José Álvaro Moisés não afasta a possibilidade
de uma crise institucional, "num Congresso muito mais fragmentado e
com o
PMDB, setor importante da base
aliada, muito dividido"
A reeleição apertada de Dilma Rousseff contra seu opositor Aécio
Neves foi o fechamento de um ciclo eleitoral cheio de reviravoltas e
surpresas. Assumindo em meio a um quadro econômico difícil e com um
Congresso mais fragmentado e mais hostil à situação, a presidente será
obrigada a dialogar com a sociedade, o mercado e as forças políticas de
um modo que contrastaria com seu primeiro mandato.
O Valor reuniu quatro especialistas em política
brasileira para discutir os desafios que esperam o país nos próximos
quatro anos e o legado deixado por um período eleitoral intenso e
agressivo. A socióloga Fátima Pacheco Jordão, diretora da Fato Pesquisa;
o cientista político Alberto Carlos Almeida, do Instituto Análise; o
filósofo Renato Janine Ribeiro e o cientista político José Álvaro
Moisés, ambos da Universidade de São Paulo, foram unânimes em apontar o
descompasso entre o sistema político e as demandas da sociedade. Para
eles, nem a situação nem as oposições conseguem responder aos anseios da
população.
Em suas primeiras manifestações após a vitória, Dilma prometeu
avançar no projeto de reforma política. Para os especialistas, a
conjuntura econômica e os interesses dos partidos instalados tornam a
reforma difícil. Além disso, os próximos quatro anos serão decisivos
para os principais partidos, que terão de encontrar lideranças renovadas
para participar da próxima eleição presidencial, em 2018.
Leia, a seguir, trechos da mesa-redonda realizada na redação do Valor,
em São Paulo, que contou com participações dos jornalistas Maria
Cristina Fernandes, Cristian Klein, Robinson Borges e Bruno Yutaka
Saito:
Valor: Quais são os maiores desafios para o segundo mandato de Dilma Rousseff, tendo vencido com margem tão apertada?
José Álvaro Moisés: O próximo governo terá que
enfrentar uma crise institucional, a dar crédito ao que a mídia tem dito
sobre a delação do ex-diretor da Petrobras [Paulo Roberto Costa], que
pode envolver cerca de 50 figuras importantes do sistema político. Não é
uma situação muito simples para começar um novo governo. Como vai se
formar a coalizão em um Congresso muito mais fragmentado, e com o PMDB,
setor importante da base aliada, muito dividido? De certo modo, a
divisão do PMDB reflete na prática a divisão do eleitorado. A expressão
de que o país está partido ao meio é muito forte, mas a divisão foi
muito além do que se podia imaginar. O PT perdeu parte da bancada: 18
deputados. Não é pouco. Não temos um roteiro de como vai ser o próximo
governo. Qual vai ser a natureza da coalizão? Quais são as primeiras
metas? Como vai ser feita a reforma política?
Renato Janine Ribeiro: A parte mais vocal da
população, com mais acesso à mídia, mais condições de se projetar, votou
majoritariamente na oposição. Vai ser difícil governar. Tenho um certo
pessimismo, porque, embora considere Dilma uma pessoa de grande lisura
pessoal e grande preocupação com as causas sociais, me preocupo com o
pouco diálogo que ela sempre manteve. Ela vai dialogar com o
empresariado, que se queixa tanto de não ter acesso à Presidência? Vai
dialogar com os políticos? Vai dialogar com a sociedade?
Ribeiro lembra que a parte "mais vocal" da
população, "com mais acesso à mídia", votou majoritariamente na
oposição. Então, "vai ser difícil governar"
Fátima Pacheco Jordão: Foi uma eleição muito longa.
