terça-feira, 30 de novembro de 2010

Voto de confiança

Antonio Delfim Netto*
Há um ruído natural no sistema econômico-financeiro criado pelas incertezas que sempre acompanham as sucessões presidenciais. De qualquer forma, elas são menores do que as que nos afligiram nas últimas. Há um sentimento de continuidade sem continuísmo. Ele manterá o país na rota de uma sociedade democrática e republicana, que perseguirá o caminho do aumento da igualdade de oportunidades para todo cidadão. Essa é a "preferência revelada" pela sociedade brasileira na Constituição de 1988.
Não pode haver compromisso mais forte com tais objetivos do que a primeira declaração da presidente Dilma Rousseff, logo após ter sido consagrada nas urnas: 1) o povo brasileiro não aceita que governos gastem acima do que seja sustentável; 2) a prioridade será a erradicação da miséria; e 3) zelarei pelo aperfeiçoamento de todos os mecanismos que liberem a capacidade empreendedora de nosso empresariado e de nosso povo.
Um claro programa de responsabilidade macroeconômica e de incentivos microeconômicos corretos para estimular a competição e as inovações, que são a base do desenvolvimento econômico. Em síntese:
1) liberdade individual que estimula a iniciativa num ambiente competitivo; e
2) sustentado por Estado-indutor limitado constitucionalmente ("zelarei pela Constituição, dever maior da Presidência da República"), capaz de regular adequadamente a atividade econômica e eficaz na produção dos bens públicos (segurança, educação, saúde, estabilidade da moeda), que são a essência do regime republicano. Todo cidadão com a mesma igualdade de oportunidades e todos - inclusive o governo - sujeitos às mesmas leis.
Programa do governo tem que ser abrangente e transparente
O programa é muito bom para um país onde o setor privado compara-se, em eficiência, aos dos outros países com PIB per-capita parecido, mas no qual a ineficiência do setor público é um lamentável fato. Não adianta procurar desculpas ou fechar os olhos. A despeito de algum esforço do governo, essa é, ainda, a nossa realidade. Em todos os ranqueamentos feitos por instituições internacionais sérias, o setor privado se situa em torno do terceiro decil, enquanto setor público frequenta o décimo!
É verdade que os números são sempre discutíveis, mas o "sentimento" coletivo diz que o sinal está correto. O primeiro passo talvez seja dar maior musculatura à gestão (do Ministério do Planejamento) que fez um bom trabalho com o ministro Paulo Bernardo. É preciso expandi-la para a desburocratização radical das relações entre o Estado e a sociedade. Isso parece ser sinalizado nos primeiros movimentos da presidente, com a escolha de Miriam Belchior.
Persiste, entretanto, uma enorme dúvida entre os analistas financeiros sobre a decisão explicitada pela presidente de que sustentará a política fiscal combinada com o ministro Mantega para reduzir o déficit nominal (até eliminá-lo) e reduzir a relação dívida pública líquida/PIB para 30% (melhor talvez fosse reduzir a dívida pública bruta/PIB para 40%). O objetivo fundamental de tal política é dar ousadia e suporte ao BC sob o comando de Alexandre Tombini, para, num tempo adequado, trazer a taxa de juro real do Brasil para qualquer coisa como 2% a 3%.
Essa é a necessidade para mantermos funcionando - sem risco - a política econômica canônica bem-sucedida que vimos adotando desde 1999. Fazer a taxa de juro real interna convergir para a média internacional é a única forma de reduzir os movimentos de capitais oportunistas, que podem manter a taxa de câmbio fora do equilíbrio por tempo suficiente para produzir graves problemas na produção interna de bens e serviços.
É claro que 2009 e 2010 foram anos que exigiram políticas fiscal e monetária muito agressivas, justificadas pela necessidade de acelerar a saída do país da recessão iniciada em 2009 e produzida pela patifaria do setor financeiro externo. Mas é claro, também, que há por trás de algumas análises um julgamento muito rigoroso (e com claro viés ideológico) com relação àquela política fiscal. Afinal estamos terminando 2010 com o déficit nominal de 2,5%, superávit primário (efetivo) em torno de 1,6% e relação dívida/PIB de 68% (bruta) e 41% líquida.
Nada disso sinaliza uma tragédia ou exige um ajuste fiscal dramático, como sugerem alguns "falcões" monetaristas. É por isso que o governo poderá submeter à sociedade um programa aceitável e crível que, num prazo razoável, atinja seus múltiplos objetivos: déficit nominal zero, relação dívida/PIB convergente para o objetivo e política monetária coerente com o controle da expectativa inflacionária. E taxa de juro real monotonicamente decrescente.
Para ser crível (e, portanto, para que seus objetivos criem antecipadamente as necessárias expectativas) o programa tem que ser abrangente e transparente. Tem que mostrar, por exemplo, como vai enfrentar o problema do juro real das cadernetas de poupança; como vai estimular a formação de poupança; como vai modificar a qualidade do financiamento da dívida; como vai eliminar os resquícios de indexação que ainda infestam a economia; como vai fazer as despesas do governo (excluídos os investimentos) crescer a taxa menor do que o PIB; como vai resolver o problema da previdência pública etc.
Para julgar o programa do novo governo é preciso esperar que seja apresentado. O que não tem cabimento é colocar em dúvida os objetivos declarados pela presidente ou "pensar" que sabe o que ela verdadeiramente "pensa". O melhor é acreditar no que ela diz e dar-lhe um voto de confiança!
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*Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feira.
Fonte: Valor Econômico online, 30/11/2010

