Juremir
Machado da Silva*
A felicidade individual pode ser útil à sociedade?
Pigassof, personagem do romance Rudine, do russo Ivan Turgueneff
(1818-1883), não via utilidade nas teorias, nos sistemas filosóficos e nas
abstrações. Só acreditava nos fatos nus e crus: “Pergunto onde está o
verdadeiro? Até os filósofos não sabem onde encontrá-lo. Kant proclama: ‘Ali
está ele!’ Mas Hegel replica: ‘Não, tu mentes, ele está ali!’”. Pigassof é
apresentado com um velho misógino, rabugento e de curta inteligência,
facilmente vencido por Rudine, crítico do niilismo, defensor de um papel
funcional da verdade. Se não acreditamos em nada, perecemos. O bobo Pigassof,
feito um precursor dos pós-modernos, só pode aceitar uma verdade verdadeira. O
inteligente Rudine contenta-se com a utilidade da verdade. Se não existe uma,
precisamos inventá-la. Pigassof se retira despeitado: “Para o diabo com a
inteligência. Vou à procura dos imbecis”.
O inglês Jeremy Bentham (1748-1832), que talvez tenha influenciado
Turgueneff na criação do seu personagem, só acreditava no que pode ser útil aos
indivíduos e à sociedade. Bom e verdadeiro é o que ajuda resolver problemas. O
que se pode querer na vida? Como precisaria o seu afilhado John Stuart Mill, o
máximo de felicidade e o mínimo de sofrimento. Alguém discorda? Bentham
notabilizou-se principalmente por duas ideias esquisitas: o panóptico e o
cálculo da felicidade. O primeiro, termo que seria bastante citado pelo
filósofo francês Michel Foucault, é um sistema de vigilância que permitiria,
numa penitenciaria, observar todos os presos de um mesmo ponto de vista sem ser
notado por nenhum deles. Ele entendia que assim se poderia “transformar vagabundos
em honestos”. A crítica costuma considerar esse Big Brother imaginado naquele
longínquo 1785 devastador para a ideia de um mínimo de privacidade a que todo
ser humano deve ter direito.
Filósofo do utilitarismo, Bentham entendia que o bem comum deve prevalecer
sobre o interesse individual. Para ganhar num terreno, precisamos, às vezes,
perder em outro. É a velha história da liberdade e da segurança. Mais de uma,
menos de outra. Um dos pais do consequencialismo, Bentham pensava em termos de
resultados e de vasos comunicantes. O que é preciso perder para ganhar mais?
Ele tinha uma referência, o ponto cardeal do utilitarismo: “Princípio que
aprova ou desaprova qualquer ação conforme a sua tendência de aumentar ou
diminuir a felicidade da parte cujo interesse está em questão”. Para os
audazes, cabe a leitura de “An Introduction to the Principles of Morals and
Legislation”, de Bentham. O pontapé inicial diz tudo: “A natureza colocou a
humanidade sob o governo de dois mestres soberanos, dor e prazer”. O utilitarista
expõe a sua meta: “O objetivo é criar o tecido da felicidade pelas mãos da
razão e da lei”.
Cálculo da felicidade – A educação obviamente na
filosofia de Bentham deve contribuir para aumentar a felicidade e diminuir o
sofrimento sem se transformar num suplício para os alunos. Bentham antecipou-se
em muitas causas, algumas que ainda hoje são combatidas ou estão ameaçadas. Era
a favor da igualdade entre os sexos e da separação entre Estado e Igreja.
Defendia o direito dos animais e as liberdades de expressão e de crença. Foi um
dos primeiros a falar em favor do divórcio e da descriminalização da
homossexualidade. Pregou abertamente pelo fim dos castigos corporais aos
apenados, pela abolição da escravatura e pelo fim da pena da morte.
Num momento iluminado, criou o “cálculo felícifico” com base em sete
critérios facilmente aplicáveis e verificáveis em ato: “Duração: um prazer
longo e duradouro é mais útil que um prazer passageiro. Intensidade: um prazer
intenso é mais útil que um prazer de baixa intensidade. Certeza: um prazer é
mais útil se tivermos certeza de que será realizado. Proximidade: um prazer
imediato é mais útil do que um prazer que será realizado a longo prazo.
Extensão: um prazer experimentado por muitos é mais útil do que um prazer
vivido sozinho. Fecundidade: um prazer que provoca outros é mais útil do que um
prazer único. Pureza: um prazer que não leva a sofrimento depois é mais útil do
que um prazer que pode levar a isso”. Quanto mais critérios uma ação preenche
mais obviamente ela é produtora de felicidade.
A felicidade é uma questão de Estado para Bentham. Não se pode deixar
assunto tão sério nas mãos dos interesses privados. Cabe ao Estado, por meio de
legislação, garantir uma renda mínima a cada cidadão, estimular o
desenvolvimento econômico e promover distribuição de renda para favorecer a
felicidade coletiva. Como ter felicidade coletiva se uns têm muito e outros
quase nada? Como ninguém é perfeito, Bentham defendia uma democracia
censitária, com direito de voto reservado aos detentores de certa renda. Era
inteligente demais no geral para ser aceito com facilidade. Muita gente,
reencarnando o colérico Pigassof, prefere ir ver os imbecis.
Quem quiser ver Jeremy Bentham é só ir ao University College de Londres.
O seu esqueleto, com a cabeça mumificada, está à vista num armário com porta de
vidro, que ele chamou de “auto-ícone”. É discutível a utilidade disso. Mais
difícil é saber se essa ideia extravagante produz felicidade e prazer para
alguém. Cada visitante pode dar seu depoimento.
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* Jornalista. Escritor. Prof. Universitário. Cronista do Correio do Povo
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