sexta-feira, 30 de dezembro de 2016
Sim, a pós-verdade é um conceito mentiroso!
Henrique Monteiro*
Pergunto-me a mim próprio por que razão se descobriu o conceito de
pós-verdade quando tínhamos à mão uma palavra tão boa para referir o
mesmo conceito. Não, não me refiro a inverdade, que já teve os seus
tempos.
É mesmo m-e-n-t-i-r-a! MENTIRA!
A pós-verdade, dizem-nos, ocorre neste tempo e sociedade em que a
verdade deixou de ser relevante. Rasgam as vestes, como se fosse a
primeira vez na História que tal acontece. Não é verdade! É mera
pós-verdade, ou como prefiro dizer: MENTIRA!
O que aconteceu, então? Ocorreu que uma série de conceitos que tínhamos
por verdadeiros, pelo menos desde o Iluminismo e mais convictamente após
o positivismo e o marxismo, começaram a ser postos em causa, a
desmoronar-se, a ir por água abaixo. O consenso existente e que foi
claramente dominado por uma abordagem epistemológica que não era, nem
podia ser neutra, afunda-se. Nas universidades, em cuja maioria o
conhecimento antigo foi substituído por uma nova vulgata pós-moderna, a
crise não podia ser maior. Afinal, o que nos andaram a impingir não só
não se verifica como acontece o contrário. Penso que a 'pós-verdade'
reside nessa perplexidade contraditória. Sartre, Chomsky e Boaventura
Sousa Santos não tinham razão. Os mais pessimistas, como Isaiah Berlin,
Raymond Aron ou Fernando Gil estavam mais próximos da verdade.
Isto podia não ser mau se, como quase sempre, a criança, neste caso,
conceitos transcendentes como o da Verdade (com v grande) não estivesse a
ir pelo ralo com a água do banho (frase querida a Lenine). Mas está.
Trump veio demonstrar que se pode mentir com quantos dentes se tem na
boca, sem que daí surjam consequências, pelo contrário tem milhões a
apoiá-lo. Isto é verdade, sem qualquer prefixo pós. Mas peço
licença: pessoas mil vezes menos recomendáveis, como Hitler e Estaline,
Mao e Pol Pot já o tinham feito. Ninguém se lembrou da dita pós-verdade
na altura dos crematórios e dos campos de concentração e dos tiros na
nuca ou dos mortos de fome por uma política dogmática e insana. É certo
que o mundo não era global a esta escala, mas a técnica é velha. E a
verdade ou é ou não é. O problema é que, para boa parte dos
relativistas, a verdade não é. E assim a mentira também não pode ser.
Por isso, a mentira tem a mais recente tradução no dicionário do
relativismo: pós-verdade!
Diz Manuel Fonseca no comentário a este post de
Pedro Norton " As massas induzidas por notícias falsas, a informação
inventada, é velha de séculos. Da Grécia e de Roma. Foi a pós-verdade
que levou a cicuta à boca de Sócrates e já havia pós-verdade nas
Catilinárias. Sem a pós-verdade Shakespeare não teria posto na boca de
Marco António a arrebatada oratória que virou do avesso a multidão que
deixa de incensar Brutus para logo lhe querer queimar a casa. Eu vi a
pós-verdade a fazer correr sangue nas ruas de Luanda na transição para a
independência e depois da independência… Eu vi, gerações e gerações
viram a pós-verdade ainda ela não tinha nascido". Tem razão. Tem muita
razão.
Mas, afinal, quando falam de pós-verdade, de que verdade falam?
O bom relativista postula que não há verdades absolutas (o que é
logicamente falso, porque para este postulado ser verdadeiro pelo menos
uma verdade absoluta tem de existir - a que diz não haver verdades
absolutas). Ao postular que não há verdades absolutas e que tudo depende
do ponto de vista do observador, confunde dois conceitos, além de matar
mais uns.
Por um lado confunde o conceito de verdade prática (filiada na razão
prática), quase toda ela indefinível em absoluto, mas apenas através de
conflitos de valores (clashes of values) com a Verdade
transcendente, aquela platonicamente preexistia na Psyke antes de se
juntar ao Soma (corpo). Bem sei que Sartre defendeu que antes do ser há o
Nada (Néant, que é uma palavra maior do que nada, ausência, vazio)
inaugurando um novo existencialismo formado apenas por construções
sociais, no qual nem as construções sociais naturais têm praticamente
lugar. Assim, não haveria qualquer Verdade fora do ser. É esta a questão
que já opusera Kant a Benjamin Constant. A Verdade com V grande só pode
ser absoluta no espaço da razão pura e não na prática. A novidade com
os pós-modernos (que na verdade só o são depois de Lyotard os descrever
em 1970 em 'A Condição Pós-Moderna') é, dito depressa e mal, uma
amálgama do que ficara do niilismo com os restos do marxismo (não o da
URSS), de ultrapassagem do iluminismo e da tradição liberal para uma
sociedade multicultural sem referências centrais ou transcendentais, que
os críticos classificavam como tribalizada.
Ao contrário do que se possa pensar a pós-modernidade não se filia na
tradição liberal (embora alguns o sustentem). A tradição liberal sendo
certo que detesta verdades impositivas convive e defende os conceitos
transcendentais. Isto significa o quê? Que há conceitos que estão para
lá de cada um e que cada um toma o caminho que lhe parece mais
apropriado para lhes tentar chegar. E que, por outro lado, há um espaço
conhecido e ao alcance de todos onde se lida com o bom senso e com o
conflito de valores para determinar qual o mais importante a cada
momento - e aqui temos verdades que podem ser relativizadas em função
das situações concretas (o célebre exemplo do fugitivo da Gestapo
escondido em nossa casa que nos leva moralmente a mentir sobre o seu
esconderijo, apesar da mentira no mundo da razão pura ser condenável).
Mas no espaço que nos transcende, porque não o conhecemos, as verdades
têm de ser absolutas, de outro modo não teríamos referências. Caso não
reconhecêssemos como absoluta a Verdade, a Liberdade, a Igualdade, a
Fraternidade, a Justiça, a Honra, a Probidade e mais uma série de
valores.
(Peço a fineza de não confundirem verdade transcendental, ou seja que
transcende cada indivíduo, com verdade revelada, que é o do domínio da
crença livre de cada um).
"A pós-verdade começou com a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Como não
acredito que esse episódio seja histórico, resta-me dizer que é um
conceito inventado pelos adeptos da pós-modernidade para não terem de
lidar com conceitos que lhe são estranhos."
A ser assim, e socorrendo-me de uma imagem gráfica, imaginemos que uma
clareira no centro de uma floresta corresponde ao nosso universo
conhecido. O perímetro dessa clareira corresponde ao incognoscível.
Quando dobramos a área do que é conhecido, dobramos a do que não é
conhecido. É o que tem vindo a acontecer nas áreas científicas da
chamada ciência dura. Se multiplicarmos por 100 o conhecido,
multiplicamos por 100 o desconhecido. E esta relação só tem duas
soluções: ou a floresta é finita - e o nosso conhecimento seria
limitado, a determinada etapa do conhecimento, porque tudo era
conhecido, ou o desconhecido será sempre muito superior ao conhecido.
Mas o positivismo e o materialismo histórico pensaram noutra forma de
derrotar esta irritante constatação (que além de Kant, Rousseau já
pensara). Como? Postulando que seria possível prever o que não se
conhece. O materialismo histórico sabe o sentido da História; o
positivismo sabe que a mais educação corresponde mais conhecimento e
sabedoria e que, armados dessas duas armas, a natureza humana
modifica-se. Cria-se um homem novo, um homem diferente, o homo informatus.
Ora estas ideias, talvez generosas foram-se, O homo informatus pode ser
um trumpiano ou um adepto de Putin ou Erdogan. Os nossos pós-modernos,
que diabolizaram Merkel têm-na agora como líder do mundo livre - tocha
que lhe foi passada por Obama.
A frase do Eclesiastes: "Tudo o que foi será; tudo o que aconteceu,
acontecerá. Não há nada novo debaixo do Sol", que não fazia sentido na
modernidade, parece voltar a galope, como dizia Destouches ao adaptar um
verso de Horácio ("chassez le naturel, il revient au galop").
Nada do que era antigo fazia sentido para o espírito moderno. E, no
entanto, o espírito liberal nunca quis matar os conservadores nem os
progressistas, antes tentou um chão comum onde convivessem todos.
Quando o homem se liberta de Deus - esse enorme desconhecido que
atrapalha de uma forma terrível qualquer teoria de conhecimento total ou
de previsão, parece não levar em conta essa grande reacionarice que é
a natureza humana. Eis algo tramado. Muda pouco ou nada. Lida com a
mentira e aplaude-a quando ela parece melhor do que a verdade. O povo
adora vendedores de ilusões, mesmo quando é devidamente escolarizado
(não é por acaso que 70 anos sem Igreja na Rússia não alterou grande
coisa a devoção naquelas paragens). E são pontapés em conceitos destes,
que eram preconceitos, o que a atualidade tem estado a dar. O que hoje
se passa não é mais nem menos pós-verdade. É o que somos, sem as sombras
criadas por teorias que vão pelo ralo (e que levam com elas adquiridos
culturais, ideias generosas, muita coisa boa, mas ao mesmo tempo muita
sujidade, muito mau cheiro).
