terça-feira, 19 de julho de 2022

Ainda vale a pena anunciar o evangelho?

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19 Julho 2022

"O reverso da pergunta, não menos importante, pode ser resumido com um slogan: ainda vale a pena anunciar o Evangelho hoje? E por quê? Com que implicações? Ou em outras palavras: se o Evangelho desaparecesse, o que seria de nossa vida e do mundo? Para que serve a comunidade cristã? Essas perguntas não dizem respeito à sociedade mais ou menos alheia à fé, mas à comunidade dos crentes, a começar pelos próprios Pastores", escreve Oreste Aime, presbítero da Diocese de Turim, professor de Filosofia na Faculdade Teológica de Turim, membro do grupo Chiccodisenape e da Rete dei Viandanti, em artigo publicado por Viandanti, 12-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Mesmo que sejam centrais e relevantes para a vida da Igreja, há questões que não aparecem ou o fazem de forma inadequada ou insuficiente. Hoje a mais importante diz respeito à transmissão do Evangelho e da fé.

Uma pergunta para os Pastores e para a comunidade

Não é excessivo falar da falta de atualidade e estranheza do Evangelho em nosso tempo. É um fato que pode ser registrado quase diariamente, principalmente se sairmos dos momentos rituais que de alguma forma ainda marcam a vida social com um revestimento religioso. A confirmação mais imediata poderia ser o que os jovens pensam sobre o cristianismo, tanto por escolha pessoal quanto por condicionamento social, e não apenas sobre uma orientação religiosa mais ou menos vaga.

O reverso da pergunta, não menos importante, pode ser resumido com um slogan: ainda vale a pena anunciar o Evangelho hoje? E por quê? Com que implicações? Ou em outras palavras: se o Evangelho desaparecesse, o que seria de nossa vida e do mundo? Para que serve a comunidade cristã? Essas perguntas não dizem respeito à sociedade mais ou menos alheia à fé, mas à comunidade dos crentes, a começar pelos próprios Pastores.

Evangelização, secularização, niilismo

A pergunta não é nova; apareceu, com diferente força e urgência, em alguns momentos do século XX, já nos seus primórdios e depois em particular em 1943 com France, pays de mission?, e depois, talvez com menos evidência e contundência, em outras ocasiões. Ao focalizar seu trabalho na Igreja e em seu mistério, o Vaticano II registra a pergunta apenas marginalmente, ainda que ela inquiete a constituição Gaudium et spes com o problema do ateísmo, embora ainda em termos defensivos.

Nas décadas sucessivas, a ênfase é transferida para a secularização, que muitos dão como completa ou quase, como um destino inelutável. O fenômeno, generalizado, afeta principalmente a Europa, menos outras áreas do mundo, ao que parece, e se presta a diferentes interpretações teóricas e práticas.

Menos sentido, porque mais impalpável, mas também mais sorrateiro, é o fenômeno do niilismo que se infiltra em todos os lugares, inclusive no domínio religioso. De qualquer forma, na segunda metade do século XX, que ainda deve ser entendido em suas razões e em suas consequências, ocorreu uma fratura, que está se agravando nas últimas duas décadas, apesar de se falar agora em época pós-secular, com o risco de arquivar essa fase. A atual pós-cristandade e pós-secularidade também são fruto de um desvanecimento que deveria ser especificado em muitos de seus fatores; a religião não é mais cimento social e cultural e isso envolve o cristianismo na medida em que está presente.

Um tema a ser colocado no centro da reflexão pastoral

Na Itália, a questão nunca constituiu o centro da reflexão e da proposta pastoral da Igreja italiana, embora tenha ressoado repetidamente o chamado à evangelização e depois à missão; esses temas têm sido muitas vezes subestimados tanto em nome da tese da persistência de um povo católico como em função do privilégio a ser concedido à presença da Igreja na sociedade e na articulação com outras dimensões indispensáveis (evangelização e promoção humana , evangelização e sacramentos - a atenção de fato concentrou-se no segundo termo).

Houve períodos em que até mesmo a palavra evangelização poderia gerar decepção, se não suspeita; neste sentido, a história e o uso da fórmula da "nova evangelização" deveriam ser reconstruídos. Em alguns momentos, diante da denúncia de uma clara situação de crise, mobilizaram-se reações contrárias e tranquilizadoras. Até hoje, nenhuma pesquisa séria foi realizada sobre o modo de sentir e viver a fé em todas as suas dimensões aqui e agora.

A tudo isso se soma uma crise eclesial de outra natureza, que tem seus dois pontos mais agudos no escândalo dos abusos e no clericalismo e seu núcleo obscuro na questão do poder. A rarefação das vocações sacerdotais e religiosas e o fim da mobilização laical afetam o impulso missionário concreto e favorecem uma concepção residual da comunidade cristã ou uma retirada para salvaguarda de si mesmo. A atual fase sinodal, que gira em torno da reforma e da sinodalidade, poderia mais uma vez desviar a atenção para aspectos que, embora importantes, evitam abordar a questão crucial. Onde e como o Evangelho está ausente?