A história contemporânea em 250 mil mensagens

Philip Stephens*

Vasculhar o enorme acervo, até agora secreto, de mensagens do Departamento de Estado americano despejadas na web pelo WikiLeaks é mergulhar na história do presente. Relatos sobre falsidade diplomática e retratos nus e crus de líderes estrangeiros ganharam as manchetes. O pano de fundo mais amplo é o de um dos países mais poderosos do planeta lutando para manter a sua primazia.
Os diplomatas americanos têm a pena afiada, mas geralmente precisa. O italiano Silvio Berlusconi é realmente irresponsável e vaidoso e, em política externa, é um fantoche do russo Vladimir Putin. Nicolas Sarkozy é descrito como irritadiço e arrogante; já ouvi diplomatas franceses dizerem coisas piores. A alemã Angela Merkel não pode reclamar da avaliação de não ser dos líderes mais criativos.
O presidente russo, Dmitri Medvedev, não deve estar muito contente em se ver caracterizado, ainda que numa troca de mensagens diplomáticas de 2008, como o "Robin" de um "Batman" Putin. Atualmente, Medvedev faz questão de enfatizar aos visitantes ser o único responsável da política externa russa. O equilíbrio parece efetivamente ter mudado um pouco. Dito isso, duvido que muitos russos discordem da avaliação americana.
Levando em conta como sabota os esforços dos EUA de retomada do processo de paz no Oriente Médio, Benjamin Netanyahu sai pouco chamuscado. O premiê de Israel é definido como elegante e simpático, mas avesso a cumprir promessas. Observações desrespeitosas sobre David Cameron enviadas de Londres deixaram o governo britânico alvoroçado, mas dificilmente o primeiro-ministro britânico poderia afirmar ter se convertido desde então numa figura de destaque no cenário mundial.
Por mais que a publicação dessas fofocas de alto nível tenha ferido muitos egos, trata-se na verdade de material rotineiro de comunicação diplomática. Ninguém deveria surpreender-se com o fato de que diplomatas americanos nas Nações Unidas possam recolher informações pessoais sobre funcionários da ONU. Todo mundo que é alguém faz algo semelhante.
As revelações, é claro, serão prejudiciais aos interesses dos EUA. O governo de Barack Obama terá mais dificuldades para fazer amigos e influenciar pessoas. Os adversários agora estão em guarda e passarão explorar evidências de duplicidade americana.
Os despachos mais interessante, porém, são os relacionados com políticas, mais que com personalidades. Neles vemos a hipocrisia de alguns aliados dos EUA, bem como os equívocos americanos, especialmente no Oriente Médio.
Nada há de novo na hostilidade árabe contra o Irã, de maioria xiita. Os líderes sunitas da Arábia Saudita e alguns países do Golfo são há muito tempo receptivos à ideia de um ataque americano contra instalações nucleares iranianas, embora publicamente neguem qualquer intenção hostil a Teerã. Ver tudo isso no papel é sem dúvida surpreendente. O persistente lobby de Washington deixa algumas atitudes árabes em relação ao regime iraniano parecendo quase indistinguíveis das de Israel.
Esse jogo duplo não se limita ao Irã. O governo do Iêmen contenta-se em ver Washington usar aviões não-tripulados para bombardear os insurgentes da Al-Qaeda no país. Por outro lado, os EUA devem manter-se firmemente fiéis à ficção público de que os ataques são realizados pelas forças iemenitas.
No Afeganistão, Hamid Karzai é descrito como paranoico e acredita-se que um irmão do poderoso presidente esteja envolvido com corrupção e produção de ópio. Mas Washington só pode dar de ombros. Não tem outra opção. Igualmente, os esforços para deter a proliferação nuclear no Paquistão têm sido bloqueados, em Islamabad, por um governo que depende muito de dinheiro dos EUA, mas que está determinado a manter suas opções em aberto.
Em outra parte do acervo de documentos secretos, vemos que a Rússia foi persuadida a apoiar mais sanções da ONU contra o Irã só quando o governo Obama decidiu abandonar os planos de instalação de defesas antimísseis na Europa. A China vem desfechando ataques virtuais contra empresas e agências do governo dos EUA. Governos europeus tiveram de ser ameaçados e subornados para aceitar presos de Guantánamo.
O retrato que emerge é o de um mundo em que a única superpotência tem um cão em cada briga, mas pode esperar muito pouca ajuda dos outros. Netanyahu quer que Obama bombardeie o Irã, mas não cedeu um centímetro para ajudar os EUA a reiniciar as negociações de paz com os palestinos.
A Rússia se diz contra um Irã nuclear, mas espera ser paga por sua cooperação. Europeus censuram Washington pela maneira como trata suspeitos de terrorismo, mas não querem ajudar os americanos a mudar as coisas. Os governos árabes querem que os EUA os protejam do Irã, mas só se o arranjo for mantido em segredo.
O que tudo isso nos diz é que o poder americano está efetivamente em declínio. Num mundo de países emergentes, de proliferação nuclear e de terrorismo internacional, Washington não pode ter certeza de que prevalecerá. Em que medida deveríamos ficar felizes com isso, é outra questão. Por cortesia do WikiLeaks e com base em 250 mil mensagens, pudemos vislumbrar algumas das alternativas. Que importância tem, afinal, uma falsidade diplomática, em relação, digamos, uma corrida nuclear no Oriente Médio?
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*Financial Times
Fonte: Valor Econômico online, 30/11/2010

Ligados à máquina

JOÃO PEREIRA COUTINHO*

 
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Minha perversidade não é um
traço de mau-caráter.
É, quando muito,
uma experiência sociológica

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A PERVERSIDADE é o único desporto que pratico. Com regularidade. Um exemplo: alguém me apresenta uma celebridade, dessas que são conhecidas por serem conhecidas, e eu finjo que nunca ouvi falar. "Como é mesmo o seu nome?"
O personagem em causa repete o nome, como se tivesse escutado uma heresia. O rosto não mente: a estupefação profunda; o naufrágio iminente; por vezes, a revolta silenciosa, dolorosa; mas, em todos os casos, uma velha insegurança, que vem das profundezas da alma.
Às vezes, quando estou em forma, subo a parada. A pessoa repete o nome. E eu, propositadamente, troco a profissão. Se é um cantor, digo que já o vi numa novela. Se é um ator, confundo com um cantor. É o golpe final na vaidade da criatura.
A minha perversidade não é um traço de caráter. De mau-caráter. É, quando muito, uma experiência sociológica: as pessoas podem ter todos os aplausos do mundo; podem ter legiões de assessores, adoradores e puros escravos; mas se não existe uma personalidade segura e forte por detrás da máscara, qualquer pequena pedra na engrenagem faz tremer e descarrilar a máquina. Eu sou essa pequena pedra.
A perversidade, dizia, é o único desporto que pratico. Mas nunca esperei encontrar um irmão gêmeo em Michael Foley. Encontrei.

"O Ocidente rico e pós-ideológico
vive mergulhado numa combinação mortal
de desejo permanente e insatisfação permanente.
Queremos sempre tudo.
Queremos sempre mais."

Michael Foley é um filósofo britânico e o seu "The Age of Absurdity" (Simon & Schuster, 260 págs.), que li às gargalhadas numa sala de aeroporto, é um prodígio. Não de filosofia, porque o livro não pretende ser um tratado filosófico. É apenas uma observação perspicaz das nossas loucuras contemporâneas.
E, a páginas tantas, Foley descreve a forma como as celebridades inglesas reagem sempre que ele finge ignorar quem elas são. De fato, a vaidade da natureza humana é igual em qualquer língua.
Nem poderia ser de outra forma. O Ocidente rico e pós-ideológico vive mergulhado numa combinação mortal de desejo permanente e insatisfação permanente. Queremos sempre tudo. Queremos sempre mais. Pior: sentimos que merecemos tudo e temos direito a mais. Mais dinheiro. Mais amor. Mais sexo. Mais reconhecimento. Mais, mais, mais.
Mas, precisamente por querermos sempre tudo e sempre mais, nada do que temos resolve a nossa agônica impermanência.
Nada disso é novo: não existe religião ou filosofia clássica, a começar pela estoica, que não tenha relatado os dramas dessa "dança macabra": a dança do desejo e da sua perpétua insatisfação.
A originalidade de Foley está em aplicar essa verdade aos aspectos mais anódinos do nosso cotidiano, mostrando a "dança" em funcionamento. Nas escolas. Nos lugares de trabalho. E até nas relações pessoais, onde aplicamos o mesmo raciocínio que preside às nossas idas ao shopping do bairro. Se podemos comprar tudo, por que motivo a pessoa que vive ao nosso lado não nos pode fornecer tudo também?
Michael Foley não fica no diagnóstico. Sugere terapia para aliviar essa estranha condição de nos sentirmos como lixo apesar de vivermos em condições materiais com que os nossos antepassados apenas sonhavam.
Mas aqui reside o primeiro mito: a riqueza material é importante; mas, a partir de um certo grau de conforto, a droga não resulta mais.
Robert Nozick, outro filósofo citado por Foley, sabia disso: 30 anos atrás, Nozick pedia-nos que imaginássemos as nossas vidas ligadas a uma máquina. E a máquina simularia experiências altamente satisfatórias, capazes de substituir o vale de lágrimas onde nos arrastamos.
A conclusão de Nozick é glacial: jamais aceitaremos trocar a vida imperfeita que temos pela vida perfeita que a máquina nos concede. Jamais aceitaremos trocar a autenticidade por uma farsa, mesmo que a farsa seja aprazível.
Foley concorda com Nozick. Eu concordo com ambos. Em teoria, e nos momentos de ócio ou desespero, podemos abominar as dificuldades; as responsabilidades; e, no limite, a nossa perturbante mortalidade.
Mas, paradoxalmente, é a dificuldade, a responsabilidade e a consciência do fim que tornam as nossas vidas significativas. "Tudo que é importante é difícil", escreve Foley.
Ou, por outras palavras, de que vale uma máquina de experiências perfeitas se nenhuma dessas experiências foi realmente conquistada e merecida?
Desconfio que as celebridades ocas que encontro com frequência teriam muito a aprender se, de vez em quando, desligassem a sua vaidade da máquina. E viessem cá para fora viver.
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jpcoutinho@folha.com.br
Fonte: Folha online, 30/11/2010