"O Senhor pôs um espírito de mentira na boca de todos os profetas aqui
presentes", está escrito no Livro dos Reis (I Rs, 22,23); "Ó poderosos,
até quando tereis o coração endurecido, no amor das vaidades e na busca
da mentira?" (Salmos 4,3); "Na verdade, do maior ao menor, todos se
entregam aos ganhos desonestos; desde o profeta ao sacerdote praticam
todos a mentira" (Jeremias, 6,13). Posso continuar indefinidamente.
A pós-verdade começou com a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Como não
acredito que esse episódio seja histórico, resta-me dizer que é um
conceito inventado pelos adeptos da pós-modernidade para não terem de
lidar com conceitos que lhe são estranhos. Tais como a Verdade (com V
grande) e a mentira.
--------------
* Jornalista português. Fonte: http://www.escreveretriste.com/author/henrique-monteiro/
Desejo aos leitores um feliz 2016 (e não, não é erro)
João Pereira Coutinho*
Três personagens entram no restaurante. Sentam-se à mesa. O empregado
aproxima-se dos comensais. O primeiro olha para o cardápio e escolhe de
acordo com as regras da casa. O segundo olha para o cardápio, rejeita
enfaticamente o cardápio —e pede um prato que não está na lista. O
terceiro recusa olhar para o cardápio e pergunta apenas ao garçom: "Você
recomenda algo em especial?"
Pergunta: quem são esses três personagens?
Resposta: o primeiro é um liberal, o segundo é um revolucionário, o terceiro é um conservador.
Que o mesmo é dizer: o primeiro respeita a letra escrita e segue a
constituição do restaurante; o segundo recusa a legalidade gastronômica,
repudia o que foi deliberado pelo chef e pretende criar um novo
cardápio com iguarias que apenas existem na cabeça dele; o terceiro
confia na tradição da casa, na experiência dos seus membros — e espera
que lhe tragam os pratos que foram requintados ao longo do tempo.
Durante anos, esse foi o meu teste ideológico aplicado a terceiros.
Raramente falhava. Sentado à mesa, contemplava o meu parceiro e chegava
facilmente a uma sentença. Falo em "parceiro" e não é por acaso: as
mulheres tendem a ser sempre mais revolucionárias. Querem combinar
pratos; separar molhos; substituir carnes assadas por grelhadas (ou
vice-versa). O filme "Harry e Sally - Feitos Um para o Outro" explica.
Mas divago.
Com o tempo, aprendi que existe um segundo teste que permite distinguir
"progressistas" de "conservadores": os textos que ambos escrevem na
virada do ano.
Os primeiros ignoram 2016 e só pensam em 2017. Pior: partindo do
pressuposto de que estão vivos, ignoram por completo que sobreviveram
mais um ano; esquecem as bênçãos que tiveram nesse ano; e olham com
ganância desmedida para o ano que ainda nem conhecem.
Querem mais, sempre mais, insuportavelmente mais. Saúde. Dinheiro.
Amores. Divórcios. Viagens. Implantes. Novos neurônios para o caçula. O
funeral do patrão. Aquele carro, aquela casa. O céu. A lua.
E quando, hipocritamente, gostam de apresentar uma máscara de humildade
(apenas mais tempo livre; apenas deixar o cigarro; apenas perder dois
quilos), o vício progressista continua a corroê-los: um criminoso
esquecimento do passado.
Não contem comigo, ingratos! Agora que 2016 desaparece no horizonte como um cobói de faroeste, brindo a ele porque
a) Estou vivo (a maior parte do tempo);
b) Estou saudável (idem);
c) Estou sóbrio (ibidem);
d) O cabelo resiste heroicamente;
e) Os selvagens dos meus vizinhos pediram o divórcio e o apartamento está silencioso, vazio e à venda;
f) Portugal não sofreu nenhum atentado terrorista;
g) Nenhum atentado terrorista atingiu amigos e familiares;
h) Amigos e familiares continuam a suportar-me (apesar das minhas sabotagens);
i) Os leitores também;
j) Não pratiquei exercício físico;
k) Portugal não faliu (ainda);
l) Leonard Cohen só morreu depois de lançar "You Want it Darker";
m) Descobri um novo romancista (Olivier Bourdeaut) e o seu primeiro romance ("En attendant Bojangles", "Esperando por Bojangles");
n) Confirmei, com o "The Knick" de Steven Soderbergh, que o grande cinema está hoje na tv;
o) ...Ou talvez não: houve "Anomalisa", de Charlie Kaufman;
p) Há dinheiro no bolso para o uísque das crianças;
q) Escrevi um punhado de textos que não envergonham a musa;
r) Descobri que uma hérnia do disco, longe de ser um drama, pode ser a desculpa perfeita;
s) O mesmo vale para enxaquecas - fáceis de inventar, impossíveis de provar;
t) Não trabalhei mais do que devia;
u) Confrontaram-me com provas audiovisuais de que ressono —mas a minha senhora não se importa (demasiadamente);
v) O meu filho já caminha e corre para todo lado, embora esteja sempre à espera que o pai faça o mesmo;
w) Os meus alunos sabem que o professor chegou aos 40 anos e mostram grande respeito pela terceira idade;
x) Sobrevivi a um aparatoso acidente de bicicleta;
y) A bicicleta estava parada e eu em cima dela.
z) Foram só dois dentes.
b) Estou saudável (idem);
c) Estou sóbrio (ibidem);
d) O cabelo resiste heroicamente;
e) Os selvagens dos meus vizinhos pediram o divórcio e o apartamento está silencioso, vazio e à venda;
f) Portugal não sofreu nenhum atentado terrorista;
g) Nenhum atentado terrorista atingiu amigos e familiares;
h) Amigos e familiares continuam a suportar-me (apesar das minhas sabotagens);
i) Os leitores também;
j) Não pratiquei exercício físico;
k) Portugal não faliu (ainda);
l) Leonard Cohen só morreu depois de lançar "You Want it Darker";
m) Descobri um novo romancista (Olivier Bourdeaut) e o seu primeiro romance ("En attendant Bojangles", "Esperando por Bojangles");
n) Confirmei, com o "The Knick" de Steven Soderbergh, que o grande cinema está hoje na tv;
o) ...Ou talvez não: houve "Anomalisa", de Charlie Kaufman;
p) Há dinheiro no bolso para o uísque das crianças;
q) Escrevi um punhado de textos que não envergonham a musa;
r) Descobri que uma hérnia do disco, longe de ser um drama, pode ser a desculpa perfeita;
s) O mesmo vale para enxaquecas - fáceis de inventar, impossíveis de provar;
t) Não trabalhei mais do que devia;
u) Confrontaram-me com provas audiovisuais de que ressono —mas a minha senhora não se importa (demasiadamente);
v) O meu filho já caminha e corre para todo lado, embora esteja sempre à espera que o pai faça o mesmo;
w) Os meus alunos sabem que o professor chegou aos 40 anos e mostram grande respeito pela terceira idade;
x) Sobrevivi a um aparatoso acidente de bicicleta;
y) A bicicleta estava parada e eu em cima dela.
z) Foram só dois dentes.
A todos os leitores, desejo do fundo do coração um excelente 2016!
--------------------
* Escritor português, é doutor em ciência política.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2016/12/1845808-desejo-aos-leitores-um-feliz-2016-e-nao-nao-e-erro.shtml
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quinta-feira, 29 de dezembro de 2016
‘Vivu! Revu! Amu!’
Luis Fernando Veríssimo*
Com
o Mercado Comum Europeu se desfazendo, e o euro sendo questionado a torto e a
direito, ou à esquerda e à direita, cabe lembrar a experiência do esperanto
O
inglês Cristopher Hitchens conta que entrevistou um líder do Partido da
Liberdade, de extrema-direita, da Áustria, e que, quando a conversa derivou
para a então recém-lançada moeda comum europeia, o entrevistado pediu a opinião
de Hitchens sobre aquele “esperanto monetário”. Hitchens foi obrigado a
concordar, a contragosto, com a sacada do fascista. O euro realmente evocava
outra busca de integração transnacional, a do esperanto, uma língua inventada
que — como fatalmente aconteceria com o euro — não pegara, e acabara como
apenas uma boa tentativa. O objetivo do esperanto era o de unificar por uma linguagem
em comum; o do euro, o de unificar pela moeda. Nos dois casos, o objetivo era
acabar com conflitos e criar um sentimento compartilhado de humanidade que
garantiria a paz.
Com
o Mercado Comum Europeu se desfazendo, e o euro sendo questionado a torto e a
direito, ou à esquerda e à direita, cabe lembrar a experiência do esperanto — e
do seu idealismo frustrado, nem que seja só para comparar fracassos. A “língua
franca” — que acabaria com a chamada danação de Babel, quando Deus reagiu à
pretensão dos humanos de construir uma torre que os aproximaria do ouvido do
Senhor, decretando a multiplicação das línguas (e, como efeito colateral,
criando a profissão de tradutores) — foi uma invenção de L.L. Zamenhof, um
judeu polonês que teve uma fase de entusiasta do sionismo, mas depois renunciou
a ela, passando a pregar o fim de qualquer movimento definido por etnia ou
nacionalidade. Ele chamou sua nova língua de lingvo internacia, mas
ela se tornou conhecida como esperanto baseada no codinome que Zamenhof adotou,
Doktoro Esperanto (Doutor Esperança em esperanto), quando publicou seu “Unua
libro” (primeiro livro).
