sexta-feira, 1 de julho de 2022

Censura judicial da liberdade artística

Fernando Romani Sales, Paloma Casanovas Reis e Yuri Marcelo Oliveira

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FOTO: Getty Images/Reprodução/"Vingadores:
 A cruzada das crianças"/Divulgação/ “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”
Cresce o número de disputas judiciais em torno da liberdade de expressão artística, ora pela censura, ora pelo resguardo desse direito. Conheça nesta linha do tempo alguns destes casos e entenda suas semelhanças

A Constituição Federal de 1988 determina que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (artigo 5º, IX). Apesar da liberdade artística ser prevista como um direito fundamental que não deve se sujeitar a censura ou licença, nos últimos anos o Poder Judiciário brasileiro tem acumulado decisões que restringiram ou censuraram manifestações culturais e artísticas.

Esses casos de censura judicial ocorrem nos quatro níveis decisórios do sistema de justiça, manifestando-se tanto na primeira instância – por meio de uma decisão individual de um juiz de direito –, quanto nos tribunais superiores, como no caso recente envolvendo ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que proibiu manifestações políticas de artistas no festival musical Lollapalooza.

Os casos de censura envolvem temas distintos e apresentam particularidades. No entanto, é possível observar alguns elementos em comum: a religião e a moralidade, esta última relacionada a noções como “família”, “bons costumes” e “cidadão de bem”, foram valores mobilizados pela maioria dos atores – geralmente, pessoas físicas ou entidades ligadas a algum movimento religioso – que acionaram o Judiciário em busca de restringir, de alguma forma, as manifestações artísticas. Nos casos em que o Judiciário acolheu os pedidos e censurou os artistas, essas noções foram igualmente utilizadas como fundamentos das decisões, preponderando sobre o direito à liberdade de expressão artística. Por outro lado, os tribunais superiores – especialmente o STF (Supremo Tribunal Federal) – têm revertido as decisões censórias e resguardado a liberdade artística.

Veja a seguir linha do tempo que apresenta e explica alguns dos casos recentes envolvendo disputas judiciais entre a censura e o resguardo da liberdade de manifestação artística:

Setembro de 2017

Juiz da 1ª Vara Cível de Jundiaí/SP suspendeu a apresentação da peça “Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” que aconteceria no Sesc da cidade.

A ação, proposta por uma cidadã, afirmou que a peça atenta contra a dignidade da fé cristã ao representar Jesus Cristo como uma mulher transexual e expõe ao ridículo símbolos religiosos. A organização do espetáculo declarou que a movimentação contra a exibição vinha sendo articulada há alguns dias por congregações religiosas, políticos e pelo TFP (Tradição, Família e Propriedade), ainda que a ação tenha sido apresentada por uma pessoa física, cujo vínculo com essas instituições não tenha sido expressamente comprovado. Em decisão liminar, o juiz Luiz Antonio de Campos Júnior entendeu que não se pode permitir que “figuras religiosas e até mesmo sagradas sejam expostas ao ridículo”, que a peça é “de indiscutível mau gosto e desrespeitosa ao extremo” e que caracteriza ofensa a diversas pessoas o fato de que o homem sagrado seja encenado como um travesti”. Com argumentos de cunho religioso e moral, o magistrado determinou a proibição da apresentação naquela e em demais datas, sob pena de multa diária de R$1.000,00 em caso de descumprimento. A produção da peça lamentou a decisão, lembrando que o Brasil é o “país que mais assassina travestis e transexuais no mundo”, e a diretora, Natalia Mallo, declara que “censurar um espetáculo, em nome dos bons costumes, da fé e da família brasileira” parece ser mais importante do que alterar esse quadro de violência.

Pouco menos de um mês depois do ocorrido, atendendo a recurso apresentado pelo Sesc, o desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), José Luiz Mônaco da Silva, reverteu a decisão que censurou a peça. Em julgamento definitivo, Silva entendeu que impedir a apresentação da exibição teatral viola o direito fundamental à liberdade de expressão artística e à livre manifestação do pensamento. O desembargador ressaltou que a peça tem caráter ficcional e não busca atacar a fé cristã. Além disso, destacou que a decisão do juiz Campos Júnior censurou a atividade artística da atriz transgêneroe que “pode-se até não concordar com o conteúdo da peça, mas isso não é motivo suficiente para alguém bater às portas do Judiciário para impedir a sua exibição. Basta não assistir ao espetáculo!”.

Junho de 2019

Desembargadores do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) declararam a inconstitucionalidade de lei que regulamenta apresentações artísticas em transportes públicos.

O então deputado estadual Flávio Bolsonaro apresentou ação para que fosse declarada a inconstitucionalidade de artigos da lei estadual que regulamenta manifestações culturais em estações e vagões de barcas, trens e metrôs. Para o deputado, a lei não poderia ter sido aprovada pela Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro), por ser matéria de competência privativa do governador. Além disso, Flávio Bolsonaro defendeu que a lei entra em conflito com o “direito dos usuários de serem transportados sem que haja a imposição de acompanhar as apresentações” e que deve prevalecer sua “garantia da segurança e bem-estar”.