Começou em junho de 2013 e teve várias etapas. Foi sempre um desafio
entender o que estava acontecendo. Os movimentos de junho [de 2013]
arrebataram o Brasil, mas a sociedade só entendeu quando conseguiu
articular um slogan, a ideia de "saúde padrão Fifa", que desaguou nos
protestos em relação à Copa do Mundo. É uma mudança importante no olhar
da sociedade. Começou o protagonismo de uma nova face da cidadania, o
contribuinte. Muito lentamente, essa tendência vem vindo lá de longe,
desde a crise do Orçamento, no início dos anos 1990, quando se começou a
discutir para onde vai o dinheiro público. O brasileiro foi educado com
um padrão de consumo em que, quando um produto não presta, ele deve ser
trocado, e são produtos que têm preços e impostos. As manifestações
disseram: "Queremos melhores serviços, um governo mais eficiente". Não
sei se os partidos entenderam. O que sintetizou esse movimento foi a
percepção de que algum tipo de mudança era desejado por 70% do
eleitorado, e mesmo assim não foi nem uma eleição de mudança, nem de
continuidade. Ficou no meio do caminho, e hoje provavelmente o eleitor
está um pouco perplexo: "Muito bem, mudou, mas não mudou tanto". O
discurso de vitória da presidente foi um discurso de mudança, apesar de
ela ser continuidade. Essa ambiguidade vai ser resolvida pelas crises
que vierem, pela maneira como os políticos, em particular a oposição, se
posicionarem.
Moisés: Concordo que haja ambiguidade. Isso aparece
nos temas que cruzaram os últimos debates e a primeira manifestação da
presidente. O subtexto do discurso é: depois de uma disputa tão
agressiva, coisa que não é nada boa para a democracia, como criar
condições de diálogo entre as forças políticas? O contexto de crise
econômica vai exigir cooperação. E ela introduziu de modo
surpreendentemente contundente o tema da reforma política, que apareceu
marginalmente na campanha. Embora se falasse em "nova política" na
campanha de Marina Silva, embora Aécio Neves brandisse a ideia de
eliminar o instituto da reeleição, não apareceu com claridade o que
seria a reforma política. No discurso de Dilma, é como se essa reforma
fosse a primeira grande bandeira, e mesmo assim não estava bem definida.
Também concordo que a campanha começou com as manifestações do ano
passado. Acho que parte das oscilações que ocorreram na campanha tem a
ver com o mal-estar com o funcionamento da democracia. Um mal-estar que
aparece nas pesquisas que tenho conduzido há algum tempo. Não é que as
pessoas não sejam favoráveis ao regime democrático, mas na percepção do
funcionamento do regime há déficits importantes. O Congresso e os
partidos têm mais de 80% de desconfiança. Muito disso decorre do fator
corrupção. Quando as pessoas percebem que a corrupção é sistêmica, a
desconfiança cresce.
Ribeiro: Muita gente está falando em mudança, mas o
que se entende por mudança é muito diferente. O Brasil hoje é um país
que se sente constantemente incompleto. Alguns acham que estamos no
caminho certo; outros, no caminho errado. Mas ninguém está satisfeito,
por exemplo, com os serviços públicos. A pessoa pode querer mudança sob
um partido que considera bem-sucedido na inclusão social. Ou pode achar
que a economia não está bem, que a corrupção não foi debelada etc. Houve
um racha de interpretações do mundo. Não é questão de ter os fatos e
divergir na interpretação. Os fatos que são narrados, de um lado e do
outro, são diferentes. Temos isso na palavra "corrupção", na palavra
"esquerda". E "ética". ". Ética poderia ter o sentido, que considero
primordial, de acabar com a miséria. Isso é muito evidente em
observadores estrangeiros, como Darwin, que visitou o Brasil e declarou:
"Nunca mais passo em um lugar que tem escravidão". Até jornalistas
contemporâneos estrangeiros, independentemente da visão política que
tenham, dizendo que a nossa chaga maior é a miséria. No entanto, a
tendência mais forte, recentemente, é colar a palavra ética à corrupção.
Essas duas ideias de ética não são necessariamente contraditórias. Para
tornar o país ético é preciso acabar com a miséria e também com a
corrupção.
Alberto Carlos Almeida: A campanha explicitou um
grande problema do nosso sistema político: a escolha dos candidatos.
