O jornalista Martin Granovsky relembra uma entrevista feita em 2005 com Pepe Mujica para destacar a alegria dos uruguaios na Copa do Mundo da África do Sul. O técnico da seleção uruguaia resumiu: "os jogadores deram uma semana de felicidade aos uruguaios". É a mesma idéia expressa por Mujica em 2005: fazer o que te toca sem prejudicar a ninguém e ir somando momentos de felicidade. "A única coisa que vou fazer é manter minha forma de ser. Para tanto comprarei umas tantas brigas".
Martin Granovsky - Página 12
Blog de Martín Granovsky
O Uruguai ganhou. E falou Tabárez (técnico da seleção de futebol). Modesto, não disse que agora mudará a história. Disse, ao invés: "Os jogadores deram uma semana de felicidade aos uruguaios". No dia 1° de março de 2005, fiz uma reportagem com Pepe Mujica em seu sítio. Reli esse texto depois da partida com a Coréia. E vejo que a idéia é a mesma: ir somando momentos de felicidade. Recomendo de coração a leitura dessa reportagem. Não por mim, mas por Pepe.
"Fazer o que te toca sem prejudicar a ninguém"
Ele é o político mais popular do Uruguai. Como senador, presidiu a Assembléia Legislativa e pouco depois se tornou ministro da Agricultura, Pecuária e Produção, seu primeiro cargo no governo depois de mais de 50 anos de militância política. Página/12 foi o último veículo de comunicação que o entrevistou antes dessa mudança histórica.
O sítio está na estrada que vai da capital a Colônia, depois do Cerro, o bairro mais pobre de Montevidéu. É preciso passar por uma servidão e para chegar basta perguntar a qualquer um onde fica a casa de Pepe. Ninguém perguntará de que Pepe se trata e alguém informará que é preciso passar pelo açougue “El cimarrón” e por ali, próximo a uma parabólica, está o portão para entrar na casa do político mais popular do Uruguai, José “Pepe” Mujica.
São nove e meia da manhã quando os enviados da Pagina12 ligam uma pergunta a outra até passarem pela parabólica. Conseguirão a última entrevista com Mujica antes que este deixe a oposição, deixe o Senado e assuma, como ministro da Agricultura, Pecuária e Pesca, prestes a completar 70 anos? Um rapaz que ajuda Pepe Mujica e Lucia, sua mulher, deputada nacional pela Frente Ampla, no cultivo de hortaliças informa depois de uma pergunta que o caminho está livre.
Como em todo rancho que se preze, o portão fica fechado e se passa por uma falha no alambrado. Ao longe começam a aparecer as colinas da paisagem típica do Uruguai. À esquerda há um galinheiro. À direita, uma casa maior.
- Estamos reformando o teto. O velho tinha 60 anos e estava todo esburacado com goteiras – informam.
Ao lado do caminho de entrada, uma casinha fechada com a porta tapada com uma lona. Mujica está dentro.
- Não tem nada o que fazer para virem aqui? - quase grita.
Parece mal humorado o senador. Se o está de verdade, passa rápido, porque um segundo depois se senta numa mesa da cozinha, perto de dois cachos de cebola e de maçãs.
Lucia caminha todo o tempo ao redor da mesa forrada com uma toalha com desenhos de quadrados de plástico. Com um jornal enrolado nas mãos mata moscas, uma por uma. A explicação vem depois:
- Pepe está doente e não podemos usar inseticida nenhum.
O senador teve um problema renal. Foi logo antes de começar sua disputa judicial e a de todos os dirigentes da esquerda que tem entre 60 e 70 anos e foram militantes formados no começo dos anos 60. Em 15 de fevereiro, o Senado o designou presidente provisório. Mujica tomou o juramento de Eleutério Fernández Huidobro, que junto com ele fundou o Tupamaros. E Fernández Huidobro tomou-lhe juramento. Alberto Couriel (senador, nove anos de exílio) o chamou “ilustre presidente”. Também, com uma pequena vingança da política, Julio Maria Sanguinetti, que tinha feito uma campanha macartista contra a Frente Ampla, teve de juramentar ante Mujica.
