terça-feira, 19 de julho de 2022

A urna: muito além do bem e do mal

CARLOS GERBASE*

A tentativa de caracterizar as próximas eleições como uma batalha entre o bem e o mal é estratégia antiga. Jânio Quadros tornou-se presidente em janeiro de 1961 com um jingle que tinha a seguinte letra: "Varre, varre, varre vassourinha! Varre, varre a bandalheira! Que o povo já tá cansado de sofrer dessa maneira. Jânio Quadros é a esperança desse povo abandonado! Jânio Quadros é a certeza de um Brasil moralizado!". Oito meses depois, o grande moralizador renunciava, lançando o país numa séria crise política, que culminou no golpe de 64. Enquanto esteve no poder, em vez de combater a corrupção, Jânio atacou os biquínis, proibindo o seu uso em praias e piscinas de todo o território nacional. A alegação é de que eles eram "indecentes".

Em 1990, Fernando Collor também conquistou a presidência com um discurso moralizador. Ele era o "caçador de marajás". Denunciado como corrupto pelo próprio irmão, renunciou em 1992 para escapar do processo de impedimento. Na aparência, Collor era bem diferente de Jânio. Usava ternos bem cortados, em vez dos famosos "slacks indianos" de Jânio. Na política, contudo, tinham muito em comum: achavam que representavam o "bem", enquanto seus adversários eram do "mal". Essa simplificação é conduta recorrente entre políticos que falam em "Deus, Pátria e Família" enquanto erguem as bandeiras do "combate à roubalheira", da "moral e dos bons costumes" e da "decência". Além de eficiente para o eleitorado fundamentalista, rebaixa o debate para quem não tem condições intelectuais de enfrentá-lo com argumentos racionais.

Nos próximos meses, deveríamos discutir o tamanho do Estado, os efeitos danosos da concentração de poder em Brasília, as alternativas para conciliar desenvolvimento econômico e preservação do ambiente, novas estratégias de inserção do país no cenário internacional, planos concretos para diminuir a desigualdade social, enfrentar todo tipo de preconceito e combater a fome (não apenas com medidas emergenciais, e sim com planos de longo alcance). Em vez disso, assistiremos a uma suposta luta entre os "bons" e os "maus", que terá rimas tão ruins quanto "povo abandonado" e "Brasil moralizado", epítetos tão mentirosos quanto "caçador de marajás" e, como sempre, acusações de "roubalheira". O TSE deveria colocar ao lado de cada urna um exemplar de Além do Bem e do Mal, de Nietzsche. E um martelo, é claro, para que o fantasma do filósofo bata na cabeça de cada eleitor que ainda se deixa levar pela velha ladainha moralista.

* Escritor e cineasta brasileiro

Fonte:  https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=13439eabdd6307c6821dbb268b9e30e1 - Imagem da Internet

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