Ao se aproximar dos 80 anos Liev Tolstoi
não suporta mais sua mulher, Sophie Behrs, que foi, no entanto, uma
esposa generosa. Não sacrificou ela suas próprias ambições literárias
para se submeter àquelas do seu genial marido, concebendo uma quinzena
de filhos? Mas os gênios reagem sempre de maneiras curiosas: em pleno
inverno, em novembro de 1910, ele foge. Deixa furtivamente sua suntuosa
propriedade de Iasnaia Poliana, ao sul de Moscou, para tomar o trem e
começar uma nova vida. Mas o que vai encontrar é a morte.
O trem não tem aquecimento. Tolstoi
tosse, a febre o queima. Ele começa a morrer. Queimando de febre, ele é
retirado do trem na pequena estação de Astapovo. O chefe da estação o
instala em um quarto no rés do chão. Tolstoi é um homem célebre nesse
tempo. Os telégrafos crepitam. Em Astapovo desembarcam hordas de
ministros, jornalistas, aduladores, acadêmicos, vindos do mundo inteiro.
Sophie, a esposa do escritor, chega também. De sua imensa família ele
tolera apenas sua filha Sacha. A neve cai. O mundo está todo branco.
Sacha
anota os últimos pensamentos do pai. Depois sua palavra se torna
inaudível. Então Tolstoi começa a escrever com a ponta dos dedos sobre
os lençóis da cama. Rapidamente, como se desejasse comunicar seus
últimos pensamentos no momento em que vai entrar no silêncio de Deus. O
que ele quis nos dizer escrevendo com a ponta dos dedos sobre os
lençóis? Foi o último manuscrito do velho autocrata magnífico e
insuportável, o homem que se equiparou a Homero, Shakespeare, Cervantes,
Victor Hugo.
Essa última imagem de Tolstoi é fiel à alma
complicada do grande russo. No âmago desse homem estranho se entrechocam
todas as contradições. O romancista é genial, mas quando fala de
filosofia é pueril. Ele é bom e muito cruel. Foi um soldado intrépido no
Cáucaso e um pacifista exaltado. Um coração terno e uma alma trágica,
um aristocrata e um anarquista, um homem muito rico que não se consola
com o fato de não ser pobre.
Para um escritor, a multiplicidade
desses diferentes impulsos é um ganho. Se ele tem necessidade de um
avaro, ele mesmo é avaro. Se deve criar um tipo generoso, ele é um mão
aberta. Se deseja descrever um tipo libertino levado pelo sexo, ele tem
um na mão, mas se precisa de um asceta encontra o modelo no fundo de si
mesmo.
Do seu estoque, que usa à vontade, ele extrai um idiota ou
uma figura sutil, um cristão ou um ateu, um aristocrata ou um camponês
com uma longa barba branca. Analisemos sua obra-prima, Guerra e Paz: cada personagem deste enorme livro é uma parte de Tolstoi. Em Guerra e Paz residem
todos os avatares do escritor: um marechal Koutouzov astuto e
adormecido, um Napoleão genial e imperioso que quer refazer o mundo
segundo sua vontade, uma Natacha alegre como uma pombinha, uma princesa
Marie triste como uma bruma, um príncipe André heroico e autoritário, um
iluminado como Pierre Bezoukov.
Tolstoi nasceu em 1828 em
Iasnaia Poliana, uma propriedade de dez mil hectares. De uma família
antiga e rica. É péssimo em gramática, mas muito bom para fazer o diabo
com os pequenos camponeses. Seus pais morrem quando ele é ainda uma
criança. O resto da família se ocupa dele, as tias, as primas... Ele
viaja. É um dândi que adora o que é chique, mas sua cabeça lhe parece
feia e os pés muito grandes. É forte como um urso. Quando completa 19
anos torna-se o senhor da imensa propriedade familiar. Conta com uma
multidão de camponeses a seu dispor, rios e árvores. Os invernos ele
passa em Moscou e nos bordéis. Torna-se militar e luta heroicamente no
Cáucaso. E sempre escreveu. Sua grande obra, Guerra e Paz, foi publicada
em 1865. Dez anos mais tarde publica Anna Kariênina. O americano William Faulkner, a quem foi perguntado qual o mais belo romance do mundo, respondeu: Anna Kariênina!
Na
paz de Iasnaia Poliana ele escreve todas as manhãs. “A arte de escrever
bem”, afirma, “consiste menos em saber o que escrever, mas saber o que
não se deve escrever (...). Rever o esboço significa subtrair tudo o que
há de inútil e principalmente não acrescentar nada.”
A vida de
Tolstoi até aqui é feliz. Ele conseguiu tudo. E, repentinamente, a
infelicidade chega. Ele despenca no abismo. Não compreende mais nada.
Nem a vida e nem a morte. Nem Deus. Ele se vê tão tentado pelo vazio que
evita deixar cordas penduradas na imensa casa por temor de se enforcar.
A crise chega ao fim. Ele reencontra Deus e retoma o caminho da Igreja.
Mas agora não se contenta mais em adorar Deus. E procura reformá-lo. E
de passagem reformar também a Igreja que só diz bobagens; esse Deus em
três pessoas, essa Encarnação, essa condenação eterna, os anjos, o
diabo. Tudo isso não se sustenta.
E a ressurreição do Cristo!