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A repartição

L. F. VERISSIMO*

Paul McCartney - Imagem da Internet
Com quase 70 anos, Paul McCartney tem a cara lisa. Não sei como está a cara do Ringo, o outro beatle vivo, mas, supondo-se que ele também não aparente a idade, e comparando-se a cara dos dois com a dos Rolling Stones, pode-se especular que tenha havido um acordo entre as duas bandas. Em algum momento do final dos anos 60, os Beatles e os Stones teriam se encontrado em segredo para dividir o mundo e decidir o destino de cada um. Caberia aos Beatles fazer as melhores melodias e sofisticar o rock com álbuns temáticos como o Sgt. Pepper’s, aos Stones se manterem fiéis ao backbeat básico e serem a versão bandida dos Beatles. Também teriam escolhido o público que queriam e estabelecido qual seria a longevidade de parte a parte e o que caberia de tragédia e de glória a cada lado. Mas principalmente teriam feito a repartição das rugas. Os Stones ficariam com todas e em troca durariam mais. Os Beatles envelheceriam melhor ou, como no caso do John e do George, nem envelheceriam. De qualquer maneira, nunca teriam rugas. Em compensação, durariam menos.
O dramaturgo inglês Tom Stoppard (foto) (que se parece um pouco com ele) contou que certa vez lhe disseram que Mick Jagger tinha aquelas rugas todas de tanto rir, ao que ele retrucou que nada poderia ser tão engraçado assim. Já as rugas do Keith Richards são claramente as marcas de uma vida vivida aos extremos. Richards provou de tudo, entre secos, molhados e com duas pernas. E sobreviveu para contar: sua autobiografia, chamada apenas Vida, acaba de sair. Num trecho reproduzido na resenha do livro recentemente publicada pela revista New Yorker ele conta que às vezes viajava nas drogas com o John Lennon mas que Lennon não conseguia acompanhá-lo. Depois de tomar e cheirar o que havia, muitas vezes durante dias, ele estava pronto para trabalhar, enquanto o John invariavelmente acabava no banheiro, segundo ele, “abraçando a porcelana”.

Mas a quantidade de rugas na cara de Mick Jagger, Keith Richards e os outros Stones não se explica apenas pela passagem do tempo. Elas acumulam funções, são as rugas deles e as rugas que os Beatles não tiveram. Estava tudo combinado.
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* Escritor. Cronista.
Fonte: ZH online, 29/11/2010
Imagens da Internet

FUTURO DESUMANO

RICHARD WARSON – Entrevista
Imagem da Internet

Ele é o guru de algumas das maiores companhias do planeta. IBM, Coca-Cola, McDonald’s, Nestlé, Samsung e Procter @ Gamble já o contrataram para dar conselhos sobre o que fazer hoje para evitar arrependimentos amanhã. Mas o futurólogo inglês Richard WATONS não vê um futuro promissor, de qualquer maneira. Em seu novo livro, Future Minds (Mentes do Futuro, sem edição no Brasil), esse cientista político alerta para o perigo de caminharmos em direção a uma sociedade onde as pessoas não conseguirão sequer pensar sozinhas.

Você já escreveu sobre o futuro dos arquivos, do dinheiro, das viagens e, agora, das mentes. Como é possível?
Richard Watson: Só dá para planejar cenários olhando para todas essas coisas ao mesmo tempo. Se você trabalha num banco, tende a ler publicações sobre o mercado financeiro ou economia, mas não sobre tecnologia e demografia. As pessoas leem cada vez mais sobre cada vez menos assuntos, mas é onde todos os assuntos se unem que podemos identificar tendências. Por isso, passo 80% do meu tempo acordado lendo.

"Estudo feito há 10 anos mostrou
que 10% dos americanos diziam
não ter amigos para conversar em profundidade
 sobre o que sentem.
Hoje, esse número subiu para 25%."



O que vai acontecer com nossas mentes?
Watson: Há muitos falando sobre os aspectos bons dos celulares e do Google, mas há um outro lado. Passamos os dias andando pela cidade e olhando para uma tela de iPod ou BlackBerry e prestamos menos atenção nas pessoas ao redor. Estamos construindo bolhas onde nunca somos confrontados com ideias divergentes: selecionamos só as informações e os amigos que mais nos agradam. Isso não é bom para o pensamento e para a sociedade.

Estamos ficando mais rasos?
Watson: Não só mais rasos, mas mais estreitos. Os cientistas citam cada vez menos trabalhos e estamos todos olhando para as mesmas fontes. Isso tem de ter algum impacto na originalidade.

Há o perigo de se criar uma sociedade fascista, sem diversidade?
Watson: Podemos estar criando uma geração que não poderá pensar por si própria. Eles têm de ficar online e ver o que o resto das pessoas pensam antes de responderem a uma questão. Sentimos que não precisamos mais aprender porque é muito fácil achar os dados. Mas ter só o lado prático do conhecimento significa não enxergar o contexto em que as informações surgem, o que é preocupante.

Isso é um pouco parecido com as máquinas. Estamos perdendo a humanidade?
Watson: Sim. O digital cria um nível de conectividade, mas destrói outros. Estudo feito há 10 anos mostrou que 10% dos americanos diziam não ter amigos para conversar em profundidade sobre o que sentem. Hoje, esse número subiu para 25%.

Você propõe no livro que se pense mais devagar. Como é possível numa sociedade que pede cada vez mais produtividade?
Watson: Quando dizemos que alguém é devagar, isso é associado à burrice. Concordo que a maioria dos governos e empresas pensam que, se trabalharmos mais devagar, isso terá efeito negativo na eficiência, mas é discutível. Estamos muito ocupados em nossos escritórios fazendo coisas que serão descartadas depois. Quando um funcionário para um pouco para pensar, vê o seu papel dentro dos negócios, identifica possíveis erros e evita que aconteçam. Quando se está indo muito rápido, o máximo que se faz é reagir.

Você parece pessimista sobre o futuro...
Watson: Meu temor é que não tenhamos escolha senão nos tornamos 100% digitais. E que a gente perca a capacidade de pensar profundamente, uma das coisas que nos define como humanos.

ALGUMAS PREVISÕES DO GURU

- Os computadores vão passar a entender as emoções de seus usuários e agir cada vez mais como humanos. Mas as pessoas se tornarão mais parecidas com as máquinas e haverá o desenvolvimento de vício em cibersexo e cibercasamento (entre homens e computadores).

- O excesso de informações fará com que as pessoas comecem a racionar o consumo de dados e haverá dietas digitais e profissionais contratados para peneirar o conteúdo. A confiança nas fontes de dados se tornará um dos grandes problemas da humanidade.

- O movimento de slow thinking (pensamento devagar) irá surgir paralelamente ao movimento slow food, de leitura lenta e de culto às informações em papel. Algumas companhias vão passar a guardar seus documentos estratégicos apenas em papel para evitar ciberataque.

- O vício em internet vai fazer com que os governos criem órgãos específicos para lidar com o problema.

