Antonio Delfim Netto*
Há um ruído natural no sistema econômico-financeiro criado pelas incertezas que sempre acompanham as sucessões presidenciais. De qualquer forma, elas são menores do que as que nos afligiram nas últimas. Há um sentimento de continuidade sem continuísmo. Ele manterá o país na rota de uma sociedade democrática e republicana, que perseguirá o caminho do aumento da igualdade de oportunidades para todo cidadão. Essa é a "preferência revelada" pela sociedade brasileira na Constituição de 1988.
Não pode haver compromisso mais forte com tais objetivos do que a primeira declaração da presidente Dilma Rousseff, logo após ter sido consagrada nas urnas: 1) o povo brasileiro não aceita que governos gastem acima do que seja sustentável; 2) a prioridade será a erradicação da miséria; e 3) zelarei pelo aperfeiçoamento de todos os mecanismos que liberem a capacidade empreendedora de nosso empresariado e de nosso povo.
Um claro programa de responsabilidade macroeconômica e de incentivos microeconômicos corretos para estimular a competição e as inovações, que são a base do desenvolvimento econômico. Em síntese:
1) liberdade individual que estimula a iniciativa num ambiente competitivo; e
2) sustentado por Estado-indutor limitado constitucionalmente ("zelarei pela Constituição, dever maior da Presidência da República"), capaz de regular adequadamente a atividade econômica e eficaz na produção dos bens públicos (segurança, educação, saúde, estabilidade da moeda), que são a essência do regime republicano. Todo cidadão com a mesma igualdade de oportunidades e todos - inclusive o governo - sujeitos às mesmas leis.
Programa do governo tem que ser abrangente e transparente
O programa é muito bom para um país onde o setor privado compara-se, em eficiência, aos dos outros países com PIB per-capita parecido, mas no qual a ineficiência do setor público é um lamentável fato. Não adianta procurar desculpas ou fechar os olhos. A despeito de algum esforço do governo, essa é, ainda, a nossa realidade. Em todos os ranqueamentos feitos por instituições internacionais sérias, o setor privado se situa em torno do terceiro decil, enquanto setor público frequenta o décimo!
É verdade que os números são sempre discutíveis, mas o "sentimento" coletivo diz que o sinal está correto. O primeiro passo talvez seja dar maior musculatura à gestão (do Ministério do Planejamento) que fez um bom trabalho com o ministro Paulo Bernardo. É preciso expandi-la para a desburocratização radical das relações entre o Estado e a sociedade. Isso parece ser sinalizado nos primeiros movimentos da presidente, com a escolha de Miriam Belchior.
Persiste, entretanto, uma enorme dúvida entre os analistas financeiros sobre a decisão explicitada pela presidente de que sustentará a política fiscal combinada com o ministro Mantega para reduzir o déficit nominal (até eliminá-lo) e reduzir a relação dívida pública líquida/PIB para 30% (melhor talvez fosse reduzir a dívida pública bruta/PIB para 40%). O objetivo fundamental de tal política é dar ousadia e suporte ao BC sob o comando de Alexandre Tombini, para, num tempo adequado, trazer a taxa de juro real do Brasil para qualquer coisa como 2% a 3%.
Essa é a necessidade para mantermos funcionando - sem risco - a política econômica canônica bem-sucedida que vimos adotando desde 1999. Fazer a taxa de juro real interna convergir para a média internacional é a única forma de reduzir os movimentos de capitais oportunistas, que podem manter a taxa de câmbio fora do equilíbrio por tempo suficiente para produzir graves problemas na produção interna de bens e serviços.
É claro que 2009 e 2010 foram anos que exigiram políticas fiscal e monetária muito agressivas, justificadas pela necessidade de acelerar a saída do país da recessão iniciada em 2009 e produzida pela patifaria do setor financeiro externo. Mas é claro, também, que há por trás de algumas análises um julgamento muito rigoroso (e com claro viés ideológico) com relação àquela política fiscal. Afinal estamos terminando 2010 com o déficit nominal de 2,5%, superávit primário (efetivo) em torno de 1,6% e relação dívida/PIB de 68% (bruta) e 41% líquida.
Nada disso sinaliza uma tragédia ou exige um ajuste fiscal dramático, como sugerem alguns "falcões" monetaristas. É por isso que o governo poderá submeter à sociedade um programa aceitável e crível que, num prazo razoável, atinja seus múltiplos objetivos: déficit nominal zero, relação dívida/PIB convergente para o objetivo e política monetária coerente com o controle da expectativa inflacionária. E taxa de juro real monotonicamente decrescente.
Para ser crível (e, portanto, para que seus objetivos criem antecipadamente as necessárias expectativas) o programa tem que ser abrangente e transparente. Tem que mostrar, por exemplo, como vai enfrentar o problema do juro real das cadernetas de poupança; como vai estimular a formação de poupança; como vai modificar a qualidade do financiamento da dívida; como vai eliminar os resquícios de indexação que ainda infestam a economia; como vai fazer as despesas do governo (excluídos os investimentos) crescer a taxa menor do que o PIB; como vai resolver o problema da previdência pública etc.
Para julgar o programa do novo governo é preciso esperar que seja apresentado. O que não tem cabimento é colocar em dúvida os objetivos declarados pela presidente ou "pensar" que sabe o que ela verdadeiramente "pensa". O melhor é acreditar no que ela diz e dar-lhe um voto de confiança!
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*Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feira.
Fonte: Valor Econômico online, 30/11/2010