O
esperanto não trouxe a paz e a humanidade compartilhada que Zamenhof esperava,
mas não deixou de fazer barulho, organizando conferências e campanhas promocionais
e causando controvérsias. Pelo que eu sei, o movimento continua vivo, e
atraindo adeptos. Li que a uma convenção compareceram esperantistas gays, do
Partido Verde, vegetarianos, pacifistas e amantes de gatos, e todos usavam
camisetas com os dizeres Vivu! Revu! Amu! (Viva! Sonhe!
Ame! em esperanto).
O
sonho da unidade europeia e da moeda comum talvez não siga o caminho do
esperanto para a irrelevância, ou para apenas outra invocação melancólica na
frente de uma camiseta. Mas periga.
-------------
* Jornalista. Escritor.
A abstinência e a monogamia
Bruno Maia*
O problema principal em promover a monogamia e a fidelidade como forma
de prevenção é o facto de que
são precisos dois para se ser monógamo.
A Holanda tem desde há muitos anos um programa de educação sexual
implementado que cobre todo o território e chega a praticamente toda a
população. Este programa começa no pré-escolar e vai até à idade adulta e
inclui um componente importante de educação para a diversidade. A
Holanda é o país da Europa com a menor taxa de infeções de transmissão
sexual (IST) entre os jovens, uma das menores taxas de gravidez na
adolescência e de interrupção voluntária da gravidez.
Nos EUA, nos anos de Ronald Reagan, a política de prevenção das IST e
do VIH passou a ser dirigida, primariamente, a programas de promoção da
abstinência entre os jovens. A própria administração Clinton destinou
50 milhões de dólares do orçamento federal para programas que
promovessem a abstinência sexual até ao casamento. Entre muitos dos
critérios de elegibilidade para financiamento destes programas,
contavam-se alguns como a prioridade da promoção da abstinência sobre
todos os outros métodos de prevenção e a promoção da monogamia e da
fidelidade como a única forma de relacionamento aceitável socialmente.
Com a administração W. Bush a promoção da abstinência até ao casamento
passou a ser a única política de prevenção aceitável para o Governo
Americano. Só em 2009 a administração Obama reverteu esta situação,
alocando fundos para programas de educação sexual dirigidos a jovens.
Durante os anos da “abstinência até ao casamento” foram realizados
muitos estudos para avaliar a eficácia destes programas. Em 2007 uma
meta-análise de 56 destes programas demonstrou que estes foram
ineficazes, não se tendo verificado um aumento na idade de iniciação
sexual, uma diminuição do número de parceiros sexuais nem um incremento
do uso do preservativo ou de outros contracetivos. Pelo contrário,
durante a vigência destes programas aumentou a incidência de IST e de
gravidezes indesejáveis. Quando os programas de promoção da abstinência
foram comparados com programas estruturados de educação sexual
existentes em alguns estados Americanos (com financiamento próprio),
ficou demonstrado que os jovens incluídos em programas de educação
sexual tinham taxas maiores de abstinência sexual e menor número de
parceiros que os restantes incluídos em programas de abstinência.
Em Março de 2009, durante uma visita a África, o Papa Bento XVI disse
publicamente: “o problema da SIDA em África não pode ser resolvido com
distribuição de preservativos, estes podem inclusive agravar o
problema...”. Já em 2003, o presidente do conselho pontifício do
Vaticano para a família, Alfonso Trujillo, tinha afirmado que “o vírus
da SIDA é 450 vezes mais pequeno do que o espermatozóide - o
espermatozóide atravessa os buracos que existem no preservativo (...) os
governos devem abordar o preservativo da mesma forma que fazem com os
cigarros - eles são um perigo”. Muitos líderes religiosos e políticos em
África também se juntaram a este discurso e adotaram posições extremas
em relação ao VIH. O Uganda, um dos países Africanos com maior
prevalência de VIH, em 2005 decidiu cortar financiamento vital a
programas de prevenção, nomeadamente deixando de importar preservativos
para passar a promover, exclusivamente, a monogamia e a fidelidade como
estratégias de combate ao VIH. No ano seguinte os números de prevalência
de VIH voltaram a subir, após um período prévio de queda. Existem quase
2 milhões de pessoas com VIH naquele país.
O problema principal em promover a monogamia e a fidelidade como
forma de prevenção é o facto de que são precisos dois para se ser
monógamo. Existe uma percentagem muito elevada de mulheres, em países
Africanos, que foram infetadas pelo parceiro estável e único. Mesmo nos
países ocidentais, uma parte muito significativa das transmissões em
heterossexuais observaram-se dentro do casamento. Mesmo nos HSH, um
estudo conduzido nos EUA concluiu que cerca de 68% de todas as infecções
foram adquiridas no contexto de uma relação estável (AIDS. 2009 Jun
1;23(9):1153-62.). A agravar este facto, a grande maioria das pessoas
utilizam o preservativo em muito menor quantidade com os seus parceiros
estáveis em comparação com parceiros ocasionais. As campanhas de
promoção da abstinência até ao casamento vêm sempre associadas a um
forte discurso moralizador, de condenação da liberdade de escolha nas
nossas relações e de afastamento dos mais jovens de outros métodos de
prevenção. Nos anos Reagan - Clinton – Bush, elas foram sempre
financiadas à custa de cortes nos programas de educação sexual e
distribuição de preservativos. Os resultados estão publicados e não
justificam a eficácia desta estratégia. Além disso, promover a
abstinência até ao casamento em locais e países onde o casamento não é
legalmente reconhecido para todos, nomeadamente os HSH, é
voluntariamente afastar as populações mais vulneráveis de formas de
prevenção.
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* Médico.
Fonte: http://www.esquerda.net/opiniao/abstinencia-e-monogamia/46125
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quarta-feira, 28 de dezembro de 2016
No Natal, a obrigação de ser bondoso e alegre faz de mim um sociopata
João Pereira Coutinho*
Quando morreu Leonard Cohen, li um artigo com um título que não esqueço:
"A polidez é a melhor forma de resistência". Como dizem os brasileiros,
concordo em gênero, número e grau.
Pessoas que me conhecem sabem que sou um homem educado. Outras, que não
me conhecem mas leem o que escrevo, imaginam um ogro. Não sou.
Naturalmente polido, até em situações extremas tento manter a
graciosidade. No meio da barbárie moderna, a polidez é mesmo uma forma
de resistência.
Só existe um momento do ano em que o ogro emerge das profundezas. No
Natal. A época, dizem, serve para despertar o amor fraternal entre os
homens. No meu caso, só desperta hostilidade pelo meu semelhante. Terei
cura?
Christopher Hitchens, no livro "And Yet...", tem um texto que ajuda.
Escreve Hitchens que, no Natal, ele sente que está a viver num Estado de
partido único –uma espécie de Coreia do Norte com Papai Noel.
Mas depois, com seu desagradável ateísmo, Hitchens erra quando afirma
que a culpa é do cristianismo. Ou, como ele escreve, a culpa é do
nascimento do Grande Líder, que tem de ser adorado pelas massas
exaustas.
Discordo, Christopher. O melhor do Natal é mesmo o nascimento do Grande
Líder. Não falo como crente. Falo como esteta. Quem escutou os coros de
Natal em Oxford ou as modestas "missas do galo" nas aldeias de Portugal
não pode ficar insensível à simplicidade bela da fé.
O problema é que o Natal não lida com o Grande Líder. Para ficarmos na
religião, o problema está mesmo no paganismo colorido da quadra –e,
claro, no fascismo da felicidade que tanto incomodava Hitchens.
São as mensagens que recebemos de "amigos" que desapareceram o resto do
ano. É a simpatia dos colegas que desejaram ardentemente o nosso
fracasso nos 11 meses anteriores. São familiares que mal conhecemos –e
que surgem com uma intimidade só tolerável em casos de demência.
É, no fundo, a obrigação de ser bondoso e alegre e sentimental. São as
árvores plásticas, as luzinhas gaguejantes, as renas e o trenó. É a neve
artificial. É a alegria artificial.
Eu tento me controlar. Leio Charles Dickens de espírito aberto. Sem
sucesso. Devo ser a única pessoa do mundo que, depois de ler "A
Christmas Carol", lamenta profundamente a mudança de Mr. Scrooge.
Repito: terei cura? Um psicanalista perguntaria pela minha infância. A
minha mãe confirma que sempre tive uma relação problemática com o Papai
Noel. Aos seis anos, por exemplo, tentei caçá-lo. Explico. O plano era
esperar que o velho descesse pela chaminé e, com uma rede de pesca,
capturá-lo.
Os meus pais, alarmados com os primeiros sinais de sociopatia, tentaram
ser pedagógicos. Sequestrar o Papai Noel significava ficar sem presentes
para o resto da vida.
Mas eu tinha outras ideias e, aqui entre nós, o demônio capitalista já
tinha infectado o meu ser. Depois de capturado, o Papai Noel seria
exibido em barracas de feira –como se fosse o King Kong. Com o dinheiro
dos ingressos, eu próprio compraria os presentes.
Assim foi: montei a minha tenda junto à chaminé e esperei toda a noite.
"Toda a noite", vírgula: vencido pelo cansaço, adormeci entretanto.
Quando acordei, o infame já tinha visitado o lar –e, supremo insulto,
havia uma Polaroid da minha pessoa, dormindo no chão da sala, com uma
rede de pesca na mão. E a legenda: "Ho ho ho".
Esse psicanalista imaginário diria que o mistério está explicado. Aos
seis anos, quando ainda acreditava no barbudo, fui humilhado por ele.