- Num futuro próximo, tempo e espaço se tornarão bens de luxo. Haverá resorts sem comunicação alguma e serão alugadas salas de silêncio para que as pessoas possam parar e pensar um pouco.
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REPORTAGEM POR TIAGO MALI
Fonte: Revista GALILEU impressa, edição nº 231, dezembro 2010, pg.43

Não ao assédio comercial

MARIA INÊS DOLCI*
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É lícito vender, mas obrigar o
consumidor a comprar
é assédio comercial e
um grande espanta-freguês

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O CLIENTE enfrenta fila para pagar um produto de que necessita ou foi induzido a adquirir. Vai gastar dinheiro naquela loja. Pode ser de eletroeletrônicos ou de moda feminina.
Inevitavelmente, perguntam-lhe se não quer aproveitar a promoção e levar um produto que não deseja comprar. Se comprou um sapato, oferecem meias, cintos, outro calçado, um chinelo.
Ou indagam se já tem o cartão da loja. Mesmo respondendo que já tem outros cartões, tem de ouvir uma ladainha sobre os benefícios únicos daquele retângulo de plástico. Ora, é constrangedor ter de reafirmar, de repetir várias vezes, que não se quer algo, mesmo, muito obrigado!
É embaraçoso ver o sorriso amarelo de profissionais, em sua maioria mal remunerados, no comércio ou em bancos, tentando empurrar um produto ou um serviço para cumprir suas cotas de venda.
Em uma farmácia, então, é mais do que desagradável, é irritante, porque muitas vezes quem vai até lá necessita urgentemente de um medicamento. Não é incomum que um consumidor esteja com dor de cabeça, resfriado ou até com problemas mais graves de saúde.
Ainda assim, tem de manter a calma e a boa educação, pois sabe que os vendedores não têm outra opção. Paira sobre eles a ameaça, raramente velada, de demissão ou de marcar passo na carreira se não conseguirem aumentar o valor da compra alheia.
Os precursores dessa política comercial, sem dúvida, foram os bancos. Que sempre dão um jeito de vincular um empréstimo à aquisição de um seguro, ou de um maldito título de capitalização.
Costumavam, também, enviar cartões não solicitados. E hoje colocaram toda a movimentação de uma conta em cartões com crédito.
Ou seja, de uma forma ou de outra, você acaba fazendo o que eles querem. Não bastasse tudo isso, operadoras de TV por assinatura, de telefonia e, de novo, bancos têm exércitos armados com telefones até os dentes para "oferecer" bônus que você nem imaginou. Experimente, contudo, solicitar que a oferta seja feita por e-mail, com as informações sobre alteração de contrato que implicam. Pode esperar sentado, leitor.
Ninguém gosta de ser alvejado por ofertas não solicitadas de produtos. Nem que seja pela dupla de "vendedores" de um restaurante por quilo do shopping. Quem já deu uma volta maior na área de alimentação para fugir deles sabe do que estou falando.

"Fala-se e escreve-se muito
sobre fidelização.
Ou seja, sobre como uma empresa
poderia fisgar corações e
mentes dos consumidores.
Vai aqui uma dica:
não nos aborreçam com
vendas empurradas."
Para complicar ainda mais, há os ambulantes nos semáforos das grandes cidades, que empurram produtos ou penduram pacotes de bala e de chiclete no espelho externo do carro. Alguns deles, mais agressivos, só deixam o motorista prosseguir após oferta insistente do produto ou do serviço -por exemplo, limpeza do para-brisa com líquido suspeito e pano idem.
É lícito, evidentemente, vender. Vendedor é um profissional respeitável como qualquer outro. Isto posto, é incorreto pressionar indevidamente consumidores para que "ajudem" um desses profissionais a cumprir suas cotas.
Fala-se e escreve-se muito sobre fidelização. Ou seja, sobre como uma empresa poderia fisgar corações e mentes dos consumidores. Vai aqui uma dica: não nos aborreçam com vendas empurradas. Poderíamos até, ocasionalmente, comprar algo que não houvéssemos planejado. Mas, nesses casos, as possibilidades de arrependimento são grandes. Isso não fideliza ninguém.
Na verdade, declaro-me pronta para ser fiel a um estabelecimento que simplesmente me venda o produto que procuro, com qualidade comprovada e preço justo, na média do mercado. A uma loja que não cobre mais por compra paga com cartão de crédito. E que me dê a oportunidade de só adquirir, se for o caso, o produto barato e simples de que necessito, sem me assediar com perguntas do tipo "não quer aproveitar para levar este kit de beleza?".
Comprar não precisa se tornar um suplício para o consumidor, embora haja filas, dúvidas e preços nem sempre convidativos. Obrigar a comprar é assédio comercial e um dos melhores espanta-fregueses do mercado.
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* MARIA INÊS DOLCI, 54, advogada formada pela USP com especialização em business, é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da ProTeste Associação de Consumidores. Escreve quinzenalmente, às segundas, nesta coluna.
Fonte: Folha online, 29/11/2010

A Bíblia: deles e nossa

Ivan Lessa*

Imagem da Internet

Depois desse tempo todo, se me perguntarem o que mais admiro nos britânicos, eu embatucaria. Mas não muito. Tenho a impressão, ou pouco mais que isso, que prezo o apreço que eles têm ao inglês, falado e escrito.
Volta e meia, eu dou um faniquito, neste cubículo em que me encerro, contra o raio da “reforma ortográfica” brasileira. E tomem aspas e um “raio” só para não perder o hábito.
No momento, neste mundo em crise em que temos que viver, há um consolo. A Bíblia Sagrada. E vou logo me confessando: sou ateu. Mas amo a língua, o escrever bem. Qualquer língua. Qualquer coisa bem escrita.
O consolo que a Bíblia em inglês oferece não está se manifestando nem nas ruas nem nas reuniões com entidades políticas e bancárias internacionais. É consolo derivado de outra saudável mania britânica e que se estende, na medida do possível, a todos os povos de língua inglesa, valendo americanos e australianos.
E quando se fala em Bíblia por aqui, está se falando da chamada Versão Autorizada. Por extenso, a versão do rei Jaime. E aí já vou abrindo o primeiro parágrafo para indagar: por que é que até um certo monarca, nós o chamamos pelo nome próprio traduzido?
Henrique, Ricardo, Eduardo. De repente, por um desses mistérios – alguma reforma que desconheço? – virou tudo ao original inglês, sem dublagem, digamos. Henry, Richard, Charles e – chi lo sá? – William e não Guilherme.
Googlarei até chegar a alguma conclusão. E volto ao meu lugar na abadia pomposa ou igrejinha simpática e modesta onde eu folheava a KingJamesAuthorised Version of the Bible, para dar seu nome completo e correto.
Comemorações. Datas assinaladas. Memória preservada. Outras das qualidades que eu acrescentaria à minha lista. Sempre depois das belezas ocultas e óbvias do idioma do Bardo Imortal, como gosto de o chamar, por passadismo e ser passadão.
Vejam vocês, já é matéria de editorial de jornal, logo abaixo da mais recente passeata de justo protesto estudantil, o aniversário de sua publicação em 1611 – 2 de maio, para ser preciso, começa a ser comemorado. Quer dizer, seis semanas ou mais de 5 meses antes do quarto centenário do lançamento. Prematuridade britânica? Não creio.
Festinhas para o instrumento – e livro, principalmente a Bíblia, é instrumento – que ajudou a lançar as bases da língua hoje falada aqui e no mundo inteiro. Já houve festa com a presença do duque de Edimburgo (sim, eles trabalham, gente), e na quinta-feira passada, na cidade de Preston, teve início uma leitura constante e total – espécie de “bibliotona”, se o neologismo não for heresia – da versão em pauta.
Até mesmo ateus confirmados, defensores da “inveracidade” total da Bíblia, como o agora popular em mais de um continente Richard Dawkins, participam alegremente das festividades. Pois festividade é ganhar assim e assim ter para a vida inteira o trabalhão iniciado em 1604 e terminado em 1611 pela Igreja Anglicana.
Na verdade, tratava-se da terceira versão em inglês do volume, mas tão cativante era e é essa versão que virou, não sem motivo, autorizada e até hoje adotada. Para termos uma ideia, em quatro séculos foram, no mínimo, 2,5 bilhões de exemplares postos em circulação preservando e honrando a língua inglesa. Mais até talvez do que Paulo Coelho e Chico Buarque de Holanda juntos.
A Versão Autorizada a quem louvo, e quase, quase me ajoelho diante, contribuiu com nada mais nada menos que 257 frases até hoje em uso. Parece até que há um jabuti lá disputando um prêmio e uma discussão em torno de leite derramado.
Não há cidadão britânico ou publicação que não deva algo à iniciativa que ganhou o nome do rei Jaime.
Em português, do Brasil e de Portugal, a versão tida como um marco equivalente é de João Ferreira de Almeida, a primeira tradução do Novo Testamento a partir das línguas originais. Era protestante, o Ferreira de Almeida, que levou dez anos revisando sua versão, só publicada após sua morte em 1693.
Estudiosos encontraram, dizem lá eles, nunca conferi, 1.119 erros de tradução. Com a “reforma ortográfica” como é que ficam as coisas, pergunto, a cabeça baixa e coberta de cinzas? Inclusive, e principalmente, a versão (estão lá em casa os sete volumes de 1821; aceito ofertas) do padre católico português António Pereira de Figueiredo, baseada na Vulgata e que levou 18 anos para ser completada. Fato e facto tornado possível devido ao fim dos trabalhos formais da Inquisição (vade retro).
As comemorações vêm aí? Já vieram e passaram? Com que “acordo ortográfico” devo me informar?
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* Colunista da BBC Brasil

