Erro do presidente francês Nicolas Sarkozy está em desprezar o "corpo sagrado" do poder
BERNARD-HENRI LÉVY
Há um livro que diz tudo. Um livro antigo, quase um clássico, mas que, estranhamente, poucos se lembram de citar. Publicado em 1957, chama-se "Os Dois Corpos do Rei" [editado no Brasil pela Companhia das Letras]. Seu autor foi um historiador judeu alemão, medievalista que emigrou para os EUA no fim dos anos 1930: Ernst Kantorowicz (1895-1963).
E, se eu tivesse apenas um conselho a dar a Nicolas Sarkozy [presidente da França] e aos que, a seu redor, cuidam de sua imagem -e, principalmente, da imagem que ele passa de sua função-, seria que deixassem tudo de lado e se debruçassem sobre esse grande livro, essa obra-prima de história da Idade Média e, ao mesmo tempo, de ciência política contemporânea.
Qual é exatamente a tese de Kantorowicz? Resumindo a grosso modo, ela consiste em dizer que um soberano, qualquer que seja, não tem um corpo, mas dois. Ou, mais exatamente, que um homem, no instante preciso em que alcança o poder supremo, vê seu próprio corpo, seu ser, literalmente cindir-se em dois. De um lado, um corpo comum, que Kantorowicz chama de profano, que se parece com todos os corpos, que tem os mesmos desejos que eles, os mesmos arrebatamentos, as mesmas paixões. Do outro, um corpo sagrado, desligado das manobras dos outros corpos, tão impassível quanto o outro é apaixonado, tão mudo quanto o outro é loquaz e caprichoso -um corpo que, se não é místico, pelo menos é misterioso, imaterial, invisível, do qual se diz que tem por membros seus súditos ou que é do mesmo estofo que a instituição maior que encarna.
E o que essa teoria conclui -ou, melhor, o que ela sugere- é que a questão do poder, de seu exercício, de seu prestígio, é sempre uma questão de dosagem: entre o corpo vulgar e o corpo etéreo, entre o corpo perecível e o corpo sublime que se confunde com o Estado e garante sua perpetuidade, as proporções podem variar, mas deve haver uma proporção, coexistência, e proporção é um princípio inegociável.
Muita carne
Visto assim, o caso Sarkozy é simples. Excesso de corpo profano, insuficiência de corpo sagrado. Um corpo profano que ocupa todo o espaço, que engole o corpo sagrado. Excesso de carne, poder-se-ia dizer, excesso daquela primeira carne, a das paixões comuns, do prazer banal -e um eclipse inédito, jamais visto em qualquer regime, desse outro corpo que não goza, que não é submetido à paixão e que, por isso mesmo, impõe distância e respeito. Eu observo o presidente e, ao contrário de seus adversários, com uma dose de simpatia. Mas o problema não é sua "vida privada" -François Mitterrand [1916-96] teve uma que ele expôs, no final, de modo pelo menos igualmente ostentatório. Não é a "grosseria" de suas palavras -o "F..., imbecil!" que gritou no Salão da Agricultura para um homem que o insultou é realmente mais chocante do que a explosão de Jacques Chirac [presidente de 1995 a 2007] contra a segurança israelense em 1996, quando visitou o Muro das Lamentações, em Jerusalém? Não é tampouco que seja presente demais, em excessivo contato com a política do dia-a-dia -afinal, não foi por isso e pela energia supostamente correlata que o eleitorado o escolheu? Não. O verdadeiro problema, o que a opinião pública sente de modo confuso e não lhe perdoa, é ter dispensado o outro corpo, o sagrado, aquele que Kantorowicz, Dante (1265-1321) e Shakespeare (1564-1616), em "Ricardo 2º", pensam e encenam, assim como os doutrinários modernos do príncipe e de sua graça. O problema, o verdadeiro, o que mina sua popularidade e que amanhã impedirá sua ação é que esse homem normalmente tão atento às famosas "raízes cristãs" da França se torne de repente completamente cego para essa parte da herança cristã que é, nesse caso, o limite insuperável para uma laicidade plena e inteira. Podíamos sentir esse outro corpo em Chirac, Mitterrand, De Gaulle, Clinton e até no pobre George W. Bush; apesar das eventuais vulgaridades, adivinhava-se a aura, a presença difusa; em seu jovem sucessor não sentimos mais nada, e é isso que é trágico. Mas talvez a coisa obedeça, em seu espírito, a uma estratégia clara e consciente. Talvez ele pense em impor, assim, uma nova figura do soberano que, mais uma vez, romperia com os hábitos. E, ao fazê-lo, talvez ele até acredite ganhar vantagem em relação aos comentaristas que despreza e que estão atolados no passado. Se for esse o caso, ele se engana. Pois há passado e passado. Há um passado do qual fazemos tábula rasa e outro com o qual não se brinca. A teoria de Kantorowicz não é uma hipótese, mas um teorema -e, por definição, os teoremas não têm exceções.
A íntegra deste texto saiu no "Le Point". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1603200810.htm
A íntegra deste texto saiu no "Le Point". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1603200810.htm