Várias fragilidades de Dilma e Aécio não existiriam se o processo de
seleção passasse por primárias efetivamente abertas, sem que o peso de
qualquer máquina pública interferisse na escolha. [Barack] Obama é o
exemplo clássico. Foi escolhido contra a máquina, que estava a favor de
Hillary [Clinton]. Hoje, Obama não tem o controle sobre quem será o
candidato democrata para a sua sucessão. As primárias vão escolher o
melhor.
“O
discurso de vitória da presidente foi de mudança, apesar de ela ser
continuidade”.
É uma ambiguidade a ser resolvida, adverte Fátima Jordão
Valor: Essa foi a sexta eleição polarizada entre
PT e PSDB, em um sistema partidário fragmentado, que colocou 21
partidos no Congresso. Por que essa polarização não consegue nortear o
Congresso?
Almeida: O PT perdeu deputados. O PSDB aumentou em
relação ao fim da legislatura, mas não em relação ao que elegeu em 2010.
Quem ficou mais forte foi o PMDB. É quase inevitável o fim do DEM. Pode
até ser que muitos do DEM migrem para o PSDB, que teria chances de se
tornar o maior partido da Câmara. Dilma vai ter que negociar, coisa que
não fez no primeiro mandato. Vai ter que chamar os líderes partidários,
perguntar o que querem. Fazer reuniões periódicas. Fazer o que todo
político faz. Tem uma variável nova, que foi o PT conquistar mais espaço
nos governos estaduais. Foi a primeira vez que o PT elegeu um
governador no Sudeste [Minas Gerais]. Dos três Estados mais importantes
do Nordeste, vai governar dois [Bahia e Ceará]. O PT, em 2010, elegeu
governadores que abarcavam 15% da população. Hoje são 24%. O PSDB, em
2010, abarcava 47% da população. Hoje, 35%. A distância entre PSDB e PT
caiu de 32 pontos percentuais para 11. O PSDB murchou nos governos
estaduais, o PT se ampliou. Isso impacta na Câmara, porque os
governadores vão negociar com as bancadas de seus Estados,
independentemente de partidos. O governador petista de Minas pode
induzir mesmo deputados que não sejam petistas a votar a favor do
governo. Isso pode beneficiar o segundo mandato de Dilma. Mesmo assim,
ela vai ter que aceitar o mundo político tal como ele é, negociar e
ceder ao mundo político. Também não está fora do horizonte que a Câmara
mande como recado para ela a escolha de Eduardo Cunha (PMDB-RJ)
presidente da Câmara. Ele é um franco favorito dentro do PMDB. Será
necessário um enorme esforço do PT para reverter essa tendência. E para
reverter, terá que ceder muito ao PMDB.
Ribeiro: O sistema político brasileiro é
sofisticado. Mesmo quando produz resultados de que a gente não gosta,
essas coisas não se resolvem com uma canetada, o que dificulta a reforma
política. Chegamos a um ponto em que é o Executivo que nos salva do
Legislativo. Isso é muito ruim. Temos uma tradição de só ver como
decisiva a pessoa que escolhemos para comandar o Executivo. Quando vamos
eleger o colegiado, não damos grande importância. O Congresso, apesar
de ter regras mais democráticas de composição e eleição, também resulta
disso. O incentivo ao parlamentar é votar, sobretudo em ano de eleição,
agendas que tornem praticamente impossível governar. O Legislativo tende
a ser irresponsável. É estrutural. Vai haver maioria a favor do
governo. A maior parte dos projetos do governo vai ser aprovada. Os mais
polêmicos dificilmente, como se viu no Código Florestal, quando foi
aprovada uma legislação retrógrada, mas o veto presidencial evitou os
piores males. Mais do que isso é difícil conseguir.