Quando chega dezembro, o barbudo anda à solta –e a alegria totalitária
do Natal só serve para cutucar uma ferida infantil que nunca cicatrizou
realmente. Aquele "ho ho ho" ecoa em todos os becos e esquinas.
Apesar de óbvia, é uma boa teoria. O que me leva a pensar que o caminho
da catarse talvez passe por um bom relatório médico que me permita pedir
uma indenização. Por "stress pós-natalino".
Depois, dezembro chegava e eu, com o relatório na mão, fazia uma pausa
no trabalho, evitava as compras no shopping, resgatava o corpo e a mente
dos "jantares de Natal" –e recolhia-me no quarto, com bibliografia
terapêutica e um bom xarope para os nervos (Laphroaig serve).
Haverá algum psicanalista leitor que esteja disposto a assinar esse relatório? Um pedido: escrever "ho ho ho" não vale.
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* Escritor português, é doutor em ciência política.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2016/12/1844802-no-natal-a-obrigacao-de-ser-bondoso-e-alegre-faz-de-mim-um-sociopata.shtml
Foto: Binho Barreto/Folhapress
segunda-feira, 26 de dezembro de 2016
A cristandade está mal entregue
Rui Tavares*
Quando Donald J. Trump ganhou as eleições prometeu que com ele se deixaria de dizer “Boas Festas!” para se passar a dizer “Feliz Natal!”. É que para os agitadores que rodeiam o presidente-eleito dos EUA, a primeira saudação representa uma forma da “Guerra contra o Natal” que se tornou obsessão deles há cerca de uma década, ao passo que a segunda representaria um regresso à boa ordem cristã.
Aproximando-se o Natal, porém, com que presente decidiu Trump brindar
a humanidade? Anunciando que “os EUA têm de reforçar e expandir
grandemente a sua capacidade nuclear” até que o resto do mundo “ganhe
juízo” em relação à supremacia da balística norte-americana. Perguntado
por uma TV se isto não significaria regressar a uma corrida ao
armamento, a sua resposta foi “pois que haja uma corrida ao armamento! —
nós aguentamos mais do que os outros todos”. Temos portanto um suposto
cristão devoto que, chegado o dia do nascimento do seu salvador,
envereda por uma ameaça de destruição a toda a criação divina.
Não
é o único. O seu amigo e aliado Vladimir Putin não só transformou a
antiga União Soviética revolucionária e ateia no grande pólo do
conservadorismo cultural no mundo como o fez posando como aliado da
Igreja Ortodoxa e grande defensor da Cristandade a partir dessa
“Terceira Roma” que é Moscovo.
Putin é também um tipo especial de cristão devoto: aquele que não se
preocupa com as exigências da compaixão ou da piedade como não se
incomoda com a hipocrisia. Enquanto bombardeou os habitantes de Alepo —
incluindo muitos cristãos ortodoxos — deixou o ISIS regressar a Palmira,
que foi a sua primeira operação de propaganda quando chegou à Síria
para supostamente combater “os terroristas”. Por respeito para com a
centena de pessoas que a Rússia perdeu num acidente aéreo com um dos
aparelhos mais inseguros da aviação moderna, deixemos Putin de lado
hoje. De outra forma, muito haveria para dizer sobre a desvalorização
com que Putin trata também a vida dos soldados russos e das suas
famílias, desde o tempo em que — nos seus primeiros meses no poder, no
ano de 2000 — abandonou os marinheiros do submarino Kursk no fundo do
mar, recusando apoio de países terceiros para os salvar.
Passemos
então a outro bom defensor das tradições e liberdades religiosas, desta
feita da Igreja Anglicana, à qual credita pelo sucesso em forjar uma
identidade britânica distinta da do continente europeu. Trata-se, é
claro, de Nigel Farage, o fundador e líder do UKIP, também ele um adepto
da fantasiosa tese da “Guerra contra o Natal”. No ano passado insistia
que o Natal deveria ser mantido como “um festival cristão” numa “nação
cristã, com uma constituição cristã e um monarca cristão”. Este ano, que
diz ele? Os seus desejos de Bom Natal vieram precedidos de um aviso aos
crentes para que desconsiderassem as palavras do líder clerical da
Igreja Anglicana. Porquê? Porque este se atreveu a mencionar na missa de
Natal a tragédia dos refugiados e a falar da “divisão e do medo” que se
vivem no mundo atualmente. A resposta de Farage: “ignorem todas as
mensagens negativas do Arcebispo de Cantuária”.
Desde o seu início
há dois mil anos, o cristianismo teve crentes que tentaram ser sábios
usando a religião. Também teve homens que usaram a religião para tentar
ganhar poder. Os segundos, em geral, odeiam os primeiros. Não é por
acaso que estes auto-proclamados defensores políticos e militares da
cristandade rejeitam o Papa Francisco e pelos vistos também o Arcebispo
de Cantuária, como detestam qualquer líder espiritual ou laico que lhes
lembre as suas obrigações morais perante os refugiados, o planeta ou a
humanidade.
Ora, qualquer outra pessoa, mesmo que de outra (ou
nenhuma) religião, tem por seu lado também uma obrigação moral: a de
tentar não confundir qualquer destes três homens com qualquer vestígio
do cristianismo que eles por vezes tentam alegar defender.
----------
* Jornalista português.
Fonte: https://www.publico.pt/2016/12/26/mundo/noticia/a-cristandade-esta-mal-entregue-1756084
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LISTA DE NATAL
-->
Frei Betto*
Não
quero o Papai Noel das promoções comerciais,
quero o Menino nascido esperança
em
um pasto de Belém
Neste
Natal, não quero o Papai Noel das promoções comerciais, das ceias pantagruélicas,
dos presentes caros embrulhados em afetos raros. Quero o Menino nascido
esperança em um pasto de Belém, e Maria a cantar que os abastados serão
despedidos de mãos vazias e os pobres, saciados de bens.
Não
quero o Papai Noel do celofane brilhante das cestas de produtos importados e
das garrafas nas quais os néscios afogam tristezas rotuladas de alegrias. Quero
o Menino palestino em busca de uma terra onde nascer e viver, o Menino judeu
arauto da paz aos homens e mulheres de boa vontade, o Menino poupado da
estupidez das guerras.
Neste
Natal, dispenso abraços protocolares e sorrisos sob medida, sentimentos
retóricos e emoções que encobrem a aridez do coração. Quero o amor sem dor, a
oração só louvor, a fé comungada com sabor de justiça. Não quero presentes dos
ausentes, a litúrgica reverência às mercadorias, a romaria pagã aos templos
consumistas. Quero o pão na boca da criança faminta, o acolhimento aos
refugiados, a paz aos espíritos atribulados, o gozo de contemplar o Invisível.
Neste
Natal, não quero troca de produtos entre mãos que não se abrem em
solidariedade, compaixão e carinho despudorado. Quero o Menino solto no mais
íntimo de mim mesmo, a semear ternura em todos os canteiros em que as pedras
sufocam as flores. Quero o silêncio indevassável do mistério, o canto harmônico
da natureza, a mão que se estende para que o outro se erga, a fraternura de
amigos abençoados pela cumplicidade perene.
Neste
Natal, não me interessam as oscilações dos índices financeiros, as promessas
viciadas dos políticos, os cartões impressos a granel, cheios de colorido e
vazios de originalidade. Quero as evocações mais ternas: o cheiro do café coado
pela avó, o som do sino da matriz, o rádio Philco exalando sabonete Eucalol,
enquanto a babá me via brincar no quintal.
Não
quero as amarguras familiares que se guardam como poeira nas dobras da alma, as
invejas que me alienam de mim mesmo, as ambições que me tornam tristes como as
galinhas, que têm asas e não voam. Quero os joelhos dobrados no átrio da
igreja, a cabeça curvada ao Transcendente, a perplexidade de José diante da
gravidez inusitada de Maria.
Neste
Natal, não irei às ruas febris dos mercadores de bens finitos, não disfarçarei
em algodão a neve que se amontoa em meus dessentimentos, nem prenderei falsas
sinetas no frontispício de minha indiferença. Quero o segredar dos anjos, a
alegria desdentada de um pobre reconhecido em seu direito, a euforia imaculada
de um bebê acolhido em braços amados. Não viajarei para longe de mim mesmo.
Mergulharei no mais profundo de mim, lá onde as palavras se calam e a voz de
Deus se faz ouvir como apelo e desafio.
Neste
Natal, não entupirei o meu verão de castanhas e nozes, panetones e carnes
gordas. Porei sobre a mesa Deus fatiado em pão, a entornar vinho em cálices
alados, e convidarei à festa os famintos de bem-aventuranças. Não rezarei pela
bíblia dos que professam o medo, nem acenderei velas aos guardiões do Inferno.
Não serei o alpinista de cobiças desmedidas, nem o coveiro de utopias
libertárias. Desfraldarei sobre o telhado a bandeira de sonhos inconfessos e
semearei estrelas no jardim de meus encantos, lá onde cultivo essa doce paixão
que me faz sofrer de saudades do que é terno.
---------------
* Frade Dominicano. Escritor.
Fonte: http://oglobo.globo.com/sociedade/lista-de-natal-20689237?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_content=sociedade&utm_campaign=newsdiaria
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A política do cidadão narcisista é a negação do constrangimento do desejo
Luiz Felipe Pondé*
"A ética do cidadão do narcisismo tem seu imperativo categórico cunhado
no culto da forma do eu e do corpo,
jamais na condição de quem se perde
num afeto.