Os desembargadores que compõem o Órgão Especial do TJ-RJ aceitaram a ação e declararam a inconstitucionalidade da lei por ferir os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. De acordo com o desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes, as manifestações culturais não podem ocorrer de “maneira a desrespeitar os direitos e garantias de terceiros, em prejuízo do sossego, bem-estar e segurança públicos”. Para Nunes, há grupos que utilizam as apresentações artísticas como pretexto para praticar “doutrinação política e ideológica” e “muitos desses ‘artistas’ são, na verdade, pessoas desempregadas” que constrangem os usuários a lhes darem dinheiro. Ele também levantou a possibilidade de que determinadas performances poderiam causar danos físicos aos usuários. Para o presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais, o advogado Mário Pragmácio, a decisão “endossa a recente política de criminalização e sufocamento do setor cultural”.

Houve, no entanto, divergência do desembargador Nagib Slaibi Filho. Ele defendeu que o direito de manifestação artística prevalecesse no presente caso, tendo em vista que a própria Constituição Federal estabelece que o Estado apoiará a valorização e difusão de manifestações culturais. Além disso, o magistrado ressaltou que as concessionárias que administram o transporte público têm poder de polícia e podem avaliar, a depender das circunstâncias, se as apresentações oferecem algum risco à segurança ou à integridade física dos passageiros.

A Alerj apresentou recurso ao STF (Supremo Tribunal Federal) contra a decisão do TJ-RJ, mas ainda não há previsão de julgamento do caso.

Setembro de 2019

TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) censura história em quadrinhos com beijo gay em feira de literatura.

O Tribunal de Justiça fluminense aceitou pedido feito pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, para censurar uma história em quadrinhos com beijo gay exposta na Bienal do Livro carioca. Segundo Crivella, o quadrinho deveria ser exposto em embalagem lacrada, por tratar de temática sobre "homotransexualismo" para o público infantil. Na decisão liminar (provisória) do TJ-RJ, o desembargador Heleno Nunes afirmou que a obra afronta o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) por apresentar conteúdo supostamente impróprio a menores em evento destinado a esse público. A obra em questão, lançada em 2016 no país, trata da história em quadrinhos do grupo de heróis “Vingadores”. A organização da Bienal do Livro afirmou que não seguiria a decisão censora e declarou à imprensa que a feira “dá voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser”.

Os gestores do evento recorreram da decisão do TJ-RJ ao STF (Supremo Tribunal Federal) e conseguiram decisão favorável à livre manifestação artística. O ministro do STF, Dias Toffoli, afirmou que a ilustração do beijo gay é uma expressão artística legítima, sendo a liberdade de expressá-la “condição para o exercício pleno da cidadania”. O ministro ainda afirmou que a publicação não afronta nenhuma regulação do ECA, e pontuou que a assimilação entre relações homoafetivas a conteúdo impróprio para jovens equipara proteção e cuidado à preconceito. Já o ministro Gilmar Mendes classificou a ordem de recolhimento dos quadrinhos como “censura prévia” e “patrulha do conteúdo de publicação artística”.

Dezembro de 2019

TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) proíbe show de cantora gospel no Réveillon de Copacabana, promovido pela prefeitura.

A Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos) apresentou ação à Justiça fluminense solicitando a proibição da apresentação da cantora gospel Anayle Sullivan e de qualquer outro cantor religioso na festa de ano novo carioca, sob o argumento de que tais shows desrespeitam o Estado laico, além de violarem o “patrimônio público e os interesses difusos da coletividade”. A juíza Ana Cecília de Almeida aceitou o pedido e vetou qualquer “show religioso” com apoio do poder público, estipulando multa de 300 mil reais em caso de descumprimento à ordem judicial. Na decisão, a magistrada afirmou que a apresentação da cantora gospel violava o direito fundamental à laicidade do Estado e ao princípio constitucional da liberdade religiosa, além de privilegiar uma determinada crença a despeito de outras. Vale ressaltar que, assim como o evento em Copacabana, a decisão também alcançou a apresentação do cantor católico Padre Lázaro, que se apresentaria na mesma data na Praia do Flamengo. A Prefeitura do Rio recorreu da decisão, porém o TJ-RJ manteve a proibição e a multa.

O Executivo Municipal, então, recorreu da decisão do TJ-RJ ao STF (Supremo Tribunal Federal), e a Corte reverteu as decisões anteriores para restabelecer a liberdade de expressão artística. Segundo o ministro Dias Toffoli, houve discriminação por parte do Judiciário ao impedir artistas de qualquer segmento musical de se aprensentarem. Toffoli ressaltou que o evento em questão não se trata de festa religiosa promovida pela prefeitura, mas sim de comemoração típica do município, que apresenta ao público shows de diversos gêneros musicais.