No momento da entrevista faltavam poucas horas para que Mujica tomasse o juramento do primeiro presidente de sua força política, Tabaré Vázquez. Já estava com um terno novo, o mesmo terno azul que usou para o Senado. E comprou uma camisa branca. A camisa está aqui, bem passada.
Qual é a primeira coisa que será notada no governo da Frente Ampla?
Temos que fazer o plano de emergência. São 100 milhões de dólares por ano. Parece pouco, mas de juros da dívida, pagamos 650 milhões. São seis planos e bico por ano. Assim se entendem bem as cifras. Do mesmo modo, eu acho que este país é um pouco econométrico, não?
Por que econométrico?
Exato. Quando o poder aquisitivo aumenta se compra comida. E isso é muito reativador da economia e do trabalho. Sei que estamos submetidos às ações do mundo, mas também à marcha da região. E se o aumento do trabalho é duradouro, a economia será sustentável.
Qual a expectativa exata dos uruguaios que votaram, na sua percepção?
Ser um pouco melhor. 70% espera mudanças, mas não espetaculares nem imediatas. Isso fala de um povo em termos globais, mede bem as coisas.
"Quando o poder aquisitivo aumenta
se compra comida"
Ou seja, coincide com a medida.
Sim. Haverá mudanças, mas não espetaculares.
Que identidade terá o governo?
Não sei se é o caso de lutar pela identidade. Há que ser não mais do que se é. Sim. O Uruguai é o país mais pecuário do mundo, por suas exportações. A única coisa que vou fazer é manter minha forma de ser. Para tanto comprarei umas tantas brigas.
Por onde começarás?
Pelo aparato estatal. Este é um país pecuário, como disse, mas concentrado em Montevidéu. O Estado está em Montevidéu e tem secretarias dispersas no resto do país, onde se produz. Temos mais vacas e ovelhas que cristãos, mas a Faculdade de Veterinária está em Pocitos (1).
Disse isso aos veterinários durante a campanha?
Claro. Falei com eles e com os estudantes, porque o aparato do Estado está envelhecido. Isso ocorre com a saúde e com todos os departamentos. E está envelhecido porque também os veterinários estão velhos. Há que se renovar. Estimular os guris para que tirem todo o conhecimento dos velhos. Têm de aprender antes que os velhos caiam aos pedaços.
Você insiste muito na conexão entre as pessoas. É um de seus motes?
Aqui um organismo não fala com outro pelo telefone. Temos quatro caminhonetes, cujo uso não é coordenado. Bom, escolhamos oito a dez questões, e trabalhemos a partir dali. Mas pensando nas pessoas em termos concretos, a pobreza não será combatida só pelo ministério da Ação Social. Eu seria tonto se não me desse conta de que parte de meu trabalho é melhorar a vida no campo. Há 15 mil campesinos vivendo abaixo da linha da pobreza. E nas mesmas condições estão 60 a 70 mil peões rurais. Não esperes empresas prósperas rodeadas de pessoas mortas. Para tudo isso que estamos trabalhando em equipe, e temos companheiros de uma solidez técnica brutal. Uns de organizações internacionais e outros daqui.
Quero que fique uma equipe sólida que se comprometa com a tarefa. Gente com talento. A política não é só um trampolim. Gente com mais peso faz falta. Difícil. Mas sim, vamos estar muito mal. Não há política sem introduzir a matemática. Basta de conversas linguarudas que não sabem de nada.
Por esse caminho se fica com muita matemática e pouca política.
A tecnocracia? Sim, é uma boa saída. Mas eu não vejo um perigo aí, porque estamos na América Latina.
Não há tecnocratas no continente?
Sim, claro, mas predominam os advogados. São tantos que não há perigo de que os tecnocratas sejam mais. Até agora ficamos com advogados e exportamos os engenheiros. Aqui estão os vendedores de verso. Certo que para alguns isso é ruim. Mas há que ser um pouco herege para fazer essas mudanças. Os meninos odeiam a matemática. Quando os professores falam, parece que não tiveram qualquer responsabilidade nisso. A culpa é sempre das crianças. Depois, por isso, ocorre de nos venderem uma caixinha de remédios e em troca os vendemos um barco carregado. O desenvolvimento do conhecimento é parte da liberação. Dirão a mim: os velhos revolucionários se tornaram reformistas.