Fonte: BBC Brasil, 29/11/2010

domingo, 28 de novembro de 2010

JIM COLLINS - Entrevista

A ERA DA TREMENDA INCERTEZA

Imagem da Internet

O mais rigoroso analista econômico americano diz que as turbulências vão continuar e que os empresários brasileiros são os mais preparados para sair vitoriosos da crise.
Se você só puder ouvir um único guru de negócios, ouça Jim Collins. Essa é a opinião unânime dos maiores empresários do mundo que lhe pagam 60 000 dólares por uma palestra de 45 minutos. De cada vinte convites que recebe para falar, Collins recusa dezenove. Seu escritório fica em Boulder, no estado americano da Colorado. Já publicou quatro livros. O mais recente, Como as Gigantes Caem, saiu no Brasil pela Campus-Elsevier. (...) Leva até oito anos para escrever um livro. O próximo mostra os grandes líderes empresariais estão enfrentando os tempos atuais “de tremenda, tremenda, tremenda incerteza”.

O capitalismo é sempre sinônimo de risco. O que há de peculiar nos atuais tempos de instabilidade?
Existem várias forças que contribuem para a instabilidade. O mundo está mais complexo e mais interdependente. As empresas não são as únicas forçar globalizantes. Estamos nos globalizando em vários aspectos, nos bons e nos ruins, na cultura e na doença, por exemplo. Temos ainda a marcha contínua da mudança tecnológica na medicina, na eletrônica, na bioengenharia, na computação, criando coisas que nem imaginamos. Não há nada que sugira que esse processo vá parar. Por fim, no tempo da Guerra Fria, vivíamos em um mundo perigoso, com a ameaça nuclear estável. Agora as turbulências são de múltiplas origens.

"É poderosíssim a ideia
de que ninguém pode me impedir
de abrir uma empresa
na minha garagem"

A paralisia diante do risco não explica o inigualável sucesso empresarial dos Estados Unidos, correto?
Correto. Os americanos têm qualidades extraordinárias, a mais notável delas, o arraigado espírito empreendedor. Quando eu lecionava empreendedorismo e pequenos negócios na Universidade Stanford, na Califórnia, sentia que falava coisas que caíam bem na alma dos alunos. Uma explicação para isso é que somos um país de imigrantes, de gente que deixou sua terra natal para começar do nada do outro lado do Atlântico. Minha família veio da Irlanda. A motivação de mudar de país, sem saber exatamente o que se vai encontrar e sem ter nada para recomeçar, é essencialmente empreendedora. Os imigrantes não vinham para começar uma nova empresa, mas para recomeçar toda uma vida.

O Brasil também é um país de imigrantes e, no entanto, não tem esse espírito empreendedor.
Nos Estados Unidos, a imigração somou-se a um outro fator: a facilidade com que se abre um negócio. Isso não é de hoje. Não é preciso pedir permissão para ninguém para abrir uma empresa. Ninguém poderá impedir você de acordar amanhã de manhã e resolver pegar metade de uma peça de sua casa e começar uma empresa. Em Stanford, lembro-me que Jim Gentes, fundador da Giro Sport Design, me convidou para visitar uma empresa. Peguei o endereço e fui. Era a casa dele. No quarto ficava o estoque. Na garagem, havia uma pequena linha de montagem. Ele estava fabricando novos capacetes para ciclistas e muitas lojas de bicicleta já estavam vendendo o produto. Hoje, metade do mundo usa os capacetes criados por Gentes. É poderosíssima a ideia de que ninguém pode me impedir de abrir uma empresa na minha garagem.

"O líder canaliza tudo
para a causa,
a empresa,
o país."

Se o Brasil quisesse reproduzir esse espírito empreendedor, o que deveria fazer?
Em primeiro lugar, é preciso eliminar todo obstáculo para quem quiser começar uma empresa amanhã de manhã. Não pode haver papelada, burocracia, licença, coisas que atrapalham. Claro que, mesmo nos Estados Unidos, um pequeno empresário, se tiver empregados, terá de pagar imposto sobre a folha de pagamento, entre outras obrigações, mas não terá de pedir permissão a ninguém para começar. A segunda providência é criar mecanismos que sistematizem o processo de empreendedorismo: escolas de administração, capital de risco, investidores, fundos de pesquisa. O empreendedorismo não é uma questão de personalidade. É um processo sistemático e replicável, que pode ser ensinado a qualquer pessoa que tenha disciplina. Não é coisa exclusiva de visionários ou malucos aventureiros. Empreendedorismo se ensina. Em terceiro lugar, é necessário valorizar elementos de uma cultura em que a falência honesta seja respeitada. Nos Estados Unidos, se você agir corretamente, com ética e decência não será criticado. Será elogiado por ter tentado caminhar com as próprias pernas. Celebrar a falência honesta é fundamental. Só não sei como se instiga isso numa sociedade.

(...)

Como identificar um líder?
O líder canaliza tudo para a causa, a empresa, o país. Para salvar a Xerox, Anne Mulcahy demitiu e fechou divisões que ela mesma criara. São decisões duríssimas. Como diz Darwin Smith, artífice do crescimento de Kimberly-Clark, se você tem câncer no braço, tenha coragem de cortar o braço fora.

(...)
"Fazer o iPad é como pintar
um quadro.
 É uma criação."


Quais são os maiores mitos sobre os empresários?
O primeiro mito é que são motivados principalmente pelo dinheiro. Gordon Moore e Robert Noyce, fundadores da Intel, não viviam calculando como maximizar o valor das ações. Viviam calculando como duplicar o número de componentes num chip semicondutor e produzi-lo a um custo razoável, e assim revolucionaram o mundo. Os melhores líderes empresariais se movem quase do mesmo modo que os artistas. Eles querem criar, construir algo verdadeiramente excepcional, que tenha impacto no mundo. Steve Jobs, da Apple, é um exemplo. Fazer o iPad é como pintar um quadro. É uma criação. O segundo mito é que os melhores empresários americanos são caubóis indisciplinados, franco-atiradores, que fazem apostas pesadas sem maiores reflexões, e que nossos melhores empreendedores são malucos criativos. Na verdade, eles são construtores. Disciplinados e sistemáticos. Eles canalizam a motivação inovadora e criativa na construção de uma empresa, o que multiplica seu impacto.

Os malucos criativos não vão longe?
A criatividade serva para começar, mas, se o maluco criativo não tiver um lado de construtor, de organizador, ele ficará no meio do caminho. Sam Walton, fundador do Walmart, começou com uma loja de esquina. Após sete anos, abriu uma segunda loja. Depois, mais sete. Em 25 anos, tinha centenas de lojas. Era disciplinado e sistemático. Sam Walton dizia que tinha personalidade de um promotor de vendas e de um criador, mas a alma de um operador. A habilidade de operar, de construir, de organizar um sistema é que o levou tão longe. Não se fala muito disso porque é chato, requer disciplina, paciência, esforço, mas essa é a verdadeira história do sucesso americano.

