sexta-feira, 8 de julho de 2022

Direito à leitura: comida no prato e livro na mão

 Januária Cristina Alves*

 bienal do livro São Paulo 2018

A imagem da Bienal que circulou nas redes sociais me pareceu emblemática dos tempos em que vivemos aqui no Brasil

As portas se abriram e o que a imagem que viralizou nas redes sociais mostrava parecia a entrada de um estádio de futebol ou de um show de um roqueiro famoso... só que não! Era “a largada” para a abertura da 26ª edição da Bienal Internacional do Livro de São Paulo, quando milhares de pessoas entraram correndo no pavilhão da Expo Center Norte, quebrando o “jejum” de quatro anos sem o evento. Até o fechamento das portas deste que é um dos maiores acontecimentos literários do Brasil, espera-se que mais de 600 mil visitantes tenham andado pelos corredores lotados de obras, pego os autógrafos de seus escritores prediletos, tirado selfies com a capa de um livro que poderia ser “o seu”, interagido com um trem de uma das histórias de mistério mais famosas do mundo, “conhecido” Portugal e seus monumentos mais icônicos bem como seus autores mais famosos e, é claro, enchido as sacolas com livros e mais livros. Em que pese os resultados mais recentes, as vendas de livros só caem - entre 2014 e 2021, as vendas reais das editoras ao mercado encolheram 37%, resultado da crise econômica que não tem data para acabar. As editoras esperam que o evento não apenas alavanque o comércio de livros, mas, sobretudo, traga à tona o quanto eles são importantes para ajudar os leitores a atravessarem esse momento turbulento com informações que os ajudem a tomar decisões mais éticas e sustentáveis, e trazer esperança de dias melhores.

Como diz o professor e crítico literário Harold Bloom, em sua obra “Como e por que ler”, a literatura prepara e promove as transformações que a sociedade necessita. Antes de serem concretas, elas estão idealizadas e depois descritas nas páginas de um livro: “Uma das funções da leitura é nos preparar para uma transformação, e a transformação final tem caráter universal (...). Lemos não apenas porque, na vida real, jamais conheceremos tantas pessoas como através da leitura, mas, também, porque as amizades são frágeis... (...) a literatura alivia a solidão”. As produções humanas acontecem por meio de textos, sejam eles orais, escritos, traçados, pintados, gesticulados, em um texto encontramos a “textura”, o “tecido”, a “tecelagem”, a “trama” e também o “tricô”. Precisamos, portanto, dos textos, das histórias, para nos contar e à nossa trajetória como humanidade. Como diz de modo extremamente poético e profundo a especialista em literatura infantojuvenil espanhola Silvia García Esteban em seu artigo intitulado “A literatura juvenil: uma etiqueta forçada”: “(...) Lemos para compreender o mundo que nos rodeia, para nos refugiarmos da solidão, para vivermos outras vidas, para nos protegermos da realidade que nos machuca, para combater o medo ou os pesadelos, para ter esperança quando estamos exaustos, para nos emocionarmos, para nos indignarmos, para nos rebelarmos. Podemos pensar em muitas causas de leitura como seres humanos que leem em nosso planeta, porque um leitor nasce de uma necessidade que estará intimamente ligada à história desse sujeito (...). Ser leitor não consiste apenas em ler muito, é tornar-se um intérprete da realidade, (...) é aceitar um pacto fictício e dar-lhe consistência para nele habitar”. Daí que, em tempos sombrios como esses que vivemos, a literatura ser também um alimento tão necessário quanto o pão.

A literatura prepara e promove as transformações que a sociedade necessita. Antes de serem concretas, elas estão idealizadas e depois descritas nas páginas de um livro

Esse foi o mote de um movimento que ganhou mundo nessa semana tão emblemática para o livro brasileiro: “Comida no prato e livro na mão! 10 propostas pela defesa do livro e ao direito à leitura no Brasil”, uma carta aberta em defesa do livro e da literatura e também um abaixo-assinado, uma iniciativa da coordenadora de projetos do IBEAC (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário Queiroz Filho) e gestora da Rede de Leitura LiteraSampa, Bel Santos Meier, e da escritora e consultora do Núcleo de Enfrentamento, Monitoramento e Memória de Combate à Violência da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo), Juliana Borges, reunindo escritores/as, editores/as, livreiros/as, bibliotecários/as, produtores/as e incentivadores/as do livro e da leitura nas plataformas digitais, professores/as e mediadores/as de leitura, dentre outros atores da cadeia do livro. O documento apresenta “dez pontos que consideram sintetizar o acúmulo de ideias formuladas por profissionais e ativistas para o conjunto da sociedade, tanto aos/às que pleiteiam cargos e representação pública, quanto ao empresariado nacional”. A meta era conseguir 5.000 assinaturas e em dois dias de circulação essa meta já foi alcançada e segue crescendo, recebendo apoio de dezenas de organizações da sociedade, de políticos, empresários, além, é claro, de centenas de profissionais da indústria do livro brasileiro, a qual tenho a honra de pertencer. O objetivo é garantir que as políticas públicas de apoio à literatura sejam prioridade no governo que tomará posse no ano que vem. “Para nós, seguindo formulação do mestre Antonio Candido, a efabulação é uma capacidade humana ampla e irrestrita, que deve ser valorizada e cultivada em todas as sociedades. Nesse sentido, as tentativas despolitizadoras de excluir o livro da relação de necessidades básicas humanas explicitam o descompasso e a falta total de compromisso com a dignidade e a disseminação de conhecimento em nossa sociedade. Se, por um lado, a vida demanda a urgência da comida no prato; por outro, a utopia e a plena experiência de vida demandam a emergência do livro na mão”, enfatiza o abaixo-assinado.

Estive na Bienal do Livro para o lançamento de três livros que “estrearam” ano passado de modo virtual e foi emocionante reencontrar meus leitores, conversar com crianças, jovens, pais, professores. Um menino de 7 anos que trouxe a mala da escola “para encher de livros de ler, porque depois eu quero escrever os meus”, uma jornalista que me contou que meus textos a estimularam a criar e publicar os seus, uma mãe que disse que os livros estavam “salvando” o filho do bullying e o tornando mais criativo e resiliente. Um encontro com os amigos autores, muitos cansados e até desanimados com a situação da cultura nesse país, mas todos, sem exceção, com livros em punho, microfone na boca, anunciando a boa nova que só os personagens de ficção, das biografias e de todas as histórias são capazes de nos comunicar. Quando contamos uma história, nos transformamos, e quanto mais narrativas construímos, mais fortes nos tornamos, porque nos multiplicamos nessas tantas vidas. “Porque somos seres humanos, somos narração. Somos, acima de tudo, palavras em busca de sentido”, escreveu a autora espanhola Rosa Montero.

A imagem da abertura da Bienal do Livro de São Paulo que circulou nas redes nunca me pareceu tão emblemática dos tempos em que vivemos aqui no Brasil. O país tem fome: de comida, de empatia, de liberdade, de cultura, de livros. Por isso, mais do que nunca, essa é a hora: “Comida no prato e livro na mão”! Vamos todos juntos em busca do que nos mantém vivos e nos alimenta!

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Fonte: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2022/Direito-%C3%A0-leitura-comida-no-prato-e-livro-na-m%C3%A3o?utm_source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=anexo

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