Janeiro de 2020

Desembargador do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) determinou a retirada do programa “Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo” da plataforma digital Netflix.

O pedido de suspensão do programa foi apresentado ao Judiciário pela Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, entidade católica, que defendeu que o programa ofenderia a fé e a religião cristã ao apresentar Jesus Cristo como homossexual. O desembargador do TJ-RJ, Benedicto Abicair, acatou o pedido do Centro Dom Bosco em sede liminar (provisória) ao considerar que o direito à liberdade de expressão artística não é absoluto, que a suspensão provisória do programa seria necessária para “acalmar os ânimos”, e que seria mais “benéfica” para a sociedade brasileira, de maioria cristã.

Após a decisão, o canal Porta dos Fundos publicou nota de repúdio em suas redes sociais criticando a censura judicial: “para quem não valoriza a liberdade de expressão ou tem apreço por valores que não acreditamos, há outras portas que não a nossa”. O canal ainda expressou confiança no Judiciário em reverter a decisão censora e preservar a liberdade de expressão artística.

A Netflix apresentou recurso contra a decisão de Abicair ao STF (Supremo Tribunal Federal), que reverteu o entendimento do desembargador do TJ-RJ e determinou a manutenção do programa no ar. A corte entendeu não ser possível censurar a manifestação artística, conforme estipulado na Constituição, e não vislumbrou ofensa à liberdade religiosa. O ministro Gilmar Mendes, que foi acompanhado pelos demais ministros, distinguiu “intolerância religiosa” de “crítica religiosa” para concluir que o programa não incita violência contra grupos religiosos. Em contrapartida, o Especial faria mera crítica, por meio de sátira, a elementos caros ao cristianismo.

Março de 2022

Ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) proibiu manifestações políticas por parte de artistas no festival Lollapalooza Brasil

O PL (Partido Liberal), partido político do presidente Jair Bolsonaro, acionou o TSE defendendo a ocorrência de suposta propaganda eleitoral irregular após as artistas Pabllo Vittar defender o ex-presidente Lula e Marina Diamandis criticar o governo Bolsonaro em suas apresentações no festival musical Lollapalooza. O PL alegou que a lei eleitoral proíbe antecipação de campanha eleitoral e que as manifestações das artistas “desabonaram” a imagem do pré-candidato Bolsonaro.

O ministro do TSE Raul Araújo acatou o pedido do PL e classificou as manifestações das artistas como “propaganda eleitoral irregular”. Araújo ainda determinou que outros artistas se abstivessem de realizar manifestações políticas e estipulou multa de cinquenta mil reais à organização do festival em caso de novos episódios. A decisão foi amplamente criticada pela sociedade civil organizada e por juristas, que interpretaram-na como censura e defenderam que não há caracterização de propaganda eleitoral antecipada, pois não houve pedido de voto específico, apenas mera manifestação livre do pensamento. No dia seguinte à decisão de Araújo, outros artistas que se apresentaram no festival também criticaram o governo Bolsonaro, em descumprimento à censura judicial como forma de protesto. Já a cantora Marina Diamandis reagiu em suas redes sociais após a decisão de Araújo: “a censura continua viva e bem. (...) estamos cansados desses homens que pensam que possuem os países que ‘lideram’”.

O ministro do STF e presidente do TSE, Edson Fachin, sinalizou que levaria o caso ao plenário do TSE e que reverteria a decisão de Araújo. Após a repercussão negativa na mídia e nos meios políticos, o PL desistiu da ação e o ministro Araújo revogou a sua própria decisão.

Fernando Romani Sales é doutorando em direito constitucional na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Mestre em direito e desenvolvimento, com bolsa Capes, pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP). Graduado em direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC). Atuou como monitor da FGV Law na pós-graduação lato sensu e em cursos de curta duração. Foi aluno, tutor e orientador da Escola de Formação Pública da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).

Paloma Casanovas Reis é pós-graduanda lato sensu em direito penal e criminologia pela Faculdade CERS e advogada graduada em Direito pela Universidade de São Paulo. Foi diretora do Departamento Jurídico XI de Agosto, participante do Grupo Direito e Pobreza e coordenadora do Grupo de Empoderamento Feminino que tem como objetivo pesquisar sobre violência de gênero e Lei Maria da Penha. Foi monitora de graduação nas disciplinas Introdução ao Estudo do Direito e Direito Constitucional.

Yuri Marcelo Oliveira é graduando em direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi aluno da Escola de Formação Pública da Sociedade Brasileira de Direito Público na FGV Direito SP, além de membro do Grupo de Estudos sobre Teoria do Estado Brasileiro, do Grupo de Estudos de Direito Constitucional Avançado e do Núcleo de Estudos da Transparência e da Comunicação de Interesse Público. Foi também coordenador da extensão Nelson 121, voltada para discussões jurídicas do setor audiovisual brasileiro.

Fonte:  https://pp.nexojornal.com.br/linha-do-tempo/2022/Censura-judicial-da-liberdade-art%C3%ADstica

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