quinta-feira, 14 de julho de 2022

Crianças sem voz

 

crianca abuso infantil foto soupstock

Foto © Soupstock.


O mistério está todo na infância:

é preciso que o homem siga
o que há de mais luminoso
à maneira da criança futura

(José Tolentino Mendonça)

 

As recentes notícias sobre a criança de Setúbal, de 3 anos de idade, usada como arma de arremesso em virtude de desentendimentos entre a mãe e uma pseudo-ama, trouxe novamente a questão da violência sobre as crianças para a agenda pública.

Devo dizer que me incomodou e chocou a forma como a comunicação social explorou até ao tutano a situação, numa quase pornografia sobre os atos horríveis e violentos perpetrados sobre a criança e que levaram à sua morte. Chocou-me a “coisificação” daquela criança. Foi quase obsceno. 

Como é usual sobraram considerações indignadas:
Como protege o Estado as crianças vítimas de maus-tratos e violência?
Para que servem as Comissões Protetoras de Crianças e Jovens?
Por que razão as denúncias de maus-tratos ficaram esquecidas na lentidão e inoperância da nossa justiça?
Qual o papel dos vizinhos que sabiam que os maus-tratos eram recorrentes e escolheram fechar os olhos e os ouvidos aos lamentos daquela criança?
Que papel [não] tiveram os pais na atenção devida a uma criança tão pequenina?
E os professores, se os houve?

Dói o coração ao pensar nestas interrogações.

Apesar de, com a baixa de natalidade, as crianças se terem tornado “um bem raro” no nosso país, os direitos das crianças – nomeadamente o direito à proteção – têm vindo a ser violados. Por que razão fomos um dos primeiros países a subscrever a Convenção Internacional dos Direitos da Criança? Belas intenções sem a correspondente expressão nas nossas práticas…

A questão dos abusos sexuais encobertos de crianças – que, infelizmente, se estendem a toda a sociedade civil – ignorados e camuflados pela Igreja Católica, tornou-se também uma chaga social. Como reagiu a Igreja portuguesa? Tardiamente. Os depoimentos que o 7MARGENS publicou são avassaladores. 

Que reparação vai a Igreja fazer a estas crianças a quem a infância foi roubada? Meras e vagas desculpas?

Sinto uma enorme tristeza diante disto. Dediquei a minha vida profissional à qualidade de vida das crianças. A querê-las felizes, inteligentes, a brincar, a gostar da vida – como dizia um sobrinho meu de três anos, ao acordar: “Que bom, mãe, mais um dia!”. Diz Tolentino Mendonça: “O mistério está todo na infância”; porque não têm todas as crianças o direito à “infância luminosa” de que ele fala?

Lamento dizê-lo, mas este país não tem tornado as crianças centrais nas políticas educativas. Ainda há dias, o partido da maioria na Assembleia da República votou contra uma petição pública que pedia que se alterasse a Lei de Bases do Sistema Educativo (1986) de modo a considerar que a educação começa aos zero anos e não aos três, um imperativo que tem sido formulado de formas diversas desde a revisão de 1997. Foi utilizado o argumento de que implicava consequências económicas… Seria assim tão complicado que o Ministério da Educação garantisse qualidade educativa para as creches e outras modalidades de atendimento, sabendo que a parte financeira da rede de creches é assegurada pela Segurança Social? Será assim tão difícil afirmar o estatuto de “docência” para este nível etário garantindo às (aos) educadoras(es) a correspondente contagem de tempo de serviço enquanto serviço docente? Esta não-atenção tem provocado um turn-out gravíssimo, a ponto de uma sala de creche chegar a ter três educadoras ao longo do ano porque elas se “escapam” – com todo o direito, diga-se – para a educação dos 3 aos 6 anos, que garante a contabilização do seu tempo de serviço. Numa faixa etária em que é tão importante a vinculação a um adulto atento, responsável, que proporcione segurança e continuidade!

No Exame Temático da OCDE a que Portugal se submeteu há cerca de 20 anos (DEB/OCDE, 2000) , o grupo de peritos que visitou o nosso país reconheceu o enorme esforço que Portugal estava a fazer para expandir o sistema de educação pré-escolar (3-6 anos) mas referia, a propósito do atendimento às crianças com menos de 3 anos: “Na generalidade, o apoio a prestar a crianças dos 0 aos 3 anos de idade não constitui prioridade em virtude de valores culturais fortemente enraizados (…). A relativa falta de apoio por parte do Estado às crianças nesta faixa etária e, em contradição, a expectativa de que as mulheres exerçam trabalho fora de casa, embora continuem a ser totalmente responsáveis pela educação dos filhos, bem como pelo trabalho doméstico, fazem crer que há importantes problemas por resolver em Portugal em matéria de igualdade entre os sexos” (p. 231). Os peritos fazem a seguinte recomendação: “O governo poderá desejar considerar a oferta existente para as crianças dos 0 aos 3 anos de idade e também o papel do Ministério da Educação na monitorização da qualidade da educação e cuidados prestados, assim como a qualidade das experiências conducentes ao desenvolvimento das crianças” (p. 232). Que se fez ao longo destes 20 anos?

Voltando à menina de 3 anos que morreu em Setúbal: será que ela frequentava uma creche com profissionais habilitados que teriam denunciado os visíveis maus-tratos a que estava sujeita?

Continuo a afirmar que a situação das crianças no nosso país me entristece profundamente. São vítimas de uma enorme desatenção. Umas são objeto de maus-tratos e violações, sofrem de pobreza endémica, fome, abandono físico e emocional, enquanto outras se tornaram o centro de famílias com um só filho, tornando-se tiranetes sempre insatisfeitos, ingovernáveis, obesos de alimentação cheia de químicos, sem limites para os brinquedos que desejam “consumir” e rapidamente pôr de lado, incapazes de se autocontrolarem, aceitando não ser o centro, mas apenas “central” na vida de qualquer família.

Dar voz às crianças é um desafio que nos é colocado enquanto cidadãs e cidadãos: lutar pelo direito a uma família protetora, direito à educação [de qualidade] numa creche, direito a usufruir de espaços ao ar livre, direito a uma alimentação condigna e a cuidados primários de saúde, direito a brincar.

“Deixai vir a Mim as Crianças porque delas é o Reino dos Céus” (Mt. 18) afirma Cristo Jesus. Delas é o Reino dos Céus? Diz Eugénio de Andrade em Rosto Precário: 

O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus.

Sabemos que para uma criança a experiência da bondade protetora de Deus – a consciência de que é filha de Deus – passa pela experiência prévia de amor no interior da sua família, especialmente do amor incondicional por parte dos pais. Que desatenção é esta que nos impede de olhar para [pelas] crianças? 

Como impedir que as crianças “reguem com suas lágrimas a terra”?

Diz Mia Couto: “Ser menino é estar cheio de céu por cima”…

Será?

*Teresa Vasconcelos é professora do Ensino Superior (aposentada) e participante do Movimento do Graal; Contacto: t.m.vasconcelos49@gmail.com

Fonte:  https://setemargens.com/criancas-sem-voz/

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