Aliás, a afetividade desse cidadão é chorar
com os próprios
bons sentimentos."
Vivemos um momento suicida. O projeto contemporâneo é realizarmos todos
os nossos desejos sozinhos e deixar como herança três latas de lixo
reciclável como prova de que nosso suicídio foi sustentável. A espécie
optou pelo suicídio como forma de felicidade. Que viva o indivíduo, mas
desapareça a espécie. Sim, digo isso com votos de feliz ano novo.
Será que a espécie sobrevive a esse surto de felicidade individual?
Entenda-me: não acho que haja retorno a formas "regressivas" (como
gostam de falar os deleuzianos) de convívio. Só aconteceria isso se a
riqueza acabasse. O momento suicida é fruto dessa riqueza. Justamente
por isso suspeito que o projeto esteja em curso de forma irreversível e
travestido de uma obsessão incontrolável pelo direito ao narcisismo como
modo empoderado de autonomia. O vazio de afeto como um exemplo tardio
de direitos humanos. Nunca desconfiamos tanto uns dos outros como nessa
era dos "coletivos de arte".
A cultura do narcisismo atingiu seu estágio propositivo, isto é, não se
trata mais de um comportamento patológico, mas sim de um estilo que não
tem medo de dizer seu nome. É uma forma de cidadania.
Fincado na ideia de que o centro da vida é a realização de projetos
individuais sem limites no mundo real, o cidadão do narcisismo assume
que seu imaginário pessoal é o propósito cósmico da Criação –aviso aos
inteligentinhos que uso "Criação" como metáfora aqui.
Engana-se quem pensa que ele não tenha uma política. Ele tem. A política
da negação de qualquer constrangimento do desejo. Engana-se quem
acredita que ele não tenha projetos sociais.
Principalmente aqueles que
servem à própria vaidade sem oferecer qualquer forma de risco concreto,
como apoiar os refugiados sírios na Europa, uma vez que esses refugiados
não morarão na casa dos cidadãos do narcisismo. Cidadãos do narcisismo
adoram crianças da África, principalmente porque estão longe delas.
A arte desse cidadão é qualquer coisa, contanto que ele tenha um gozo
anal em fazê-la. A "libertação da forma", em si um debate estético
consistente, acabou servindo bem a esta forma de cidadania.
A ética do cidadão do narcisismo tem seu imperativo categórico cunhado
no culto da forma do eu e do corpo, jamais na condição de quem se perde
num afeto. Aliás, a afetividade desse cidadão é chorar com os próprios
bons sentimentos.
Há psicanalista por aí que afirma mesmo que esse cidadão é um avanço, na
medida em que não sofre do imaginário de amor que o neurótico sofria. O
cidadão livre do contrato narcísico não ama. Superou esta forma
primitiva de neurose em favor da circulação livre de afetos desconexos.
Por isso é tão sensível aos animais, que nunca põem em xeque o amor.
Formas "pós-modernas" de psicoterapias surgem no mercado dos
consultórios na zona oeste de São Paulo oferecendo novas definições de
psicopatologia. A saúde mental nessa nova forma de cidadania é se amar
acima de tudo e se levar muito a sério sempre.
O cidadão do narcisismo leva a sério afirmações como "procurar a si
mesmo para sempre". Ou "direito à inveja e ao ressentimento como formas
de autonomia". É o cidadão do narcisismo que está por trás das
"revoluções" geradas pelas mídias sociais, paraíso do narcisismo. Risco
zero, como ver a própria morte pela Netflix.
E por que um "momento suicida"? Porque, até ontem, sabia-se que o
narcisismo é uma síndrome de pessoas incapazes de viver por si mesmas,
vampiros da saúde mental alheia, inaptos ao afeto. Sorrisos desatentos
confessam o projeto suicida sem a mínima noção.
Santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.) dizia que a única forma de liberdade
que existe é quando se ama, porque assim saímos da condição de vaidade
em que nos encontramos por conta do pavor do vazio que nos corrói. A
consciência de sermos filhos do nada se impõe na mais tenra infância. O
medo infantil é o olfato deste nada.
Pois então. O momento suicida é aquele em que cidadãos conscientes dos
riscos pelos quais passa o planeta optam pelo narcisismo como forma
avançada de estar no mundo. Esses cidadãos perderam o olfato do nada.
---------------------
* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência.
Imagem: Ricardo Cammarota - Folhapress
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2016/12/1844486-a-politica-do-cidadao-narcisista-e-a-negacao-do-constrangimento-do-desejo.shtml
Viagens fantasmas
Luis Fernando Veríssimo*
Li que o Encouraçado Potemkin é visitado por turistas,
atraídos pelo seu significado histórico. A rebelião dos seus marinheiros
em 1905 foi precursora da revolução comunista que tomaria o poder em
1917, na Rússia. Mas também li que o encouraçado foi capturado e
destruído pelos alemães em 1922 e que o exército branco, que se opunha à
revolução, acabou de desmantelá-lo. O que, então, é visitado,
exatamente? Seria uma reprodução do navio? Muitos dos turistas que
percorrem as famosas caves de Lescaux, na França, não sabem que estão
dentro de réplicas das caves verdadeiras, cujas pinturas nas paredes não
resistiriam ao trânsito de visitantes. Teriam construído um falso
Encouraçado Potemkin para evocar a rebelião?
Romeu e Julieta nunca existiram. Shakespeare se inspirou num poema chamado A trágica história de Romeu e Julieta, de um tal Arthur Brooke, para criar seu desafortunado casal.
A peça se passa em Verona, mas poderia se passar em qualquer outra cidade, italiana ou não, inventada ou não. O que não impediu que a imaginação popular a localizasse numa Verona real e até identificasse o balcão do quarto de Julieta na casa dos Capuletos. Vinha tanta gente olhar o balcão escalado por Romeu para os braços de Julieta, que a prefeitura de Verona resolveu oficializá-lo e garantir sua autenticidade. Afinal, um balcão por qualquer outro nome é um balcão, e que não falta na bela Verona são balcões.
Quem chega a Casablanca, no Marrocos, esperando encontrar o “Rick’s Café Américain” – encontra! Existe um bar chamado “Rick’s Café Casablanca”, que é uma cópia perfeita do café do filme, incluindo um piano da época e um pianista que passa o tempo todo atendendo a pedidos para tocar As time goes by. Humphrey Bogart e Ingrid Bergman não aparecem – o tempo passou para eles –, mas o bar pertence a um grupo chamado “The usual suspects”, uma das frases memoráveis do filme, dita pelo capitão Renault, que em caso de atentados manda prender os suspeitos de sempre.
Uma sugestão para agências de turismo: oferecer viagens fantasmas para lugares que nunca existiram ou não existem mais, ou ainda existem, mas falsificados.
Romeu e Julieta nunca existiram. Shakespeare se inspirou num poema chamado A trágica história de Romeu e Julieta, de um tal Arthur Brooke, para criar seu desafortunado casal.
A peça se passa em Verona, mas poderia se passar em qualquer outra cidade, italiana ou não, inventada ou não. O que não impediu que a imaginação popular a localizasse numa Verona real e até identificasse o balcão do quarto de Julieta na casa dos Capuletos. Vinha tanta gente olhar o balcão escalado por Romeu para os braços de Julieta, que a prefeitura de Verona resolveu oficializá-lo e garantir sua autenticidade. Afinal, um balcão por qualquer outro nome é um balcão, e que não falta na bela Verona são balcões.
Quem chega a Casablanca, no Marrocos, esperando encontrar o “Rick’s Café Américain” – encontra! Existe um bar chamado “Rick’s Café Casablanca”, que é uma cópia perfeita do café do filme, incluindo um piano da época e um pianista que passa o tempo todo atendendo a pedidos para tocar As time goes by. Humphrey Bogart e Ingrid Bergman não aparecem – o tempo passou para eles –, mas o bar pertence a um grupo chamado “The usual suspects”, uma das frases memoráveis do filme, dita pelo capitão Renault, que em caso de atentados manda prender os suspeitos de sempre.
Uma sugestão para agências de turismo: oferecer viagens fantasmas para lugares que nunca existiram ou não existem mais, ou ainda existem, mas falsificados.
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* Jornalista. Escritor.
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a8914988.xml&template=3916.dwt&edition=30341§ion=70
Imagem da Internet: imagem about Rick's Cafe Americain on Pinterest | Casablanca, Casablanca 1942 and Humphrey bogar
domingo, 25 de dezembro de 2016
Seis propostas para 2017
Paulo Gleich*
Atravessado por crises políticas e econômicas, catástrofes humanas e
naturais, 2016 chega ao final marcado pela desesperança. A vinda do novo
ano parece não atenuar esse sentimento, pelo contrário: poucos esperam
que 2017 seja melhor. Apesar de compartilhar da desesperança, resisto a
entregar-me ao apelo do cinismo e do derrotismo, à espera depressiva de
que um meteoro acabe com tudo. Inspirado nas Seis propostas para o
próximo milênio, do escritor italiano Italo Calvino, compus uma pequena
lista para enfrentar o próximo ano:
1) Escuta – Nos habituamos a nos expressarmos, mas cada vez temos menos disposição a dar ouvidos ao que o outro tem a dizer. Vai além de ouvir para, em seguida, nós mesmos falarmos: é um esforço ativo para reconhecer a legitimidade da posição do outro, mesmo – e talvez sobretudo – quando vai de encontro ao que sabemos e pensamos. Escutar implica sempre uma perda, mesmo que mínima, das próprias certezas.