Na sua opinião, qual a melhor empresa da história do capitalismo?
Procter & Gamble ou Johnson & Johnson. Ambas têm um histórico excepcional de crescimento, criação de uma cultura própria, de evolução, e tudo durante longo tempo. A Proctor & Gamble foi fundada em 1837 e está hoje, mais de um século e meio depois, no auge. É formidável.

As empresas longevas não são um contrassenso à luz do conceito da “destruição criativa”?
É inevitável que, com o tempo, a maioria das empresas acabe falindo, mas não é necessário que isso aconteça. Pelo menos num período de 100 a 200 anos. Depois disso, não sei dizer. Nesse período, uma empresa deve infligir a destruição criativa sobre si mesma, renovando-se. E evitar que a destruição criativa seja infligida sobre ela. Mas, de um jeito ou de outro, o capitalismo avança.
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POR ANDRÉ PETRY
Reportagem completa na : Revista VEJA impressa - Páginas Amarelas, Ed.2193, nº48, 1º de dezembro de 2010.

Gratidão cósmica

MARCELO GLEISER*
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Devemos agradecer à Terra,
planeta único e vivo,
por nos permitir existir,
apesar dos nossos abusos

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ESSA SEMANA, É celebrado o Dia de Ação de Graças aqui nos EUA.
Historicamente, ele celebra a gratidão dos imigrantes ingleses que, se não fossem os nativos de Massachusetts, teriam morrido de fome. Na prática, comemora-se a colheita de fim de verão com muita comida, inclusive peru ao forno (consumido por 45 milhões de pessoas na data).
Mas, aqui na coluna, gostaria de dar graças mais globais. Começando com o Universo.
São umas 200 bilhões de galáxias, com umas 200 bilhões de estrelas cada. Boa fração tem planetas girando à sua volta, muitos deles com luas. Ao todo, são trilhões de mundos, cada um com sua história.
O que existe além do espaço? O que ocorreu antes do Big Bang? As medidas atuais (lembre-se que conhecemos apenas o que podemos medir; o resto pode ser divertido de comentar em conversas, mas é apenas especulação) indicam que o espaço é plano. Ou seja: continua para sempre, em todas as direções.

"Quando olhamos para os céus,
olhamos para o passado.
Quanto mais distante no espaço,
mais para trás no tempo.

O cosmo é uma máquina do tempo.
 Quem disse que não existe
mágica em ciência?"



Temos certeza disso? Não. Tudo o que podemos dizer é que a porção do espaço que conseguimos medir, delimitada pela distância viajada pela luz desde o Big Bang, há 13,7 bilhões de anos, tem geometria plana ou muito próxima disso.
Imagine uma praia e o horizonte à distância. Sabemos que o mar não termina lá, apenas o que podemos ver dele. O mesmo com o espaço.
Sabemos que as leis da física e da química valem por todo o espaço.
Podemos dizer a composição de uma estrela sem irmos até lá. Podemos explicar como as primeiras galáxias nasceram há bilhões de anos. Quando olhamos para os céus, olhamos para o passado. Quanto mais distante no espaço, mais para trás no tempo. O cosmo é uma máquina do tempo. Quem disse que não existe mágica em ciência?
E o tal "começo"? Não sabemos, mas conhecemos a história cósmica até um trilionésimo de segundo após o "Bang". Nada mau para apenas 400 anos de ciência.
Sabemos também que não faz sentido perguntar o que ocorreu "antes" do Big Bang. Quem era você antes de nascer? Não existir significa não existir no tempo. Santo Agostinho já dizia, uns 16 séculos atrás: o tempo e o espaço surgiram com a criação. Ah, se as coisas fossem assim tão simples...
Hoje, alguns especulam que nosso cosmo é parte de uma entidade muito maior, o multiverso, que representa todas (ou quase?) possibilidades cósmicas. Em alguns, as leis da física podem ser diferentes e a vida como a conhecemos, seria impossível. Portanto, agradeça ao Universo, um dos poucos com propriedades certas para gerar estrelas, planetas e, em alguns deles, vida.
Mas vá com calma! Ao contrário do que tantos afirmam, o Universo não dá a mínima bola para a vida. Basta olhar para nossos vizinhos, planetas mortos e desolados.
Tire nossa atmosfera, nossa camada de ozônio e campo magnético, e a Terra se transformaria num deserto sem vida. (Ao menos vida complexa. Talvez algumas bactérias pudessem existir ainda.) Portanto, não é tanto ao Universo que devemos agradecer, mas à Terra, nosso planeta vivo, único. Devemos todos, coletivamente, dar graças ao nosso mundo: por nos permitir existir e pela sua tolerância, apesar dos nossos abusos. Poucas mães seriam assim tão pacientes.
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*MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"
Fonte: Folha online, 28/11/2010

Videogames e violência

Pe. John Flynn, LC

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Opiniões se dividem e buscam soluções

O Supremo Tribunal dos Estados Unidos ouviu, há pouco tempo, argumentos para decidir se deve ou não proibir a venda ou locação de videogames violentos a menores de idade.
Segundo a informação da imprensa, a reação dos juízes foi contraditória, com opiniões que não se adequavam à divisão normal que costuma haver entre eles na maioria das questões legais.
O caso tem a ver com uma lei da Califórnia, de 2005, que proíbe a venda de videogames excessivamente violentos a menores de idade. Foi assinada, como alguns observavam ironicamente, por um antigo ator, conhecido por seus filmes violentos, o governador Arnold Schwarzenegger. Após ser invalidada nos tribunais inferiores, a batalha pela lei chegou agora ao Supremo Tribunal.
As questões em litígio vão desde por que só os videogames deveriam receber um tratamento especial, e não também os quadrinhos e a música rap, até se poderiam inclusive ser considerados uma forma de arte, informou o Wall Street Journal no dia 3 de novembro.
“Neste país não temos a tradição de dizer às crianças que devem ver as pessoas batendo na cabeça dos colegas com um pedaço de pau enquanto estes suplicam piedade, pessoas que não têm dó e que decapitam, que atiram nas pernas das pessoas”, afirmou o juiz presidente John Roberts, segundo a reportagem de 2 de novembro da Associated Press.
Pelo contrário, o juiz Antonin Scalia afirmou: “Preocupa-me a Primeira Emenda, que diz que o Congresso não deveria criar lei alguma que limitasse a liberdade de expressão”. E acrescentou: “Nunca se entendeu que a liberdade de expressão não inclui representações da violência”.
Segundo o texto da Associated Press, os tribunais de outros seis Estados anularam proibições similares.