Se são reformistas, bom, não estão mal, não?
Fazemos uma reforma porque já não podemos fazer outra coisa. Mas não o digo com tristeza. Ou ficamos nos anos 60 ou assumimos o desafio de fazer a história de outro tempo. Acreditávamos que mudando as relações de propriedade mudaríamos o mundo. As relações mudaram, mas o mundo não mudou. Falo muito disso. É um problema de civilização. Assim vemos o homem marchar para o desastre. É preciso construir sociedades mais justas e felizes, mas não vamos conseguí-las se não tivermos uma relação muito audaz e muito ativa com o passado. Não é só mais riqueza o que faz falta.
Falas do mundo...
Do mundo e do Uruguai. Mais riqueza e melhor distribuída. Se não, esta civilização é de mentira. Se os hindus comprarem tantos carros como os alemães, não restará oxigênio para respirar no mundo. Por isso a promessa de maior consumo é mentirosa quando vem com esta perspectiva: prometem-nos algo que não existe e eque será impossível. Essa geladeira que está ali (Mujica mostra uma General Electric pintada de azul), assim como a vês, tem 57 anos. Paguei por 12 pesos ao mês. Funciona. Não a fabricam mais assim porque precisam tirar tempo de vida de mim.
Qual é a relação do tempo com a solidez da geladeira?
Se se quebra algo e necessito comprar algo, e comprar o novo produto, pago com meu tempo de vida. Ser avaro com o tempo de alguém é uma luta pela liberdade. Tu só és livre quando tens tempo para fazer o que queres. Quanto mais margem de tempo se tem, sem prejudicar ninguém, mais livres és. Dizem que Euclides, um dia, enquanto fazia cálculos para uma estrada, encheu um copo e o usou como medida. Ao passar a medida o líquido transbordava. Tinha limite. Querem pôr limites à liberdade do homem. Temos de fazer como Euclides e pôr limites, nós mesmos. Se não, com esta civilização não valerá a pena construir. Eu me lembro de, em 63, na Universidade Lomonov de Moscou, os soviéticos se matarem para me comprar uma camisa horrorosa. De nylon. Falemos de valores. Se não, “hay unos que trabajan de trueno y es para otros la llovida" (2) [algo como: alguns trabalham debaixo de mau tempo, enquanto chove na horta de outros]. Há que discutir com os deuses. Com o Lênin careca, com o velho Marx...
Com Marx nem tanto. Ou não vem daí sua idéia de lutar para defender o ócio?
Claro que sim. Vou confessar que me sinto mais próximo de Marx que de Lênin. Não renego nada. Não mudo de lado. O capitalismo é um sistema cada vez mais atroz, mas não tenho respostas mágicas para seu contrário. Quando se está num túnel e não se vê a luz, olha para trás em busca da luz que conheceste. Mas a história não anda para trás. Veremos isso também quando passar o tempo do cowboy unipolar. Porque vai passar. Nesta região começou a tremedeira. Embora outros tenham tanta paciência. Os chineses são muuuuuuito pacientes. Os europeus estão preocupados com a Europa central. E nós necessitamos que haja mais pólos no mundo.
Já que fala de tremedeira...
Digo que estou muito contente com a negociação da dívida argentina. E estou muito triste com a covardia das chancelarias da América Latina. Não tiveram qualquer gesto de solidariedade na negociação. Se portaram com covardia, cada qual na sua, e também a nossa chancelaria. Agora, da parte da Argentina, os organismos financeiros poderiam ter um espaço para visões mais heterodoxas.
(2) Essa expressão ocorre numa célebre composição de Atahualpa Yupanqui, conhecida como El payador perseguido, neste verso: “El trabajo es cosa buena/ Es lo mejor de la vida;/ Pero la vida es perdida/ Trabajando en campo ajeno./Uno trabaja de trueno/Y para otro es la llovida”. N.deT.
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Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: www.cartamaior.org.br - 27/06/2010