2) Delicadeza – Essa característica, mais frequentemente associada ao feminino, diz da forma como nos apresentamos ao outro. Não se trata de se eximir de manifestar sua posição, mas de como se escolhe colocá-la. Encontrar, a cada situação, da mais banal à mais profunda, a melhor forma de conectar com o outro, é um desafio diante da indiferença e da violência que marcam os laços na atualidade.
3) Compaixão – Considerada uma virtude em muitas religiões, não é ter pena dos menos favorecidos, em uma atitude paternalista e arrogante: coloca-nos o desafio de entender que o outro carrega uma dor da qual pouco sabemos. Se temos uma relação um pouco menos defensiva com nossa própria fragilidade, podemos também aceitar a do próximo – mesmo que se manifeste, muitas vezes, de formas que não compreendemos ou até repudiamos.
4) Leitura – Hiperconectados, nos consideramos mais bem informados do que nunca. O apelo ao atual, porém, nos faz esquecer que a humanidade tem uma caminhada milenar, cheia de conquistas, mas também de horrores. Debruçar-nos sobre os textos que nos constituíram, filosóficos, históricos ou literários, nos ajuda a colocar em perspectiva o que, presos no presente, pode nos paralisar em perpétuo espanto.
5) Reflexão – Nos acostumamos à rapidez nos deslocamentos, no acesso aos bens, na comunicação, nas decisões. Na premência de estarmos à altura dessa velocidade, nos sentimos convocados a responder de imediato aos estímulos, o que pode nos deixar presos às paixões, guiando nossas ações pelo que sentimos no instante. Dedicar tempo ao exercício do pensamento antes de agir é uma tarefa preciosa para não ficar preso à lógica da urgência.
6) Humor – Somos campeões de memes, o que não necessariamente nos faz bem-humorados. É fácil zombar da desgraça alheia; difícil é rir das próprias vergonhas e fracassos dos quais, examinando bem, todos temos, individual e coletivamente, uma bela coleção. O bom humor não é resignado e cínico, mas companheiro indispensável da existência – sobretudo em tempos desesperançados e sombrios.
Para 2017, não desejo que encontremos uma ilusória esperança. Desejo sim que possamos encontrar, sozinhos e acompanhados, formas criativas de fazer frente aos desafios que, cotidianamente, a desesperança tem nos colocado.
---------------
*JORNALISTA E PSICANALISTA. ESCREVE MENSALMENTE
1) Escuta – Nos habituamos a nos expressarmos, mas cada vez temos menos disposição a dar ouvidos ao que o outro tem a dizer. Vai além de ouvir para, em seguida, nós mesmos falarmos: é um esforço ativo para reconhecer a legitimidade da posição do outro, mesmo – e talvez sobretudo – quando vai de encontro ao que sabemos e pensamos. Escutar implica sempre uma perda, mesmo que mínima, das próprias certezas.
2) Delicadeza – Essa característica, mais frequentemente associada ao feminino, diz da forma como nos apresentamos ao outro. Não se trata de se eximir de manifestar sua posição, mas de como se escolhe colocá-la. Encontrar, a cada situação, da mais banal à mais profunda, a melhor forma de conectar com o outro, é um desafio diante da indiferença e da violência que marcam os laços na atualidade.
3) Compaixão – Considerada uma virtude em muitas religiões, não é ter pena dos menos favorecidos, em uma atitude paternalista e arrogante: coloca-nos o desafio de entender que o outro carrega uma dor da qual pouco sabemos. Se temos uma relação um pouco menos defensiva com nossa própria fragilidade, podemos também aceitar a do próximo – mesmo que se manifeste, muitas vezes, de formas que não compreendemos ou até repudiamos.
4) Leitura – Hiperconectados, nos consideramos mais bem informados do que nunca. O apelo ao atual, porém, nos faz esquecer que a humanidade tem uma caminhada milenar, cheia de conquistas, mas também de horrores. Debruçar-nos sobre os textos que nos constituíram, filosóficos, históricos ou literários, nos ajuda a colocar em perspectiva o que, presos no presente, pode nos paralisar em perpétuo espanto.
5) Reflexão – Nos acostumamos à rapidez nos deslocamentos, no acesso aos bens, na comunicação, nas decisões. Na premência de estarmos à altura dessa velocidade, nos sentimos convocados a responder de imediato aos estímulos, o que pode nos deixar presos às paixões, guiando nossas ações pelo que sentimos no instante. Dedicar tempo ao exercício do pensamento antes de agir é uma tarefa preciosa para não ficar preso à lógica da urgência.
6) Humor – Somos campeões de memes, o que não necessariamente nos faz bem-humorados. É fácil zombar da desgraça alheia; difícil é rir das próprias vergonhas e fracassos dos quais, examinando bem, todos temos, individual e coletivamente, uma bela coleção. O bom humor não é resignado e cínico, mas companheiro indispensável da existência – sobretudo em tempos desesperançados e sombrios.
Para 2017, não desejo que encontremos uma ilusória esperança. Desejo sim que possamos encontrar, sozinhos e acompanhados, formas criativas de fazer frente aos desafios que, cotidianamente, a desesperança tem nos colocado.
---------------
*JORNALISTA E PSICANALISTA. ESCREVE MENSALMENTE
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a8879482.xml&template=3898.dwt&edition=30334§ion=4572 - 24/12/2016 e 25/12/2016 | N° 18723
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O custo da ignorância
Francisco Marshall*
“Se você acha que conhecimento custa caro, tente ignorância.”
Atribuída erroneamente a Abraham Lincoln, essa sentença já teve sua origem averiguada, mas seu conteúdo, tão singelo e poderoso, permanece desdenhado mesmo por quem se contenta com frases prontas. As atitudes do governo do Estado do RS, recém concluídas com a extinção de patrimônio cultural substantivo, são investimento sério na ignorância, e merecem o devido réquiem.
Patrimônios científicos e culturais não são construídos instantaneamente nem podem ser adquiridos no mercado. São o resultado do esforço de várias gerações, com finalidades rigorosas, por meio de coleções, documentos, históricos, arquivos, análises, publicações, seminários e recursos humanos de alto nível. Como disse meu colega Jorge Alberto Quillfeldt, neurocientista (UFRGS): o encerramento da Fundação Zoobotânica “foi o maior crime da história política do estado, um completo desastre que nos envergonhará por décadas”. Note-se, neste caso, o momento em que vivemos: de agudas transformações climáticas, em que o conhecimento do meio natural e a realização de análises comparativas se torna parte da necessidade de sobrevivência da espécie, de resiliência das cidades, de reconstrução de nossa atitude no mundo, em favor de uma ética sustentável. O RS faz sua parte pondo no lixo patrimônio científico precioso: estupidez máxima.
Vale o mesmo para as demais fundações ora extintas apressadamente, em especial a FEE e a Fundação Piratini (TVE e FM Cultura). São órgãos vitais. O estado extirpa cérebro e coração, remove inteligência e sensibilidade, e pensa com isso fazer algo novo. Faz, sim. Novo grau da barbárie. Novo cenário de miséria. A lucidez do pensamento econômico e o valor inestimável dos bens simbólicos (educação e cultura) são riscados em conta de boteco, e perdemos patrimônio e potência. Sabemos que estas despesas (baixas) não são a causa estrutural do déficit do Estado, nem farão cócegas na gestão do passivo. A liderança nos leva para baixo, e produz violência, angústia e nenhuma solução.
Sabemos quem são os culpados por este atentado. Não faltou alerta, de gente esclarecida e bem intencionada. Por que avançaram nesta ação maligna? No fundo, a autoria é de uma ideologia fácil, predileta de quem troca o estudo e o pensamento pela ambição política, para cair nas graças de empresários tacanhos, de midiocratas míopes e de zumbis com teclado e título de eleitor: o falso liberalismo que se propaga como praga desde os anos 1990, que hostiliza o Estado e sonha com o mito de que chegaremos à redenção econômica e política com o simples esvaziamento do estado de bem-estar social. Aos poucos, tornou-se meta produzir o oposto, mal-estar social, por vingança contra políticas que mitigam o crônico problema da desigualdade. Os embriagados por esta ideologia acreditam-se virtuosos: austeros e modernos, combatem enganos e trevas acumulados como privilégios e despesas insustentáveis. Atacam, então, como bando de bárbaros, sem diálogo, e impõem pacotes para massas de manobra no parlamento, e este poder abre mão de ser local de debates para agir como patrola do poder palaciano. O alvo massacrado tem nome extenso: sociedade, passado, presente e futuro.
A justificativa para tanta irracionalidade vem desta ideologiazinha de varejo, que faz parecer que a insensatez tem algum sentido. Se tivessem envergadura intelectual, política e moral, abririam o debate em torno das reformas, associando inteligências e parceiros na imperativa e urgente meta de sanear o Estado. Incapazes, restauram a questão que não conseguem responder, e só pioram a cada dia: como sairemos dessa crise?
-------------------
*HISTORIADOR, ARQUEÓLOGO E PROFESSOR DA UFRGS.ESCREVE MENSALMENTE
Atribuída erroneamente a Abraham Lincoln, essa sentença já teve sua origem averiguada, mas seu conteúdo, tão singelo e poderoso, permanece desdenhado mesmo por quem se contenta com frases prontas. As atitudes do governo do Estado do RS, recém concluídas com a extinção de patrimônio cultural substantivo, são investimento sério na ignorância, e merecem o devido réquiem.