Liberdade de expressão

“Os videogames, inclusive os violentos, permitem que os jogadores tenham liberdade de expressão, como os instrumentos permitem que os músicos tenham liberdade de expressão”, escreveu Daniel Greenberg, roteirista e desenhista de videogames, em um artigo de opinião no Washington Post, em 31 de outubro.
“Ninguém no governo está qualificado para decidir que jogos não permitem a liberdade de expressão, ainda que a liberdade de expressão seja de um menino de 15 anos”, afirmou. Também argumentou que as autoridades da Califórnia não tinham conseguido apresentar evidências de que os videogames causam danos psicológicos aos menores.
Após a apresentação de argumentos ao tribunal, um redator do PC World, JR Raphael, também condenou a lei em seu site, em um artigo sem data.
Deixando de lado assuntos de princípios, apontou os problemas práticos da legislação. O texto da lei define um videogame violento como aquele “no qual o leque de opções disponíveis a um jogador inclui assassinar, mutilar, desmembrar ou abusar sexualmente da imagem de um ser humano”, de forma “declaradamente ofensiva”, apela aos “interesses desviados mórbidos” de uma pessoa e carece de “verdadeiro valor literário, artístico, político ou científico”.
“Quem vai declarar sobre que videogames são 'declaradamente ofensivos' e quais não são?”, questionou. Também citou uma pergunta do juiz Antonin Scalia: “O que é um videogame violento 'desviado', em oposição a um videogame violento 'normal'?”.
Gregory K. Laughlin, diretor da biblioteca de Direito da Faculdade Cumberland de Direito da Universidade Samford (Alabama), mostrou-se a favor da lei, em um texto divulgado no dia 2 de novembro, no site da revista First Things.
Ele admitiu que os pesquisadores se mostraram divididos sobre a existência de um nexo entre os videogames e os comportamentos violentos. Também reconheceu que a questão é a liberdade de expressão. Não obstante, afirmou que, no passado, o Supremo Tribunal sustentou que haveria restrições para os menores quanto ao tema da liberdade de expressão.
Há mais de 40 anos, indicou Laughlin, o Supremo Tribunal manteve vigente uma lei de Nova York que restringia o acesso dos menores às revistas pornográficas. Em sua sentença, o tribunal explicou que o Estado estava justificado na hora de agir, não com base em uma certeza científica sobre o dano causado, mas porque “os pais têm um interesse no desenvolvimento ético e moral dos seus filhos e têm o direito de contar com a ajuda do Estado ao educar seus filhos para que sejam adultos éticos e morais”.
Laughlin fez referência a outras sentenças e concluiu citando uma opinião que se remonta a mais de 60 anos, do juiz Robert Jackson, quem dizia: “Existe o perigo de que, se o Tribunal não moderar sua lógica doutrinária com um pouco de sabedoria prática, pode converter a Lei de Direitos constitucionais em um pacto suicida”.

Pesquisas

No começo deste ano, aconteceu um debate similar na Austrália, quando o departamento do Fiscal Geral federal recebeu propostas sobre a possibilidade de introduzir a categoria para maiores de 18 anos nos videogames.
Ainda não se anunciou nenhuma decisão, mas em maio o governo publicou um informe sobre o material recebido do público e de organizações. Houve 34 comunicações da comunidade, da Igreja e de grupos da indústria. Destes, 18 apoiavam a introdução da classificação para maiores de 18 anos, enquanto 16 se opunham à sua introdução.
Os grupos da indústria do entretenimento estavam a favor de uma categoria para adultos, que lhes permitiria vender jogos que atualmente não são permitidos na Austrália. Em suas comunicações, sustentaram que existe uma falta de evidência científica que conclua que os meios violentos causam ou desencadeiam comportamentos violentos. Também afirmaram que não há provas de que a violência dos videogames seja mais prejudicial que a violência dos filmes ou de outros meios.
Algumas organizações cristãs e familiares se opuseram à criação da categoria de adultos nos videogames. Em sua comunicação, o Australian Christian Lobby afirmou que já se estendeu na comunidade a preocupação pela violência na mídia e é maior quando se fala de videogames.
Manter uma proibição aos videogames não adequados para menores é – afirmaram – uma postura “baseada no bom senso e na pesquisa apoiada na premissa de que a natureza interativa dos jogos de computador causa que seu conteúdo tenha um maior impacto nos jogadores que os efeitos de representações de cinema parecidas de condutas violentas ou sexuais nos espectadores de filmes”.
O Australian Council on Children and the Media observou que, com materiais portáteis qualificados para maiores de 18 anos, como DVDs e jogos, existe um risco muito maior de que não se proteja sua exposição às crianças. Isso contrasta com os filmes de cinema, dos quais é mais fácil proteger as crianças.
Além disso, afirmaram que, ainda que alguns pais possam estar muito bem informados sobre os riscos e estar atentos para evitar a exposição em seus próprios lares, nem todos estão.

Não é o ideal

No entanto, a Igreja Católica adotou uma postura diferente neste tema. A Conferência Episcopal Australiana emitiu um comunicado estabelecendo que sua opção preferida seria que o material para maiores de 18 anos não estivesse disponível na Austrália.
Mas, dado que já está presente, apesar de ler ilegal, seria preferível introduzir a classificação para maiores de 18 anos nesses jogos, de forma que se possa restringir o acesso a este material por parte de menores.
A comunicação deixou claro que a Conferência Episcopal Australiana não aprova tais videogames. “Em um mundo ideal, o tipo de material que está incluído em filmes e jogos de computador para maiores de 18 anos nunca deveria ser visto em uma democracia civilizada”, comentaram os bispos.
Como este não é um mundo ideal, precisamos resolver a situação da melhor maneira possível. Proibir não é uma opção, pois, de fato, a conferência episcopal afirmou que muito desse material está disponível por meio da internet ou de cópias.
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Fonte: ZENIT.org 28/11/2010

Charles Baudelaire: Os olhos dos pobres

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Nascido em Paris em 9 de abril de 1821, Baudelaire (foto) foi um dos maiores poetas franceses de todos os tempos. Alguns o consideram um antecessor do parnasianismo, ou um romântico exacerbado. Pioneiro da linguagem moderna, impôs à realidade uma submissão lírica. Embora muito criticado, tinha entre seus admiradores homens como Victor Hugo, Gustave Flaubert, Arthur Rimbaud e Paul Verlaine.
Tanto As Flores do Mal como Pequenos Poemas em Prosa (póstumos, 1869), do qual extraímos o fragmento desta edição, introduziram elementos novos na linguagem poética, fundindo opostos existenciais como o sublime e o grotesco.
Baudelaire foi também um exímio tradutor da obra do poeta e contista norte-americano Edgard Allan Poe
Em sua buliçosa vida, registra-se também a participação na Revolução de 1848, na França. À época, ocorreram revoluções democráticas e populares em toda a Europa Central e Oriental. A Primavera dos Povos, como ficou conhecido esse período revolucionário, decorreu da existência de regimes autocráticos, de crises econômicas, de falta de representação política das classes médias e da dominação imperial.
Foram revoluções de caráter liberal, democrático e nacionalista, iniciadas por membros da burguesia e da nobreza que exigiam governos constitucionais. Contaram com a participação em massa do nascente proletariado e dos camponeses, que faziam seu batismo de fogo nas trincheiras da luta de classes. A Primavera dos Povos foi um importante elo no processo de acumulação de forças que resultaria anos depois na Comuna de Paris (1871).
Charles Baudelaire influenciou direta e indiretamente as gerações posteriores de poetas, formadas no início do século 20 e marcou profundamente toda a moderna poesia ocidental.
Os Pequenos Poemas em Prosa, também conhecidos como Spleen de Paris, são 51 poemas escritos em prosa poética. Foram criados entre 1855 e 1864. Quarenta deles foram publicados em diferentes Diários de seu tempo; os demais tiveram publicação póstuma, entre 1867 e 1869.
O título Pequenos Poemas em Prosa com freqüência vai seguido do subtítulo Spleen de Paris (que se assemelha a títulos de duas partes de As Flores do Mal: Spleen e Ideal e Quadros parisinos. Efetivamente, em vida, Baudelaire mencionou esta expressão para designar sua recopilação que completava à medida que se inspirava e com esta podia realizar publicações. O jornal Le Figaro publicou quatro partes pertencentes aos Pequenos Poemas em Prosa sob o título Spleen de Paris. Isto explica a estreita associação dos dois títulos.
Os olhos dos pobres é ilustrativo de como Baudelaire lidava com os contrastes, abordando com perfeição o recorrente tema do amor e da compreensão entre os seres humanos.


Os olhos dos pobres

De Le Spleen de Paris (Os Pequenos Poemas em Prosa)
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Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será mais fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois acho que você é o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.

Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou.

De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança.

Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade.

Os olhos do pai diziam: "Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes." Os olhos do menino: "Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós." Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda.

Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: "Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?"

Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!
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Fonte: http://www.vermelho.org.br 28/11/2010

Papai Disney, um leal americano

Filha do criador de Fantasia, que sai em Blu-Ray,
 fala dos 'talentos' do pai
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Diane Disney Miller é a filha mais velha do lendário Walt Disney. Aos 77 anos (nasceu em 1933), ela se mantém ativa à frente dos negócios da família. Seu marido, Ronald Miller, era CEO da Disney Company, mas foi desligado em 1984, quando seu primo Roy E. Disney apoiou Michael Eisner e Frank Wells na briga pelo controle acionário do conglomerado.

Divulgação
Cena de "Fantasia"

Diane e o marido se tornaram vinicultores no Nappa Valley, mas ela nunca desistiu do sonho que acalentava com a irmã mais nova, Sharon Mae, que morreu em 1993. As duas queriam inaugurar o The Walt Disney Family Museum, dedicado à preservação da vida e do legado do criador do Mickey e do Pato Donald.
O museu foi inaugurado em outubro de 2009. A entrevista, por telefone, foi feita a propósito do lançamento no Brasil das edições comemorativas, em Blu-Ray, do clássico Fantasia. O museu, localizado em Presidio, na Califórnia, forneceu muito material para os extras, incluindo desenhos originais da produção de 1940.

Depois da consolidação da TV, seu pai virou sinônimo de diversão familiar, mas em 1939/40, quando fez Branca de Neve e Fantasia, era um artista de vanguarda. Como você o avalia?
Quando Branca de Neve estreou eu tinha apenas 6 anos. Minha irmã havia sido adotada há três. Não tínhamos noção de quem era nosso pai, mas foi um encantamento participar das festas de lançamento de Branca de Neve. Walt revolucionou a animação e ganhou muito dinheiro com o filme. Muita gente o achava aterrador, contraindicado para crianças, mas isso só aumentou sua aura. Ele era, realmente, um artista adiante de sua época. O que ganhou com Branca de Neve, e muito mais, empatou em Fantasia e o filme foi um fracasso. Só depois virou obra de culto e hoje não há quem não o considere um clássico.

Seu pai é personagem polêmico. Circulam muitas histórias, até desabonadoras, sobre ele. Qual é sua lembrança de Walt Disney?
Ele foi um pai maravilhoso, um marido dedicado, um americano leal. Não era perfeito, porque a matéria humana não credencia ninguém à perfeição, mas acho que viveu com honestidade e dignidade. Era afetuoso com todos. Nenhum pai teve tantos sobrinhos. Todos o chamavam de "Uncle" (tio) Walt e ele adorava. Também adorava ousar, abrir caminhos no seu meio de expressão. Nunca ouvi dizer que ele emperrasse a expressão de quem quer que seja. Pelo contrário, sempre ouvi histórias sobre como ele era generoso ao estimular a criatividade dos colaboradores.

Qual é seu favorito da Disney?
São tantos. Mas, a par das animações, tenho um carinho especial por Mary Poppins. Julie Andrews é magnífica.
Numa recente entrevista ao Estado, ela disse que Mary Poppins mora em seu coração e Disney foi um grande incentivador.
Abençoada Julie. Ela é uma lady e assim será sempre. Mas o encanto daquele filme é perene. Não é ousado como as grandes animações, como Fantasia, ao ilustrar a música clássica, mas tem personagens e situações tão humanos que nunca deixa de me encantar.

E o museu dedicado a seu pai?
É um sonho de muitos anos. Antes disso, havíamos inaugurado o Walt Disney Concert Hall, com design de Frank Gehry, em Downtown Los Angeles. O museu em Presidio tem objetos pessoais e documenta o processo de criação de meu pai. Além de desenhos originais e objetos de cena, inclui documentos e testemunhos. Walt gravou muitos depoimentos. Editamos CDs e DVDs só com a voz ou o testemunho audiovisual dele. São muito importantes para a preservação de seu legado e me emociona colocar um desses DVDs e reencontrar meu pai.
__________________________
REPORTAGEM POR Luiz Carlos Merten - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão online, 28/11/2010

Poema de domingo

Poema em linha reta


Fernando Pessoa*
(Álvaro de Campos)


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
__________________________________
Uma visão breve sobre a vida e a obra do maior poeta da língua portuguesa:
- 1888: Nasce Fernando Antônio Nogueira Pessoa, em Lisboa.
- 1893: Perde o pai.
- 1895: A mãe casa-se com o comandante João Miguel Rosa. Partem para Durban, África do Sul.
- 1904: Recebe o Prêmio Queen Memorial Victoria, pelo ensaio apresentado no exame de admissão à Universidade do Cabo da Boa Esperança.
- 1905: Regressa sozinho a Lisboa.
- 1912: Estréia na Revista Águia.
- 1915: Funda, com alguns amigos, a revista Orpheu.
- 1918/1921: Publicação dos English Poems.
- 1925: Morre a mãe do poeta.
- 1934: Publica Mensagem.
- 1935: Morre de complicações hepáticas em Lisboa.
Os versos acima, escritos com o heterônimo de Álvaro de Campos, foram extraídos do livro "Fernando Pessoa - Obra Poética", Cia. José Aguilar Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 418.

Pássaros e jardins

Rubem Alves*
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Gosto do apartamento em que vivo. Décimo primeiro andar. A vista é muito bonita, vê ao longe... Quando o vento é forte ele assobia de forma sinistra e musical. Quase lhe pus o nome de “Morada dos Ventos Uivantes”.
Já morei num outro: oitavo andar. Fiz um micro jardim na varanda.
Assentado na sala, enquanto ouvia música, via o jardim, a cidade, a chuva e sentia o prazer do vento na minha pele. Mas, tinha uma tristeza. Os passarinhos não me visitavam. Tentei. Pus comida para eles. Inutilmente. Guimarães Rosa diz que há dois tipos de altura: altura de urubu ir, e altura de urubu não ir. Quem sabe só urubu tinha coragem de subir até a altura do oitavo andar...
O Carlos Rodrigues Brandão me deu um livro, faz tempo, que ainda não li. O título é: A linguagem dos pássaros. Nunca levei o dito a sério porque era minha firme convicção que passarinho não tem linguagem. Pois mudei de idéia. Eles não só falam como também lêem os jornais.

"Peguei as peninhas do beija-flor, azuis,
amarrei-as com um fio e
as pendurei no bambu do jardim,
como mensagem de paz,"

Tive prova disto, prova que não se pode contestar. Eu me queixei, numa de minhas crônicas, da ausência dos pássaros no meu apartamento, a despeito do jardim na varanda. Aventei a hipótese de que é porque eu morava no oitavo andar, talvez fosse altura demais. Meu apartamento estava em altura de só urubu ir. Lamentei-me disso numa crônica. Na segunda feira, ao chegar em casa do trabalho no final do dia, lá estava, na sala, atendendo à minha queixa, um beija-flor empoleirado no lustre.
O bichinho se assustou. Como se sabe, os homens são os seres que perderam a confiança dos pássaros. Ele se pôs a voar de um lado para outro, desorientado, sem saber onde estava a saída. Tentei pegá-lo. Inutilmente. Aí ele se refugiou no banheiro. Fechei a porta, subi numa cadeira e finalmente o segurei com palavras tranquilizantes. Ele não acreditou e até deixou várias penas na minha mão. Desci da cadeira, fui até a varanda e o soltei. Ele partiu como uma flecha.
Ah! Como me senti feliz! Pois, no dia seguinte, a coisa se repetiu: não com o beija-flor, mas com uma curruira. Ela não entrou no apartamento mas ficou saltitando no jardim. Peguei as peninhas do beija-flor, azuis, amarrei-as com um fio e as pendurei no bambu do jardim, como mensagem de paz. Quero que os pássaros confiem em mim. Vocês não concordam comigo que o fato de um beija-flor e uma curruira terem me visitado no me u apartamento é prova cabal de que lêem jornal? Por que é que foram aparecer justo no dia seguinte à minha queixa? E fiquei feliz por saber que eles lêem o que eu escrevo...
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio do Povo online, 28/11/2010