Não
vai demorar nada para aparecer algum policial. Sabe-se lá como
funcionam as leis por aqui. Paciência. Fiz toda essa viagem para apagar
um erro e lançá-lo contra o rio. Agora, vou até o fim. Mesmo que isso
represente uma visita à delegacia, uma multa, deportação ou maldição.
No supermercado das metáforas ruins existe uma que se destaca: a dos cadeados do amor.
Mas eu nem sempre soube disso. Há quatro anos eu visitava Praga
pela primeira vez. Foi na minha lua de mel. Giorgia estava
especialmente linda naquele dia. Cabelos cacheados caindo sobre um
casaco pesado de neve. Caminhávamos pela Ponte Carlos
quando tirei do bolso um cadeado. Assim como milhares de turistas ao
redor do mundo, iríamos celebrar nosso amor de um jeito bem peculiar,
aprisionando-o.
Fizemos planos para repetir o gesto em outras cidades: na Ponte Vecchio (Florença); Ponte do Brooklin (Nova York); Casa da Julieta (Verona); Fonte dos Cadeados (Montevidéu); Ponte Luzhkov (Moscou) e até infringir a lei na Pont des Arts
(Paris) – já que, na época, o governo francês havia acabado de remover a
memorabilia romântica em nome da segurança da própria ponte.
Tiramos selfies, nos beijamos e voltamos para o Brasil – satisfeitos em trancafiar nossa relação e jogar a chave fora.
Mas
para o amor, qualquer amor, é preciso assegurar uma rota de fuga, uma
saída de emergência, uma varanda para fumantes ou ornitólogos.
Depois
de dois anos, os sinais, fortes sinais, já estavam espalhados pela
casa. No silêncio do café da manhã; na barulho das páginas dobradas de
um jornal; no esquecimento em deixar a ração para o cachorro; nos
resmungos de desaprovação, em uma série de “tanto faz” ou de “escolhe
você”. Acho que eu também queria ir embora. Mas quem deu o passo
decisivo foi ela. Era domingo. E, na hora do almoço, Giorgia me disse
que não me amava mais.
Achei que ficaria aliviado. Mas os
meses seguintes foram um terror. Giorgia era meu primeiro pensamento do
dia. Giorgia era a falta que eu sentia quando entrava no carro; o frio
na barriga quando o celular tocava; minha segunda garrafa de vinho em
plena segunda-feira à noite.
Liguei, mandei e-mail, apareci na casa dela. Quis voltar. Giorgia foi direta: “Se livre disso, se liberte de mim.”
Ela
já está em outra. E eu? Eu estou aqui em Praga, em cima da Ponte
Carlos, com um alicate nas mãos e procurando um cadeado com as nossas
iniciais: R.G.
Estava tão absorto na minha missão que não
notei a presença de um homem logo atrás de mim. A névoa não me deixava
enxergá-lo com nitidez. Mas vestia terno, usava uma espécie de cartola,
tinha a sobrancelha intensa e orelhas estranhas, acho que pontudas. Ele
se aproximou, tossiu, e disse: “Existe esperança, esperança infinita –
mas não para nós”. Depois, desapareceu na ponte. Como um fantasma...
Vasculhei
os cadeados. Quantos amores agonizantes ainda estariam presos nessa
masmorra? Quantos inocentes não caíram na bobagem de usar um cadeado
como símbolo romântico? Encontrei o meu logo depois. Não tive coragem de
arrancá-lo. Era só um cadeado desgastado e agarrado ao passado. Por lá
ele ficou e ficará – até que um dia a ponte desabe ou que algum
burocrata da prefeitura resolva expurgá-lo para sempre.
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* Jornalista
Fonte: https://viagem.estadao.com.br/noticias/geral,os-cadeados-do-amor,70002688808 - 22/01/2019
Justo o que eu procurava sobre cadeados, obrigada!
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