Patrimônios científicos e culturais não são construídos instantaneamente nem podem ser adquiridos no mercado. São o resultado do esforço de várias gerações, com finalidades rigorosas, por meio de coleções, documentos, históricos, arquivos, análises, publicações, seminários e recursos humanos de alto nível. Como disse meu colega Jorge Alberto Quillfeldt, neurocientista (UFRGS): o encerramento da Fundação Zoobotânica “foi o maior crime da história política do estado, um completo desastre que nos envergonhará por décadas”. Note-se, neste caso, o momento em que vivemos: de agudas transformações climáticas, em que o conhecimento do meio natural e a realização de análises comparativas se torna parte da necessidade de sobrevivência da espécie, de resiliência das cidades, de reconstrução de nossa atitude no mundo, em favor de uma ética sustentável. O RS faz sua parte pondo no lixo patrimônio científico precioso: estupidez máxima.
Vale o mesmo para as demais fundações ora extintas apressadamente, em especial a FEE e a Fundação Piratini (TVE e FM Cultura). São órgãos vitais. O estado extirpa cérebro e coração, remove inteligência e sensibilidade, e pensa com isso fazer algo novo. Faz, sim. Novo grau da barbárie. Novo cenário de miséria. A lucidez do pensamento econômico e o valor inestimável dos bens simbólicos (educação e cultura) são riscados em conta de boteco, e perdemos patrimônio e potência. Sabemos que estas despesas (baixas) não são a causa estrutural do déficit do Estado, nem farão cócegas na gestão do passivo. A liderança nos leva para baixo, e produz violência, angústia e nenhuma solução.
Sabemos quem são os culpados por este atentado. Não faltou alerta, de gente esclarecida e bem intencionada. Por que avançaram nesta ação maligna? No fundo, a autoria é de uma ideologia fácil, predileta de quem troca o estudo e o pensamento pela ambição política, para cair nas graças de empresários tacanhos, de midiocratas míopes e de zumbis com teclado e título de eleitor: o falso liberalismo que se propaga como praga desde os anos 1990, que hostiliza o Estado e sonha com o mito de que chegaremos à redenção econômica e política com o simples esvaziamento do estado de bem-estar social. Aos poucos, tornou-se meta produzir o oposto, mal-estar social, por vingança contra políticas que mitigam o crônico problema da desigualdade. Os embriagados por esta ideologia acreditam-se virtuosos: austeros e modernos, combatem enganos e trevas acumulados como privilégios e despesas insustentáveis. Atacam, então, como bando de bárbaros, sem diálogo, e impõem pacotes para massas de manobra no parlamento, e este poder abre mão de ser local de debates para agir como patrola do poder palaciano. O alvo massacrado tem nome extenso: sociedade, passado, presente e futuro.
A justificativa para tanta irracionalidade vem desta ideologiazinha de varejo, que faz parecer que a insensatez tem algum sentido. Se tivessem envergadura intelectual, política e moral, abririam o debate em torno das reformas, associando inteligências e parceiros na imperativa e urgente meta de sanear o Estado. Incapazes, restauram a questão que não conseguem responder, e só pioram a cada dia: como sairemos dessa crise?
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*HISTORIADOR, ARQUEÓLOGO E PROFESSOR DA UFRGS.ESCREVE MENSALMENTE
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a8879476.xml&template=3898.dwt&edition=30334§ion=4572 - 24/12/2016 e 25/12/2016 | N° 18723
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OS MAGOS
Luis Fernando Veríssimo*
“E, tendo nascido Jesus em Belém da Judeia no tempo do
rei Herodes, eis que uns magos vieram do Oriente a Jerusalém, dizendo:
‘Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? Porque vimos a sua
estrela no Oriente e viemos adorá-lo’. E o rei Herodes, ouvindo isto,
perturbou-se, e toda Jerusalém com ele. E congregados todos os príncipes
dos sacerdotes e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de
nascer o Cristo. E eles lhe disseram: ‘Em Belém da Judeia, porque assim
está escrito pelo profeta. E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és
a menor entre as capitais de Judá, porque de ti sairá o Guia que há de
apascentar o povo de Israel’. Então Herodes, chamando secretamente os
magos, inquiriu exatamente deles acerca do tempo em que a estrela lhes
apareceria. E, enviando-os a Belém, disse: ‘Ide, e perguntai
diligentemente pelo menino, e quando o achardes, participai-me, para que
também eu vá e o adore’. E, tendo eles ouvido o rei, partiram, e eis
que a estrela que tinham visto no Oriente ia adiante deles, até que,
chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino. E, vendo eles a
estrela, alegraram-se muito. E, entrando na casa, acharam o menino com
Maria sua mãe e, prostrando-se, lhe ofertaram dádivas: ouro, incenso e
mirra. E, sendo por divina revelação avisados em sonhos para que não
voltassem para junto de Herodes, partiram para sua terra por outro
caminho.”
Até aí, é o que conta a Bíblia. Algumas dúvidas. Dá-se pouca atenção à visita que os magos fazem a Herodes antes de procurarem o menino, tanto que, em encenações do episódio, Herodes nunca é mencionado. Na Bíblia, está escrito que Herodes chamou os magos “secretamente” à sua presença, o que já sugere que sua intenção não era apenas conversarem numa boa. Também está escrito que Herodes “perturbou-se” com a notícia do nascimento de um futuro rei dos judeus. O que não o impediu de, cinicamente, pedir que os Magos o informassem quando tivessem descoberto o Cristo, para também ir adorá-lo.
Por que Herodes não mandou que os Magos fossem seguidos até avistarem a estrela que mostraria o local do nascimento do Cristo? Especulação: na sua conversa secreta com os Magos, Herodes teria pedido que eles matassem o recém-nascido, o que o pouparia de mandar matar todos os recém-nascidos em Belém. Apenas um morto impediria a morte de milhares. Com uma punhalada certeira, os Magos salvariam a vida de muitos inocentes. E Herodes só esperaria a notícia da morte do Cristo para festejar.
A caminho do local que a estrela do Oriente apontava, os três magos teriam discutido quem empunharia o punhal que mudaria a história do mundo. O golpe seria dado antes ou depois da oferta das dádivas? Mas, chegando à manjedoura e vendo o menino no colo de Maria, apiedaram-se dele, prostraram-se e ofertaram o ouro, o incenso e a mirra. E naquela noite sonharam que Herodes os perseguia por o terem traído e partiram para sua terra por outro caminho.
A Bíblia não diz mais nada sobre os reis magos. Não se sabe se Herodes os alcançou para vingar-se da traição. Sabe-se, isto sim, que Herodes mandou matar todos os meninos de Belém.
Até aí, é o que conta a Bíblia. Algumas dúvidas. Dá-se pouca atenção à visita que os magos fazem a Herodes antes de procurarem o menino, tanto que, em encenações do episódio, Herodes nunca é mencionado. Na Bíblia, está escrito que Herodes chamou os magos “secretamente” à sua presença, o que já sugere que sua intenção não era apenas conversarem numa boa. Também está escrito que Herodes “perturbou-se” com a notícia do nascimento de um futuro rei dos judeus. O que não o impediu de, cinicamente, pedir que os Magos o informassem quando tivessem descoberto o Cristo, para também ir adorá-lo.
Por que Herodes não mandou que os Magos fossem seguidos até avistarem a estrela que mostraria o local do nascimento do Cristo? Especulação: na sua conversa secreta com os Magos, Herodes teria pedido que eles matassem o recém-nascido, o que o pouparia de mandar matar todos os recém-nascidos em Belém. Apenas um morto impediria a morte de milhares. Com uma punhalada certeira, os Magos salvariam a vida de muitos inocentes. E Herodes só esperaria a notícia da morte do Cristo para festejar.
A caminho do local que a estrela do Oriente apontava, os três magos teriam discutido quem empunharia o punhal que mudaria a história do mundo. O golpe seria dado antes ou depois da oferta das dádivas? Mas, chegando à manjedoura e vendo o menino no colo de Maria, apiedaram-se dele, prostraram-se e ofertaram o ouro, o incenso e a mirra. E naquela noite sonharam que Herodes os perseguia por o terem traído e partiram para sua terra por outro caminho.
A Bíblia não diz mais nada sobre os reis magos. Não se sabe se Herodes os alcançou para vingar-se da traição. Sabe-se, isto sim, que Herodes mandou matar todos os meninos de Belém.
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*Jornalista. Escritor.
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a8873684.xml&template=3916.dwt&edition=30334§ion=4572 - 24/12/2016 e 25/12/2016 | N° 18723
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A PESTE AZUL
Antonio Prata*
Um de nós elogiou o hambúrguer, o outro comentou sobre
as carnes que tinham surgido nos últimos anos, o papo evoluiu pras
técnicas de engorda do gado (no pasto ou em confinamento), o termo
“confinamento” trouxe um certo desconforto com nosso hambúrguer e o
Fabrício falou “Ah, vamos mudar de assunto, minha vida já é complicada o
suficiente, não quero agora, no dia 20 de dezembro, ter que começar a
sofrer por todas as vacas do mundo”.
Ficamos um tempo em silêncio, foquei no hambúrguer, na tarde ensolarada e nas pessoas que, à nossa volta, também faziam daquele almoço de terça- feira uma minicelebração de fim de ano, embaladas por essa brisa que refresca dezembro, vinda ali de janeiro, conforme nos aproximamos do Natal. A garota do caixa, conversando com o garçom, deu uma risada. Um barbudo desembrulhou um disco de vinil. Um careca chegou numa mesa grande e foi recebido com pompa e circunstância: “Pereba! Pereba! Pereba!”.