O tema da missão é constitutivo da vida da Igreja; a eclesiologia tomou nota disso definitivamente, é "seu dom" (Roberto Repole). Foi um passo indispensável no plano teológico, mas talvez não suficiente naquele "pastoral".

Em toda comunicação - e também a missão o é - deve-se levar em conta a mensagem, o remetente e o destinatário, o contexto e o contato, as modalidades de execução e o aspecto poético. No caso do Evangelho, tendo reconhecido a origem divina e não disponível da mensagem, o remetente humano é também principalmente um destinatário, o primeiro.

Se mal compreendido, o slogan “igreja em saída” pode fazer com que o esqueçamos, fazendo-nos pensar que o Evangelho é ad extra da igreja e não, antes mesmo, ad intra. “Os confins da terra cruzam os nossos corações”, dizia Madeleine Delbrêl; se não chegar ali, o Evangelho terá dificuldade em chegar a outro lugar. E não pode faltar a pergunta honesta e prévia: onde e como o Evangelho está ausente na vida da Igreja e dos crentes?

O impulso de Francisco, enfraquecido

Um forte impulso ao tema da evangelização veio do Papa Francisco, que fez dele a força motriz de seu magistério a partir da Evangelii gaudium, posteriormente entrelaçando-o com o cuidado da casa comum e da fraternidade universal.O quanto esse impulso se tornou eficaz na igreja italiana? Que reais "novidades" trouxe? Se a impressão não estiver errada, pode-se dizer que o impulso chegou bastante atenuado na reflexão e na prática.

Uma verificação ulterior e mais precisa poderá ser extraída da fase sinodal em andamento, desde que a eventual criatividade seja antes de tudo acolhida no plano local e a narrativa não se dissolva nos desiderata. A insídia do belo documento sem consequências é constante. O que em relação ao Evangelho é sempre verdadeiro, hoje tem um novo valor. Perceber sua diferença torna-se essencial.

Entender o estilhaçar-se do cristianismo

Do ponto de vista histórico, seria necessário retomar o fio condutor do que aconteceu nas 1960 e 1970 - le christianisme éclaté, sugeria Michel de Certeau cinquenta anos atrás, com um diagnóstico que ia além o contexto original francês. A ruptura da tradição não atinge apenas aqueles que deixaram o perímetro da igreja, mas também aqueles que permaneceram, especialmente se ancorados em módulos em vias de dissolução.

Para entender isso, seria útil entender o que realmente acontece na transmissão da fé a partir das gerações mais jovens e das mulheres. Armando Matteo tentou fazê-lo cerca de dez anos atrás, mas o que era um estímulo à pesquisa e à compreensão tornou -se quase um incômodo, eventualmente substituído por algo mais tranquilizador. As investigações talvez não cheguem aos pontos cruciais, mas, se bem conduzidas e abrangentes, podem ajudar a circunscrevê-los, desde que passem pelo confronto e pelo debate aberto.

O nosso tempo, o mais recente, tornou-se em muitos aspectos impermeável ao poder do Evangelho e não é alheio a uma inquietante e irreprimível questão apocalíptica (Lc 18,8); por outro lado, há algo de inadequado na forma de apresentá-la e propô-la, não tanto no plano catequético e doutrinal, mas sim na forma de vida em que se deveria encarnar.

De Certeau se propunha a tratar a respeito, transformando a ruptura em uma "ruptura instauradora". Somente o reconhecimento da ruptura, na sua extensão e nas suas implicações, pode permitir a instauração – que agora tem de enfrentar as mudanças induzidas pela razão digital, que introduzem formas agudas de dessimbolização e desinstitucionalização.

A pesquisa começou

Nesta pesquisa não se começa do zero, há esboços oferecidos por meditações respeitadas. Podemos apontar duas. Timothy Radcliffe nos convida de forma tão pacata quanto exigente a Accendere l’immaginazione (Acender a imaginação, em tradução livre, Emi 2021), para “escapar da reclusão para buscar ar puro” e “estar vivos em Deus”. O desafio joga-se na imaginação e em imaginar o real, mesmo aquele eclesial. Sem imaginação, o talento acaba intacto e morto enterrado.

Em uma orientação mais exigente move-se a extrema reflexão de Maurice Bellet, com Il Messia Crocifisso. Scandalo e follia (O Messias crucificado. Escândalo e loucura, em tradução livre, Queriniana 2022), na tentativa de dizer e viver a mensagem do Evangelho de uma forma nova, por caminhos não trilhadas e de difícil acesso. Embora de maneira diferente, o Evangelho, escândalo e loucura, sabedoria e força, era inatual tanto em Corinto em 53/54 d. C. quanto hoje, tanto fora como dentro da comunidade cristã.

Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/620502-ainda-vale-a-pena-anunciar-o-evangelho

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