Anselmo Borges*
O Concílio Vaticano II constituiu uma verdadeira revolução. Em Outubro de 1962, há quase sessenta anos, o Papa João XXIII inaugurou em Roma o II Concílio do Vaticano, um dos acontecimentos maiores e decisivos do século XX.
Há
quem pense e diga que o Concílio Vaticano II é responsável pela
presente crise da Igreja. Mas não é verdade. É impossível imaginar o que
seria a Igreja católica e, por arrastamento, o mundo, sem o Concílio.
Não é, porém, difícil supor que a Igreja se teria tornado um bloco
marmóreo a dar guarida a um museu de coisas religiosas. Quem quiser
aproximar-se da situação vá ler os manuais de teologia dogmática, de
teologia moral, de direito canónico, de liturgia, por onde estudavam os
futuros padres antes do Concílio, e pense, por exemplo, que na década de
cinquenta do século XX ainda se proibia às freiras a leitura da Bíblia,
ou que estava em vigor o Índex ou católogo dos livros proibidos aos
católicos, onde figuravam não apenas os teólogos críticos, mas também
Copérnico e Galileu, Descartes e Pascal, Hobbes, Locke e Hume, a Crítica da razão pura
de Kant, evidentemente Rousseau e Voltaire, também Comte, os grandes
historiadores Condorcet, Ranke, Taine, igualmente Diderot e D'Alembert
com a Encyclopédie e os juristas e filósofos do Direito
Grotius, Von Pufendorf, Montesquieu, a nata da literatura moderna, de
Heine, Vítor Hugo, Lamartine, Dumas pai e filho, Balzac, Flaubert, Zola,
a Leopardi e D'Annunzio, entre os mais recentes, Sartre, Simone de
Beauvoir, André Gide... Perante isto, quem não mantiver algum humor fica
atónito.
Não
é descabido afirmar que depois do momento em que, logo no seu início,
decidiu a sua abertura aos gentios, a Igreja terá tido no Vaticano II o
acontecimento mais decisivo para a sua história.
Foi
com o Concílio que a Igreja se viu a si mesma pela primeira vez como
Igreja universal. Antes, era uma Igreja romanocêntrico, com sucursais ou
filiais nos vários continentes. Apesar de toda a timidez, a Cúria
romana internacionalizou-se, as diferentes Conferências episcopais
assumiram responsabilidades e tomadas de posição autónomas, os leigos
estudaram teologia e começaram a participar na vida eclesial sem ser por
mera delegação da hierarquia. Contra uma concepção clericalizada,
afirmou-se a Igreja como Povo de Deus.
Abriu-se
uma era autenticamente ecuménica, na medida em que a Igreja assumiu
muitas das exigências da Reforma e tentou a reconciliação com a
modernidade. Assim, outras comunidades cristãs foram reconhecidas como
Igrejas, as celebrações litúrgicas viram consagrado o uso das línguas
vernáculas, a Bíblia tomou o seu lugar central na teologia, na pregação e
na vida dos crentes, e o seu estudo histórico-crítico devia ser
continuado. Por outro lado, afirmou-se claramente a liberdade religiosa e
de consciência, os direitos humanos foram igualmente reconhecidos,
condenou-se o antisemitismo com que a própria Igreja tinha sido
cúmplice, abriu-se um caminho novo de respeito, de diálogo e cooperação
com todas as religiões e também com os não crentes, estabeleceu-se uma
atitude fundamentalmente positiva em relação à democracia, à ciência, ao
progresso, reconheceu-se a separação da Igreja e do Estado, da religião
e da política, e a autonomia das realidades terrrestres. A nova atitude
face ao mundo já não era de condenação, mas de diálogo e de colaboração
leal.
Apesar
de todos os recuos posteriores, a Constituição da Igreja resultante do
Concílio dissociou-se, como escreveu o teólogo Hans Küng, da concepção
da Igreja como "uma espécie de império romano sobrenatural, que se tinha
mantido desde o século XI", e o Concílio inaugurou "uma era nova" na
história da Igreja católica.
Também
há quem pense e afirme que a presente crise da Igreja tem no Concílio a
sua causa maior. Mas com uma diferença essencial na argumentação:
enquanto uns atribuem as complicações aos excessos de abertura
conciliar, outros denunciam as barreiras e os bloqueios colocados ao
espírito do Concílio: centralismo da Cúria romana, substituição de
episcopados abertos por bispos cada vez mais conservadores, política de
enfraquecimento das Conferências episcopais, censura, silenciamento e
condenação de grande número de teólogos, imposição de uma moral sexual
que peca contra a natureza humana, rejeição liminar da ordenação de
mulheres, intocabilidade da lei do celibato sacerdotal, exclusão do
acesso aos sacramentos por parte dos divorciados que voltaram a casar, a
não ser que - requinte de cinismo! - vivam como irmão e irmã, proibição
da pregação por leigos, contenção no movimento ecuménico, desconfiança
em relação a novas iniciativas das bases…, numa palavra, em vez de
renovação e inovação, quis impor-se a restauração, escreveu Hans Küng.
Evidentemente,
a Igreja precisava de retomar sem medo o caminho do Concílio. Essa tem
sido a tarefa do Papa Francisco, na linha de João XXIII, quando o papado
se orientou numa linha de "um primado pastoral no sentido de liderança
espiritual, inspiração, coordenação e mediação", portanto, escreveu
ainda Hans Küng, de um papa que não se encontra acima da Igreja e do
mundo em posição divinizada, mas "na Igreja" como um membro
mais do povo de Deus, embora com responsabilidades especiais. Impõe-se
"desromanizar a Igreja" e é preciso pôr termo ao enxerto do
constantinianismo e, na expressão de Jean Cardonnel, "evangelizar Deus".
Pergunta-se: de facto, é ainda o Deus de Jesus que a Igreja anuncia?
*Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 16 de julho de 2022
Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/uma-nova-constituicao-para-a-igreja-1302678
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