a esperança da vida
plena e definitiva em Deus.
4. Não me preocupa que se diga que sou
herético. A única pena que tenho é a de não ser suficientemente cristão.
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Padre e Professor universitário de Filosofia
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