Moisés: Tenho dúvidas se só os parlamentares são
irresponsáveis. O Executivo impõe a agenda ao Congresso. Isso tem um
impacto enorme no funcionamento dos partidos. Os incentivos para eles
funcionarem em relação com a sociedade, com os eleitores, com sua base
de apoio, são muito pequenos. Os incentivos são muito mais para os
parlamentares aderirem à coalizão majoritária do que para desempenharem o
papel de representação, fiscalização e controle. Um segmento importante
da sociedade não está identificado com a posição que venceu. Como esses
segmentos estarão representados em um Congresso que tem pouca
autonomia? Isso aumenta a crise de representação. Nosso sistema tem
dificuldade de formar novas lideranças democráticas, capazes de
interpretar os desafios desse momento como algo que tem consequência no
futuro do país.
Almeida: A Presidência vai ser disputada pelo PT e
pelo PSDB a perder de vista. O PSDB tem a base em São Paulo, o PT tem o
Nordeste e agora Minas. Rio de Janeiro, Minas e Nordeste, versus São
Paulo e o Sul. Isso assegura a existência dos dois. Vão competir sempre.
Sobre a fragmentação, o responsável é o Supremo Tribunal Federal, que
votou contra a lei que impunha uma barreira de 5% dos votos nacionais
para a representação no Congresso. É um absurdo o que acontece no
Brasil. Cada um agora tem um partido para chamar de seu. Quem não tem
espaço em um partido funda um novo. Esses partidos não representam nada,
só a si próprios. Não precisamos de tantos partidos assim para
representar os diversos interesses da sociedade. Não há tanto interesse
divergente, a política não é assim.
Ribeiro:
“O Brasil hoje é um país que se sente constantemente incompleto. Alguns
acham que
estamos no caminho certo; outros, no errado”
Valor: 0 próximo ano será difícil na economia. Dilma vai ter que fazer cortes e tomar cuidado com onde a corda vai estourar.
Almeida: Dilma gosta muito de ler, mas não leu
"Capitalismo e Social-Democracia", de Adam Przeworski. Se tivesse lido,
ela já teria composto com os investidores. Ela quer melhorar a vida da
população, mas a decisão do investimento está nas mãos dos investidores.
Se não investem, piora a situação da população e você corre o risco de
perder as eleições. Quase aconteceu agora. Se ela quiser continuar
parindo a sociedade democrática e igualitária, paradoxalmente, vai
precisar transferir renda dos de baixo para os investidores, nos
primeiros dois anos, para que eles invistam e só depois volte o processo
de transferência de renda. Tem um mandato de quatro anos. Arrochando os
dois primeiros, ela pode liberar os dois últimos. Lula, como bom líder
sindical, sabia fazer isso. Essa é a grande diferença entre Dilma e
Lula. Ele aprendeu na prática. Ela, nos livros. Ela não compõe com os
investidores, tem um ranço anticapitalista.
Moisés: Se ela fizer isso, o ônus vai ser da classe
média. Uma das consequências é o imobilismo nessa área da sociedade, e
muito dificilmente os partidos vão ter capacidade de mobilizar para
fazer a reforma política.
Almeida: Não vai ter reforma porque não tem consenso
no Congresso. Reforma política depende dos políticos. É a vida deles.
Para o PMDB, é ótimo que tenha um monte de partidinhos. Ele tem poder de
influência em todo mundo. A quantidade de pequenos partidos é tão
grande que eles juntos têm poder de veto contra qualquer lei que os
reduza. A grande reforma seria reduzir o número de partidos, para que os
políticos disputem espaço dentro deles. A vida partidária brasileira é
oligarquizada e a sociedade está cada vez mais competitiva.
Moisés: A oligarquização dos partidos é algo que
temos tido ao longo do tempo. Provavelmente, o único partido que escapa
em parte a isso é o PT, porque tem uma vida interna e debate constante.
Ainda assim, tem o outro tipo de oligarquização, porque Lula não apenas
escolheu sozinho candidatos, como descartou, desqualificou todas as
lideranças que, dentro do partido, disputavam com ele. Ele sobrou
sozinho. Mesmo o partido que está mais longe da estrutura da
oligarquização ainda assim, não é propriamente democrático.
Valor: É possível continuar fomentando uma
sociedade mais igualitária sem conflitos? Afinal, as condições
econômicas são bem menos favoráveis à conciliação. A estratégia atual
está atingindo seus limites?
