A modernidade representou como nunca o imaginário da unidade, da clareza, da identidade e da eliminação das contradições. O homem moderno queria ser transparente. Paradoxalmente a modernidade levou da obsessão pela transparência ao culto da visibilidade. Um salto opaco. Edgar Morin, que fez 101 anos de idade, neste 8 de julho, tem mostrado ao longo da vida o valor da complexidade.
Ao longo dos séculos, a ciência moderna investiu na dominação da natureza. Aos poucos, no entanto, enormes brechas apareceram: a terra não é o centro do universo, o homem não é um ser soberano a ponto de ter consciência de todos os seus desejos e motivações. Freud cravou uma estaca no coração da vaidade e da racionalidade humanas: há um “continente escuro” aquém e além da racionalidade contaminando e influenciando as ações de cada homem.
Compreender a complexidade, a importância da diversidade, do universal, da relativização e do respeito à diferença e da pluralidade do ser humano exige um olhar generoso, rigoroso, atento ao todo e também à parte.
Para Edgar Morin, sábio, pensador da complexidade – complexo é aquilo que se tece em conjunto, articulando vários fios –, precisamos buscar a unitas multiplex. Mas o que é realmente essa unidade múltipla? Ou, dito de outra forma, como conciliar inconciliáveis, equilibrar antagonismos e alcançar unidade na diversidade e diversidade na unidade? Como ser um uno múltiplo? Como comunicar aquilo que parece estar além da comunicação?
A complexidade, pelo “princípio hologramático”, baseado em Pascal, explicita o paradoxo todo/parte: a parte está no todo, que está na parte. Para Edgar Morin, intelectual longevo, nascido em 1921, a unitas multiplex remete à complexidade, que implica diversidade, cruzamentos, diferenças, inter, multi e transdisciplinaridade. Essa transdisciplinaridade é muito mais do que uma justaposição de disciplinas, mas um saber produzido para além da compartimentação disciplinar.
Ser complexo é buscar a explicação (racional, lógica, abstrata) e a compreensão (concreta, relacionada à empatia, ao procedimento de colocar-se no lugar do outro). A complexidade exige pensar o universal e o particular num mesmo movimento. Ou pensar o abstrato pelo concreto e o concreto pelo abstrato. Ser complexo significa defender a importância do universal e do particular, do geral e do singular, do comum entre homens e do que os diferencia. Somos todos iguais na diferença.
No livro Minha esquerda, Morin dá uma mostra dessa unidade na multiplicidade e dessa multiplicidade unitária. A epígrafe já diz tudo: “Eu sou um direitista de esquerda. Direitista porque valorizo muito as liberdades, mas, ao mesmo tempo, sou muito esquerdista, pois tenho a convicção de que nossa sociedade precisa de transformações profundas e radicais. Tornei-me um conservador revolucionário. Precisamos revolucionar tudo, mas conservando os tesouros da nossa cultura”.
Em O Método 5, o conceito ganha corpo: “Quanto mais a diversidade humana é visível, mais a unidade humana torna-se, hoje, invisível aos espíritos que só conhecem fracionando, separando, catalogando, compartimentando. Ou, então, o que aparece aos espíritos abstratos é uma unidade abstrata que oculta as diferenças. Precisamos conceber a unidade múltipla, unitas multiplex.
Assim, a diversidade está inscrita numa unidade da vida. Esta, a partir de um primeiro ser celular, diversificou-se fervilhando pelos reinos vegetal e animal. Deve-se essa diversidade, quanto aos animais nascidos da reprodução sexuada, à singularidade oriunda da combinação de dois patrimônios genéticos, mas também ao desenvolvimento próprio e às experiências particulares vividas por cada um até a idade adulta; assim, entre os animais domesticados, as violências sofridas ou as carícias recebidas, determinam caracteres opostos”.
Conceber essa unitas multiplex significa, portanto, apostar na complexidade como visão de mundo e modo de existência, o que só pode ser atingido por meio de uma atitude transdisciplinar, mais do que inter e multi. Edgar Morin explica: “As palavras importam muito e, ao mesmo tempo, pouco. No caso de multi, inter e transdisciplinaridade, cada um desses termos tem uma contribuição a dar, mas nenhum se basta. O importante mesmo é a atitude epistemológica. A interdisciplinaridade junta disciplinas diferentes; a multidisciplinaridade, articula-as; só a transdisciplinaridade, porém, supera a particularidade, conjuga os saberes e faz com que aportes diferentes trabalhem por um mesmo fim”. Qual fim?
O fim também deve ser uno e múltiplo: proteger o homem e o seu ambiente, o homem no seu ambiente, o meio sem qual o homem não floresce, o homem sem o qual o meio permanece virgem, a virgindade do meio como marca simbólica de uma origem que não pode desaparecer. A ilusão do homem moderno consistiu em pensar que podia dominar uma natureza de recursos inesgotáveis. Nesse sentido, o homem é complexo é, ao mesmo tempo, mais lúcido, mais modesto, mais pragmático e mais prudente. O homem moderno, na sua simplicidade cientificista, queria construir o melhor dos mundos. As suas utopias eram totalizantes. O homem complexo, como indica Morin, sabe que não pode chegar ao melhor dos mundos, mas nada o impede de trabalhar por um mundo melhor. Eis o desafio.
Edgar Morin prega uma reforma do pensamento. Precisamos aprender a pensar complexamente para tentar responder às incontornáveis questões kantianas: o que podemos saber? O que devemos fazer? O que temos direito de esperar? O que é o homem? Talvez a melhor maneira de responder a essa última questão seja tentar dizer quem é o homem que propõe essa reforma de pensamento, contrariando o primado das especializações, em pleno século XXI. Quem é esse Edgar Morin, uno na sua multiplicidade de personagens, de saberes, de posturas, de visões de mundo e de obras? Tomaremos um homem, Edgar Morin, na sua singularidade para pensar o ser humano na sua universalidade e também na sua relatividade.
Pensar dá prazer e faz viver muito.
* Jornalista. Escritor. Prof. Universitário
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