domingo, 30 de outubro de 2022

Cem anos depois da Marcha sobre Roma, fascismo continua influenciando populistas

 Fabio Gentile*

Fascistas da Toscana marcham em direção a Roma em out. de 1922 Ann Ronan Picture Library/Photo12 via AFP

Construção de 'inimigos da nação' e uso de meios de comunicação de massas aproximam Bolsonaro de experiências fascistas


[RESUMO] Evento que mudou o rumo da história no século 20, a Marcha sobre Roma levou Mussolini ao poder cem anos atrás e inaugurou a era fascista de ditaduras autoritárias que desembocaria na Segunda Guerra. Embora hoje a conjuntura seja diversa, elementos do fascismo clássico permanecem em populistas e autoritários mundo afora, a exemplo de Bolsonaro no Brasil, como o uso da comunicação para atiçar vastas camadas populares contra as instituições e os discursos moralistas que forjam os "inimigos da nação".

Há cem anos, ocorria na Itália a Marcha sobre Roma, considerada o marco zero da "revolução fascista". Refletir sobre esse evento histórico é fundamental, pois ele não apenas alterou a história do século 20 como ainda impacta os nossos dias.

O projeto fascista se apresentou ao mundo como uma via alternativa para resolver um conjunto de questões da sociedade de massa, sobretudo as sociais, diante das dificuldades do Estado liberal de lidar com o conflito entre capital e trabalho produzido pela industrialização. Tentava, ao mesmo tempo, frear os avanços dos partidos socialistas e comunistas.

Benito Mussolini (dir.) recebe Adolf Hitler em Veneza em 1934 - Ann Ronan Picture Library/Photo12 via AFP

Nesse cenário turbulento, o fascismo deu uma resposta bem a seu jeito: os camisas-negras, que formavam a milícia violenta do grupo, ocuparam pontos estratégicos de Roma em 28 de outubro de 1922. Diante da possibilidade de um golpe de Estado, o rei Vitor Emanuel 3º nomeou Benito Mussolini primeiro-ministro do novo governo, o primeiro da era fascista.

Não há dúvida de que o fascismo foi filho da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), da qual herdou a violência brutal e o culto da busca pela "bela morte" por muitos dos jovens combatentes massacrados nas trincheiras.

Após a guerra, grupos de veteranos levantavam a bandeira do nacionalismo nas praças das grandes cidades italianas. Era uma geração frustrada, porque a Itália, mesmo tendo ganhado a guerra, não recebeu os territórios divididos no Pacto de Londres e no armistício com a Áustria-Hungria ("a vitória mutilada").

Nas raízes do fascismo, confluem ainda grupos milicianos paramilitares ("squadristi") compostos também por ex-combatentes da Grande Guerra.

Os fascistas tiveram um desempenho feroz no combate aos socialistas, um dos fatores que levaram o rei Vitor Emanuel 3º, as elites liberal-conservadoras, os setores industriais, os grandes latifundiários e a Igreja Católica a olhá-los com interesse ou mesmo financiá-los. Acreditavam que, uma vez controlados os conflitos sociais por meio da força, o fascismo sumiria ou voltaria aos limites de um conservadorismo um pouco mais moderado. Como hoje sabemos, estavam errados.

O fascismo pretende mobilizar as massas absorvendo-as no Estado totalitário. É uma novidade que só pode ser explicada se o colocarmos no cerne da modernidade do século 20.

Quando o rei Vitor Emanuel 3º esteve diante da escolha de assinar o decreto de estado de sítio, mobilizando o Exército contra o avanço das milícias fascistas que marchavam sobre Roma, ou convidar Mussolini para compor um novo governo, ele perguntou ao então primeiro-ministro, Luigi Facta, se os militares eram fiéis à monarquia.

Facta respondeu que sim, mas que era melhor não arriscar, porque a conjuntura político-social do país era muito delicada. Não indicar Mussolini para o cargo de chefe do governo poderia ter deixado a Itália à beira de uma guerra civil. O movimento socialista era forte e, no ano anterior (1921), havia criado o Partido Comunista Italiano.

A Marcha sobre Roma se tornou rapidamente objeto de atenção em nível global. Logo em seguida, a ditadura fascista se vendia ao mundo, ainda em crise pela Primeira Guerra, como uma terceira via, alternativa ao Estado liberal e ao Estado comunista criado pela Revolução Russa.

O fascismo, assim, tornou-se o modelo para todas as ditaduras entre as duas guerras mundiais e para as ditaduras militares da Guerra Fria: não apenas o nazismo, mas também o franquismo espanhol, o salazarismo português, o peronismo argentino, a Era Vargas e o regime militar no Brasil.

Diante desse quadro e em meio ao centenário da Marcha sobre Roma, é inevitável perguntar se há condições para uma volta do fascismo. Acredito que não, pensando na forma clássica do entreguerras. Contudo, é preciso destacar os elementos de continuidade e ruptura do fascismo histórico e dos líderes e movimentos neofascistas, autoritários e populistas, da conjuntura atual.

O que aproxima líderes populistas como Jair Bolsonaro, Matteo Salvini e Giorgia Meloni (Itália), Marine Le Pen (França), Viktor Orbán (Hungria) e Donald Trump (EUA) ao fascismo é, sem dúvida, o uso dos meios de comunicação de massa para mobilizar seu eleitorado, alimentar racismo e homofobia e propagar a ideia de "inimigos da nação", dos quais eles seriam os legítimos adversários e os únicos detentores dos valores nacionais.

Os casos da extrema direita que ganhou as eleições na Itália no mês passado e o de Bolsonaro no Brasil são bem expressivos dessa tendência.

Existem, porém, diferenças essenciais. No regime fascista clássico, havia um projeto estatal robusto, a tentativa de criar um Estado totalitário ou autoritário para resolver a questão social. Já os movimentos de extrema direita de hoje se colocam na onda neoliberal de desmonte do Estado, das políticas públicas e dos direitos sociais conquistados pela classe trabalhadora ao longo de décadas de lutas.

Outra diferença é que, agora, populistas e autoritários competem regularmente nas eleições, sem recorrerem ao uso de ameaças ou violência física, mas tão logo chegam ao poder começam a esvaziar a democracia por dentro, atacando a Constituição.

Pode acontecer na Itália da primeira-ministra Giorgia Meloni e de Ignazio La Russa, presidente do Senado e ex-militante neofascista; já ocorre no Brasil com o governo Bolsonaro.

A democracia tem anticorpos para derrotar o vírus autoritário e populista? Acreditamos que sim, até porque, uma vez no poder, a extrema direita se depara com barreiras institucionais e as complexidades de uma sociedade múltipla. No pós-Guerra Fria, não teve resultados significativos.

Por outro lado, o fascismo continua a ter um charme sedutor, já que a democracia liberal está em crise, o Estado está desmontado e partidos e sindicados não conseguem representar a demanda social. As massas querem mais segurança em detrimento da liberdade. Para elas, a liberdade não é o valor prioritário.

O fascismo clássico percebeu isso na hora de organizar seus seguidores. Hoje, para nosso receio, líderes populistas e autoritários aprenderam a lição e utilizam o discurso de proteção de forma muito eficaz.

* Professor de ciências sociais da UFC (Universidade Federal do Ceará). Vai publicar o livro "Ecos do Fascismo no Brasil de Getúlio Vargas (1930-1954)" em 2023 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/10/cem-anos-depois-da-marcha-sobre-roma-fascismo-continua-influenciando-populistas.shtml

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