Almeida: Muito do que se diz sobre o Bolsa Família é
mito. Por exemplo, quanto mais Bolsa Família, maior a votação do PT. É
mais honesto olhar o crescimento do PIB: o grande tópico sempre vai ser a
economia. Nos lugares onde houve crescimento maior do PIB, o Nordeste
se destacando, o governo foi mais bem votado. O crescimento foi
assimétrico, beneficiou mais os mais pobres. E nos lugares, São Paulo se
destaca, onde o crescimento do PIB foi menor, o governo foi menos
votado. As pessoas querem mais e melhores empregos. Tanto para Dilma
como para Aécio, bastava passar a campanha inteira falando em como gerar
mais e melhores empregos. O eleitorado quer isso. O Bolsa Família é
pouco significativo.
"Não vai ter reforma porque não tem consenso no Congresso. Reforma política depende dos políticos. É a vida deles",
diz Almeida
Fátima: Já temos um estoque de leis, de políticas,
não votadas, engavetadas, que estão prontas. Desengavetar é mais fácil
que produzir. Talvez o conflito seja menor do que parece, tendo em vista
que a sociedade tem Ministério Público, Justiça, todo um aparato de
Estado. Muitas dessas políticas acontecem de baixo para cima e acho que
vamos ver movimentos no estoque de bondades que estão parados no
Legislativo e até mesmo no Executivo. Por exemplo, no tema da violência
contra a mulher, há quatro anos existem propostas no governo sobre isso,
e só nos últimos meses foram criadas as casas de atendimento à mulher.
São pouco mais de 20, em todo o Brasil. Mas esse modelo já está dado e
sabe-se que funciona. A Delegacia da Mulher existe há três décadas, foi
um mecanismo inovador, basta dar vida aos projetos, mostrar que eles têm
existência real. A sociedade tem mecanismos para sair da paralisia e
dos impasses, tem dinamismo.
Ribeiro: Isso é um dos muitos problemas que o
próximo governo vai ter e Aécio também teria, se eleito. A inclusão
social não está completada, não está nem assegurada, porque, se vierem
dois anos de represamento, como anunciado, pode até rebaixar o nível de
gente que conseguiu uma pequena subida. O mundo político tem sido capaz
de esterilizar as demandas que vêm de fora. Como fazer sangue novo
entrar na política? Tem bloqueios sérios. Como se consegue passar além
da redução da miséria, uma agenda em última análise negativa, para uma
agenda positiva?
“Dilma vai ter que negociar. Vai ter que chamar os líderes partidários,
perguntar o que querem,
fazer reuniões periódicas”, prevê Almeida
Valor: Aécio Neves, com essa votação, não é uma opção para 2018?
Almeida: Ele agora vai passar a dormir com o
inimigo: José Serra. São dois senadores. Só que Serra tem uma capacidade
de trabalho muito maior que Aécio. Já está na mídia dizendo como vai
ser a oposição do PSDB, ou seja, já assumiu a liderança da oposição
tucana no Senado. E a máquina, quem tem é Alckmin. Em 2006, Alckmin
pegou um avião, foi falar com cada governador do PSDB, e foi indicado.
Muito fácil fazer isso sendo governador de São Paulo.
Moisés: O grande desafio vai ser Serra e Aécio
construírem juntos uma oposição consistente. Não apenas capaz de fazer
oposição no Congresso, pressionar as posições do governo, mas também
apresentar um modelo alternativo de desenvolvimento. Aécio se credenciou
nessa campanha como uma liderança.
Valor: A agressividade da campanha denota algum problema na cultura política brasileira?
Moisés: É uma questão da cultura política que tem
muito a ver com comportamento de lideranças. Nesta campanha, passamos
além de uma linha que seria razoável. Tem na cultura brasileira um
elemento de contrastes muito fortes, mas não chegam a ser confrontos de
guerra. Em certo ponto desta campanha, os contendores pareciam estar em
guerra. Será que é um traço permanente da cultura política? Não creio.
