Daniela Cabral Gontijo*
O racismo está no olhar que enquadra e deprecia. Está também na insistência pelo uso de termos que machucam
Li um texto em defesa do uso da palavra “denegrir”, lançando mão de um tratado etimológico quase “iluminista” para dizer que o termo não tem uma origem racista. Não deixa de me espantar a quantidade de pessoas brancas que se dizem cansadas do “politicamente correto”, cansadas de ter de trocar de palavras e “se censurar”. Li os comentários com profundo espanto. Será que não entenderam que algumas palavras podem machucar uma quantidade imensa de pessoas?
Foi na sala de aula de Rita Segato que aprendi que “raça é signo”. Nessa frase que dá nome a um de seus mais importantes textos, ela responde a algumas perguntas contrárias às cotas raciais, sendo a primeira: “como é possível falar em cotas raciais se faz tempo já que a biologia e a antropologia aboliram a raça como uma categoria válida?”, ao que responde, com perplexidade, que “somente as representações sociais têm status existencial de realidade num universo plenamente simbólico como é o humano”.
Trocando em miúdos, o fato de sabermos que as raças não existem biologicamente, que são uma mera questão de melanina não acaba com o racismo, e não acaba porque somos seres sociais, porque fomos socializades num mundo que escalona as cores da pele. Mesmo que as ciências tenham avançado e tenhamos descoberto que não há que se falar biologicamente em raças, a raça segue existindo. O racismo está no olhar que enquadra e deprecia, está também na insistência de palavras que machucam, está às vezes em lugares quase invisíveis que sustentam todo um arcabouço opressivo, assassinando pessoas diuturnamente, física e simbolicamente.
Mesmo que uma palavra tenha tido uma origem não racista, ou mesmo uma origem racista, eu diria que, independentemente da origem da palavra, é preciso fazer sua leitura hoje, no contexto atual, no mundo simbólico onde ela transita. Se ela machuca um grupo de pessoas, não há razão para insistir em seu uso.
Eu estou há quase 20 anos mergulhada no tema da violência. Não quero ser arrogante dizendo isso, mas num momento de ataque às ciências, acho importante frisar que não estou aqui no achismo. “A linguagem como alegoria da violência” é um subcapítulo da minha tese doutoral de 2015. Ali digo que a linguagem é a violência em sua forma mais funesta e, portanto, mais eficazmente violenta, pois ela se mascara como inevitável, natural, a-histórica. A linguagem é justamente o lugar em que o status quo está plasmado.
Há muitos jeitos de expressar conteúdos. Às vezes dá um pouco de trabalho ter que jogar fora palavras que não servem, ter que fazer certos malabarismos linguísticos. Em 2021 traduzi, juntamente com Danielli Jatobá, o livro “Crítica da colonialidade em oito ensaios”, de Rita Segato, e foi todo um desafio driblar o masculino universal, exigiu apurarmos um verdadeiro repertório de acrobacias. Ali dissemos, em uma nota das tradutoras, que “sabemos o papel crucial cumprido pela linguagem na constituição e perpetuação dos sistemas de opressão, como o machismo, o racismo e outros. Por isso, tomamos como ofício dos mais sérios o compromisso de enfrentar a colonialidade da linguagem e expressar o giro decolonial também no formato do texto”.
Substituir ‘denegrir’ ou mesmo ‘judiar’ não são tarefas atlânticas. A coisa boa das palavras é que há muitas
Mas vamos combinar que substituir “denegrir” ou mesmo “judiar” não são tarefas atlânticas. A coisa boa das palavras é que há muitas, e sempre surgem novas palavras e modos de dizer. E não, isso não é um mero “cancelamento” de palavras. Ao contrário, insistir em palavras que agridem é insistir no “cancelamento” de pessoas. Militar pela abolição de palavras que machucam pessoas e grupos de pessoas é um ativismo importantíssimo e tampouco deve ser confundido com censura. Basta um pouco de bom senso, razoabilidade e sensibilidade.
Tem gente que ainda usa “o homem” para designar todos os seres humanos, a humanidade, achando irrelevante o seu caráter excludente para as mulheres, metade da população do país. Tem gente que insiste em usar a palavra “retardado”, esquecendo de seu poder ofensivo para pessoas com deficiência. Tem gente à beça que ainda não se deu conta da importância de modificarmos o nosso jeito de falar, de retificarmos nossos textos para “desgenerificar”, “desracializar”, etc., porque sem modificar a língua, essa graúda “ferramenta do senhor”, não vamos “derrubar a casa grande”, como diria a poeta Audre Lorde.
A maioria de nós ainda hoje coloca tudo no plural masculino. Um auditório pode ter trocentas mulheres, mas se tiver um homem, o “correto” é endereçar-se a “todos”. Dizem as “boas línguas” que isso é a norma culta. Mas o que é norma culta hoje pode mudar amanhã. Tem mudado em muitos lados. Basta que mais pessoas se sensibilizem e se habituem. A Suécia já incorporou à norma culta o artigo “hen”, um artigo neutro. Era uma mudança que vinha acontecendo desde os anos 1960. O novo modo de falar demorou, mas caiu na boca do povo, e então o dicionário oficial não teve mais como ignorá-lo.
A língua está viva. A história e a etimologia nos mostram também que muitas palavras morreram e outras tantas nasceram, porque a língua é assim, não está morta e cimentada, e sobretudo, precisa estar aberta para que as palavras possam representar e traduzir a vida, seus processos, suas lutas e transformações sociais. Querendo ou não, a língua é já uma metamorfose ambulante, como a vida. Querer estancá-la e mantê-la inflexível é destruí-la, não o contrário.
Em pleno século 21 faz sentido insistirmos em vocabulários e modos linguísticos excludentes, onde nem todes se sentem representades? E dizer, ainda, que isso é feio? Tem gente que acha feio porque não se acostumou. Feio é excluir, feio é insistir numa palavra que machuca.
Que a língua, essa metamorfose ambulante, possa, antes tarde do que mais tarde, abarcar todes que a usam. Encontremos formas de inventar novas palavras e tornar outras mais belas, como disse Drummond. Busquemos a ética na (est)ética de nossas palavras e textos. Confabulemos com urgência novas metáforas de claridade e escuridão, porque está tudo tão sufocantemente branco que a brancura queimou nossos neurônios. É preciso escurecer para perceber. Como disse Manoel de Barros, “às vezes ao poeta faz bem desexplicar – tanto quanto escurecer acende os vagalumes”.
Daniela Cabral Gontijo é artista, tradutora e doutora em bioética pela Universidade de Brasília.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2022/Cancelar-as-palavras-para-n%C3%A3o-cancelar-as-pessoas?utm_source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=anexo - Imagem da Internet
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