Ora, ora... E, do mesmo modo que modernizou o trabalho dos seus “servos”
na sua propriedade, ele distribui seus conselhos, quase ordens, aos
papas. Mas os papas são tão estúpidos. Não aproveitam a sorte. Não só
deixam de aplicar as lições do Grande Homem, mas o excomungam. Pior para
eles e para Deus, que perdem uma bela ocasião de se renovar um pouco.
Tolstoi não se importa. E inicia um novo trabalho. Passa a atacar as
sociedades modernas. O dinheiro é uma coisa horrível, tão perversa
quanto a escravidão. A justiça, a polícia, o exército, tudo tem de ser
reformulado de A a Z. A grande voz de Tolstoi é tão violenta que vemos
ali uma predicação similar à de Marx. Mas é superior ao marxismo. Não há
necessidade de fazer revoluções ou guerras para reconstruir uma
sociedade falida. Nada de violência ou mortes. A mudança indispensável
será obtida pela “não resistência”, a “não violência”.
As pessoas
próximas de Tolstoi, especialmente sua doce esposa Sophie, não
compreendem nada. Mas do outro lado do mundo um homem entende seu
discurso profético: é Mahatma Gandhi, que utilizará a “não violência”
para fazer vacilar o império colonial britânico na Índia. Mas agora
Tolstoi se lança numa nova obra: reformar ele próprio. Nada mais de
afetação. Eis que surge um camponês, um vagabundo, com longa barba e
botas que ele mesmo fabricou. A carne e o tabaco são banidos. O grande
Tolstoi participa (um pouco) dos trabalhos dos seus servos. Um último
obstáculo resiste: o dinheiro, essa peste! Liev Tolstoi é um homem
extremamente rico. Possui terras ilimitadas e rublos a não saber o que
fazer com eles. Como se desembaraçar de tudo isto? Nada é mais difícil
do que se tornar um pobre. Ele outorga todos os seus direitos autorais à
sua mulher e seus herdeiros. Sente-se mais leve, contudo ainda resta a
luxuosa propriedade de Iasnaia Poliana. Ele gostaria de se afastar dali,
mas tem o direito de privar a mulher e os filhos desse lugar? Assim,
ele se sacrifica e permanece nas suas soberbas terras.
Todo esse
labor não melhorou seu caráter. Ele contradiz todo o mundo. Só ele
conhece a verdade. Os outros só têm de aproveitar, mas há uma grande
pedra no seu sapato: seu insaciável apetite sexual, ao passo que
recomenda a todos uma castidade perfeita. Na falta de prostitutas ele
recorre à sua mulher. Mas fica bem irritado. Não está ele violando seus
próprios conselhos? Mas felizmente é um homem engenhoso. Tudo isto se
deve à sua mulher, Sophie, que é uma tentação sexual permanente. Ela se
defende. Evita tudo o que possa despertar o furor sexual no marido. Mas
ele retruca, não é ela uma mulher? E a mulher, por sua natureza, seu
corpo, não é um convite constante à libertinagem? E ele descarrega sua
cólera em toda a literatura. Poucos escapam ao seu desprezo: Cervantes,
Molière, Dickens, Victor Hugo. E especialmente Homero.
Dostoievski?
No começo não era mau, “mas não deveria escrever à noite”. Baudelaire é
um “menestrel mórbido”, Verlaine é um Mallarmé alcoólatra. Gorki é
fraco, Puchkin é decepcionante. Além do que foi morto em um duelo!
Mas
o verdadeiro inimigo de Tolstoi é Shakespeare. Seu teatro é grotesco.
Suas tramas não têm lógica. Seus personagens se expressam num inglês
absurdo que nenhum inglês jamais falará. Rei Lear é sua pior peça. Nula.
Quem é esse velho rei solitário, no meio da sua terra árida, abandonado
por todos, esse patriarca que no crepúsculo da sua vida é uma presa dos
ódios, ciúmes e mentiras de sua família. Toda a família o traiu, exceto
a filha mais jovem, a bela e doce Cordélia, que vai morrer também.
Bizarro. Podemos jurar que estamos vendo o retrato de um outro patriarca
que se chama Liev Tolstoi.
Turgueniev, amigo de Flaubert, teme
que Tolstoi abandone a literatura. Mas é tranquilizado. O velho Tolstoi
jamais cessou de escrever. Seu gênio está intacto: o romance Senhor e Servo é uma obra-prima e A Morte de Ivan Illich, o relato de uma agonia, talvez seja, de todos os seus escritos, o mais magnífico.
E
sem dúvida porque Tolstoi, como seu personagem Ivan Illich, sente o
sopro da morte. Ele está no pequeno quarto que lhe foi preparado pelo
chefe da estação. Fora a multidão. A esposa tão amada e repentinamente
detestada, também está presente. De tempos em tempos sua silhueta passa,
tremulando, na neve, do outro lado da vidraça. Assim desaparecia o
velho rei. Estava no fim e ainda escrevia com seus dedos. E muito
depressa, pois estava no fim dos tempos. O mais belo manuscrito da
história talvez seja este texto indecifrável escrito sobre os lençóis da
sua agonia. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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* Jornalista e escritor francês.
Fonte: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,os-ultimos-dias-de-liev-tolstoi-em-uma-estacao-de-trem,70002685018 - 19/01/2019
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