Temos tido, pelo contrário, uma série de mudanças na cultura política
dos brasileiros, no sentido de mais interesse, de mais participação, de
buscar mais informação.
Fátima: O cidadão não está enxergando mecanismos de
mediação. Ele não reconhece representantes partidários, desconfia e tem
uma profunda crítica dos políticos. E está um passo à frente da
percepção que partidos e analistas políticos têm de certos aspectos,
como a corrupção. O eleitor a enxerga como uma forma de não realização,
uma forma de drenar recursos que poderiam produzir serviços e bens, e de
desequilibrar o que o eleitor tem como pagador de impostos. A mediação
terá de ser trabalhada dentro de um sistema político já fragmentado. Mas
também por um processo de entender a nova capacidade de informação que o
brasileiro tem. A grande transmissão por novas mídias está dando um
poder novo à sociedade. O sistema bloqueado como está, o discurso
codificado dos políticos, a segmentação da forma como a informação é
passada para a sociedade, precisa ser repensado.
Almeida: Isso é a dor do parto de uma sociedade
igualitária e democrática. É a quarta vez que o PT elege um
representante e a lógica é clara. Quem é mais pobre vota no PT, quem é
menos pobre vota no PSDB. Por 16 anos, aqueles que votam no PSDB não se
sentem representados pelo presidente. Além disso, está aumentando a
igualdade social. O emblema maior é a empregada doméstica. O Brasil tem
uma herança escravista e uma das maiores desigualdades do mundo, que vem
sendo reduzida. Isso não se faz sem dor e essa animosidade tem a ver
com isso.
Valor: Qual é a possibilidade de Dilma entregar a
candidatura para Lula em 2018? Foi o primeiro nome que ela citou no
discurso de agradecimento.
Ribeiro: Acho um desastre se isso acontecer.
Significa que o partido não foi capaz de se renovar. Suponhamos que em
2018 Lula seja o melhor nome que o PT tenha. Suponhamos que ele seja a
bala de prata para ganhar a eleição. Em 2022 ou 2026, o PT acaba. No fim
do mandato, serão 40 anos da fundação do PT. Se um partido em 40 anos
não saiu da mesma pessoa, ele está muito fraco. Essa renovação da
liderança está dificílima. O PSB não tem ninguém fora Marina, o PT está
entre dois Fernandos: Haddad [prefeito de São Paulo] e Pimentel [eleito
governador de Minas Gerais]; e o PSDB, [Geraldo] Alckmin.
Valor: Até que ponto o eleitorado está atento às fraquezas da vida pessoal dos candidatos?
Almeida: A campanha explicitou um grande problema do
nosso sistema político: a escolha dos candidatos. Se tivéssemos
primárias, o PSDB jamais escolheria um candidato que seria atacado em
questões pessoais. As pesquisas mostram que, pela primeira vez, o PT
teve mais votos entre mulheres do que entre homens. Por quê? Porque o
candidato do PSDB tinha um grande problema na sua biografia. Se o
processo de seleção fosse aberto, teria aparecido antes. Primárias
seriam melhores para os partidos. Quanto mais abertas as primárias,
melhor o candidato escolhido. Mas os nossos partidos são oligarquizados.
Fátima: Essa questão parece submersa, mas está
presente na mente das mulheres. O gesto de levantar o dedo contra
adversárias no debate, por exemplo. Quantas mulheres já não passaram por
isso dentro de casa! As mulheres já têm outro papel na sociedade. O
PSDB não tem mesmo visão para a questão de gênero. Eu me lembro de Ruth
Cardoso, uma feminista, que dizia: "Não adianta. Esse partido não tem
jeito na questão da mulher."
Moisés: Dilma assumiu muito mais esse papel de
identificação com temas que interessam às mulheres nesta campanha do que
na de 2010. Isso pode ter sido uma marca importante.
Fátima: Na eleição passada ela ficou na defensiva. Com relação ao aborto, ficou silenciosa. Nesta eleição, adotou uma ofensiva forte.
Ribeiro: Parafraseando a Ruth, o PSDB não tem jeito.
Não cria capilaridade, não se articula na área sindical, não ouve, não
vai buscar os cientistas, os intelectuais, não senta para ouvir. Temos
um problema com o principal partido de oposição, que não cria laços na
sociedade.
Além
de se mostrar “consistente”, a oposição terá o desafio de apresentar um
modelo
alternativo de desenvolvimento, afirma Moisés
Valor: Marina Silva perdeu capital político por ter sido oscilante e apoiar Aécio?
Fátima: Ela é muito resistente. Aumentou a
capacidade de voto. Tinha 20 milhões, passou para 22 milhões. Não é
pouco, sendo uma candidata improvisada, depois de uma tragédia. Ela
representa uma ansiedade grande da sociedade, dessa mudança na forma de
fazer política. Ela formulou uma mudança bem mais radical da política,
da representação partidária. Mas não conseguiu sustentar, à luz do
eleitor, essa capacidade de transformação.
Ribeiro: Ela não está liquidada. Pelo visto, sempre
que alguém vai levar uma goleada, o sistema político que temos no Brasil
dá uma sobrevida. Aécio poderia ter sido liquidado há um mês. As
indicações de Lula poderiam ter tido um final catastrófico. Se Dilma
tivesse perdido, essa imagem estaria acabada. Dos três indicados dele,
nas três últimas eleições, [Alexandre] Padilha teve um desempenho pífio
[na disputa para governador de São Paulo], Dilma teria perdido e
sobraria só Haddad. Serra e Alckmin também poderiam ter sido liquidados
por derrotas e não foram.
Almeida: Marina não fez nenhuma proposta clara
durante a campanha. A proposta dela era: Banco Central independente. O
que isso quer dizer para o eleitor? Nada. Banco Central é um meio para
alcançar um fim. O que importa é o fim: gerar mais emprego.
Ribeiro: Marina é um caso clássico de fortuna sem
virtude política. Ela não soube o que fazer com a fortuna que caiu no
colo dela. Depois de ter 20 milhões de votos, não conseguiu montar o
partido. Por mais que ela tenha raiva do PT por ter sabotado o Rede, não
é possível entregar os documentos no Tribunal Eleitoral na última hora.
O apoio a Aécio foi um erro. Quem é terceira via tem que ser terceira
via.
José
Álvaro Moisés, Fátima Pacheco Jordão, Renato Janine Ribeiro e Alberto
Carlos Almeida durante
o debate sobre questões que esperam o novo
governo de Dilma Rousseff
Valor: Como fica o retrato político do Brasil nos próximos anos?
Moisés: Esta campanha deixa desafios que tocam em
questões centrais do desenvolvimento político do Brasil desde a
redemocratização. Mas estou pessimista com o modo como o sistema vai
enfrentar esses problemas. Não sei se a vitória que Dilma teve vai ser
suficiente para ela fazer essa correção de conduta, dialogar, ouvir, e
até, em algumas questões nacionais, buscar pontes com a oposição. Não
vejo sinais nessa direção. Vejo o mesmo problema no polo da oposição.
Ela cresceu, mas isso não é suficiente para um desempenho que responda
às questões mais urgentes. As oposições brasileiras vão precisar se
reinventar. Será que isso vai ser possível com essas pessoas?
Fátima: A resposta vem da sociedade. Tem um consenso
de desqualificação dos quadros eleitos, do parlamento conservador,
diante de um Brasil muito dinâmico. Existe um crise, que exige resposta,
e essas representações não estão conseguindo articular. A resposta virá
da sociedade, sua organização em movimentos, sua articulação na
capacidade de informar, não só ser informada. E da capacidade das
lideranças que não estão dentro dos partidos, mas que fora deles estão
tendo um protagonismo extraordinário.
Ribeiro: Estou tendo de rever várias convicções. O
caráter agressivo da campanha pode ter sido bom. Foi a campanha que teve
mais coisas descascadas. A discussão caiu de nível, mas isso não deixa
de ter um aspecto positivo. A gente teve um certo avanço. A
agressividade da campanha acaba fazendo sobrar só quem realmente tem
resistência e consistência nas propostas. Nosso sistema de eleição
presidencial tem um lado bom. As pessoas são bombardeadas. Isso que
Dilma sofre há anos, que Aécio sofreu nos últimos meses. O aeroporto de
Cláudio. O candidato apanha tanto que tem que ter consistência. Marina
recebeu um presente, por triste que seja dizer isso: ela teve pouco
tempo de bombardeio e mesmo assim não passou.
Almeida: Agora é pensar no futuro governo. Governo
novo, ideias novas. Mudou a estrutura de incentivos. Quando Dilma foi
eleita pela primeira vez, ela mesma teria de disputar a reeleição. Agora
será outro. De onde virá esse outro? Tem Pimentel em Minas. O Nordeste
vai votar no candidato do PT. O Rio de Janeiro também, se cuidarem dele
direito. O futuro candidato também pode ser um ministro, dependendo da
performance. [Aloísio] Mercadante? Jacques Wagner? Tudo depende da
economia. Se ela não fizer a inflexão de política econômica agora, vai
perder. E o PSDB também pode ter outro candidato. Não precisa ser
Alckmin, nem Serra, nem Aécio. Alckmin tem a faca e o queijo na mão,
porque tem a máquina. É tradição brasileira. Quem tem a máquina leva uma
vantagem fenomenal. Se ele quiser ser candidato, esquece Serra, esquece
Aécio.
Valor: As eleições permitem vislumbrar mudanças da sociedade civil como um todo?
Fátima: Houve uma aceleração muito forte da fluidez
da informação. Há segmentos que conseguem, independentemente de partido,
expressar novos horizontes para a sociedade. Além da votação das
mulheres, a população negra votou massivamente em Dilma. No último
momento, Dilma conseguiu captar entre os jovens um volume de votos que
lhe garantiu a vitória. Esses segmentos, que não estão representados nos
partidos e no Parlamento, vêm formatando políticas públicas ao longo
dos últimos anos. São propostas que não encontram ressonância nos
partidos. Quando Dilma foi escolhida por Lula, foi uma escolha também
oportunista, se aproveitando dessa visão de que alguma coisa, nas
frestas institucionais, está modificando a sociedade e tem que rebater
na política. Dilma representou uma ansiedade de equilibrar a
participação de gêneros.
Ribeiro: O repertório político relativamente pequeno
da sociedade é um problema. Militantes e eleitores têm dificuldade de
fazer uma tradução política dos problemas e equacioná-los politicamente.
As questões da sexualidade, da igualdade feminina, da igualdade étnica,
foram aparecendo no Brasil sem ter de imediato a perspectiva política.
Não sei se essa transferência de pautas da vida para a política vai
continuar. Os rolezinhos, no começo do ano, foram muito significativos,
porque tinham um sentido político. Jovens excluídos que querem ter
acesso ao templo do consumo, mas sem consciência política.
Moisés: Um dos grandes paradoxos é esse. Das
manifestações enormes em cidades importantes não apareceram lideranças
com capacidade de liderar e canalizar. É um paradoxo que está
relacionado à crise de representação. Qual seria o perfil possível das
reformar políticas propostas? Isso não ficou claro em nenhum dos
candidatos. Marina falava de nova política de maneira muito genérica.
Aécio, afora a questão da reeleição, não elaborou. A manifestação de
Dilma tampouco foi clara. Isso pode levar a um novo ciclo de frustração,
ao anunciar algo muito relacionada com a energia da mudança mas, com o
Congresso dividido, chegar a um fim precoce. Dilma diz que a reforma tem
que ser feita com plebiscito. Não dá para resolver os temas da reforma
política em plebiscito.
Ribeiro: O PSOL, no fim das contas, talvez seja o
único partido consistente ao invocar as manifestações. É o partido mais à
esquerda com representação no Congresso.
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Reportagem Por DIOGO VIANA. para o Valor de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 31/10/2014