Eu já estava quase ouvindo o mar quebrando na praia em algum ponto da Simão Álvares quando o Fabrício me trouxe de volta pro concreto: “A gente vive uma época muito religiosa.”. Concordei: “O terrorismo islâmico, a bancada da Bíblia, o Crivell...”, “Não”, ele me cortou, “Isso também, mas não tô falando de Deus. Agora tudo é religião. A religião vegana e a religião carnívora. A religião do carro e a religião da bicicleta, a religião da amamentação e a religião da cesariana, a religião da Lava-Jato e do ‘Volta, Dilma!’, todo mundo é fanático e, se você discorda um tiquinho, você é um herege que tem que ser bloqueado da vida da pessoa, que nem no Facebook”.
Quando ele acabou de falar, lembrei do filme O sétimo selo, do Bergman. O Facebook me pareceu muito semelhante à Europa do século 14, devastada pela peste negra: cada post uma cruz erguida por um messias instantâneo, pequenas seitas de “likes” e “comments” atrás, vagando pelas planícies azuis das timelines, comungando a iluminação do dia. “Goiabada no temaki, não!”, “Se o seu filho usa fralda descartável, você é um assassino de golfinhos!”, “Eis aqui o que eu acho sobre o prepúcio nojento do terceiro pinto no clipe ridículo da Clarice Falcão”. Uma diferença pras seitas do século 14 é que nas mídias sociais os chicotes são raramente usados para a autopenitência; costumam castigar mais o lombo alheio.
Antes da sobremesa já estávamos enredados na velha discussão de boteco do século 21: a humanidade sempre foi esse lixo, e as redes sociais só revelaram o chorume, ou o ódio e a intolerância aumentaram nos últimos anos? Não sei, mas tenho a sensação de que colaborou pra pindaíba termos parado de engordar as crianças soltas nos pastos e passado a criá-las em confinamento: escola, condomínio, inglês, clube, iPad. Em 1985, quando ainda existia uma instância muito louca, libertária, diversa e apartidária chamada “rua”, eu passava uma hora no amigo judeu, outra na casa da amiga com a avó janista, comia sal no baio macrobiótico e bebia no açude de groselha Milani. “Tolerância” não era um conceito ensinado na escola, mas um pré-requisito básico para você conseguir brincar de esconde-esconde com 15 crianças diferentes.
Olho a garota do caixa rindo com o garçom, o barbudo do vinil tomando sua cerveja, o Pereba contando uma história na mesa grande; faz sol lá fora e um jacarandá-mimoso estende sua sombra para dentro do restaurante. Não é possível que todo mundo se odeie tanto.
Ficamos um tempo em silêncio, foquei no hambúrguer, na tarde ensolarada e nas pessoas que, à nossa volta, também faziam daquele almoço de terça- feira uma minicelebração de fim de ano, embaladas por essa brisa que refresca dezembro, vinda ali de janeiro, conforme nos aproximamos do Natal. A garota do caixa, conversando com o garçom, deu uma risada. Um barbudo desembrulhou um disco de vinil. Um careca chegou numa mesa grande e foi recebido com pompa e circunstância: “Pereba! Pereba! Pereba!”.
Eu já estava quase ouvindo o mar quebrando na praia em algum ponto da Simão Álvares quando o Fabrício me trouxe de volta pro concreto: “A gente vive uma época muito religiosa.”. Concordei: “O terrorismo islâmico, a bancada da Bíblia, o Crivell...”, “Não”, ele me cortou, “Isso também, mas não tô falando de Deus. Agora tudo é religião. A religião vegana e a religião carnívora. A religião do carro e a religião da bicicleta, a religião da amamentação e a religião da cesariana, a religião da Lava-Jato e do ‘Volta, Dilma!’, todo mundo é fanático e, se você discorda um tiquinho, você é um herege que tem que ser bloqueado da vida da pessoa, que nem no Facebook”.
Quando ele acabou de falar, lembrei do filme O sétimo selo, do Bergman. O Facebook me pareceu muito semelhante à Europa do século 14, devastada pela peste negra: cada post uma cruz erguida por um messias instantâneo, pequenas seitas de “likes” e “comments” atrás, vagando pelas planícies azuis das timelines, comungando a iluminação do dia. “Goiabada no temaki, não!”, “Se o seu filho usa fralda descartável, você é um assassino de golfinhos!”, “Eis aqui o que eu acho sobre o prepúcio nojento do terceiro pinto no clipe ridículo da Clarice Falcão”. Uma diferença pras seitas do século 14 é que nas mídias sociais os chicotes são raramente usados para a autopenitência; costumam castigar mais o lombo alheio.
Antes da sobremesa já estávamos enredados na velha discussão de boteco do século 21: a humanidade sempre foi esse lixo, e as redes sociais só revelaram o chorume, ou o ódio e a intolerância aumentaram nos últimos anos? Não sei, mas tenho a sensação de que colaborou pra pindaíba termos parado de engordar as crianças soltas nos pastos e passado a criá-las em confinamento: escola, condomínio, inglês, clube, iPad. Em 1985, quando ainda existia uma instância muito louca, libertária, diversa e apartidária chamada “rua”, eu passava uma hora no amigo judeu, outra na casa da amiga com a avó janista, comia sal no baio macrobiótico e bebia no açude de groselha Milani. “Tolerância” não era um conceito ensinado na escola, mas um pré-requisito básico para você conseguir brincar de esconde-esconde com 15 crianças diferentes.
Olho a garota do caixa rindo com o garçom, o barbudo do vinil tomando sua cerveja, o Pereba contando uma história na mesa grande; faz sol lá fora e um jacarandá-mimoso estende sua sombra para dentro do restaurante. Não é possível que todo mundo se odeie tanto.
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* Escritor.
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a8882988.xml&template=3916.dwt&edition=30334§ion=3593
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ESSAS DATAS
Lya Luft*
Nessas datas como Natal, virada de ano e outras, muitos
têm olhos mais brilhantes e se sentem mais contentes – ou porque sua
crença religiosa lhes confere isso, ou porque vão reunir pessoas amadas,
talvez a família ou parte dela que esteja acessível, porque vão dar uma
lembrança especial ao seu amor, ou simplesmente porque não dá para
viver sempre angustiado.
Nessas datas, eu às vezes decido não escrever sobre elas. Mas acabo escrevendo. Bobagem minha, porque sempre há o que partilhar, ainda que sejam dúvidas. Por que, por exemplo, considerar datas especiais como farsa porque às vezes aproximam pessoas que nem se gostam, ou desculpam em tantas o frenesi do consumo que as deixa endividadas por todo o ano seguinte?
Essas datas não precisam ser festivais de consumismo, especialmente nesta fase de empobrecimento de quase todo mundo. Mesmo quem há alguns meses podia viver sem preocupação (desde que não cometesse excentricidades), é hora de calcular, encolher, recolher grandes impulsos. Passamos dos generosos presentes, dados e recebidos, às “lembranças” – não menos amorosas, pois revelam: “Não posso mais tanto, mas ainda posso te mostrar, lembrar o quanto és especial para mim”.
Essas datas podem ser aprendizado de economia e de afeto. Aprendemos no bolso e no coração que dinheiro não é tudo. É importante fator de segurança, dignidade e liberdade, mas tudo bastante relativo: não nos confere nenhuma nobreza, nem direitos, nem grandeza, nem, menos ainda, isso que chamamos felicidade. Acredito que muitas pessoas bem modestas têm mais chance de se sentirem amadas, acompanhadas, contentes: porque a união as mantém de pé, porque a proximidade, que de um lado propicia mais conflitos, de outro garante abraço e escuta ou um prato de comida compartilhado.
Talvez as épocas de mais penúria sejam boas para nos ajudar a reavaliar isso que chamamos “valores”, palavra que tantos pronunciam de boca cheia e coração vazio, cabeça mais ainda. O que mais vale? O carrão novo ou o filho encaminhado na vida, decente e ainda entusiasmado? O resort nas Bahamas ou poder pagar as prestações da casa modesta mas nossa, e aconchegante? Ganhar na Mega Sena ou recuperar a saúde que parecia perdida? Reencontrar o amigo que se afastou (e nem sabemos por quê), ver emoção brilhando nos olhos das pessoas queridas, só porque estamos juntos, esquecendo por algumas horas as rivalidades, as infantilidades, os mal-entendidos e os desentendimentos – e porque afinal ainda estamos aqui, firmes e atentos?
Gosto dessas datas que muitos dizem detestar: aquele telefonema, aquele recado na internet, aquela visita inesperada, aquela boa conversa frente a frente, lado a lado (se filhos ou netos, parece que ontem ainda estavam em nosso colo, mas passam o braço em nossos ombros, nós menores que ele ou ela). Se parceiro ou parceira, renova-se o calor de um afeto talvez antigo.
Essas datas são ainda mais especiais em tempos preocupantes aqui e pelo mundo. Que o Natal nos dê conforto, calor na alma, renovadas risadas, conversas jogadas fora, simples alegria de escutarmos nossas mútuas vozes, e olharmos nos olhos uns dos outros – ou, para quem estiver muito, muito longe, esse telefonema em que se brinca, pra disfarçar na voz a mal contida emoção.
Nessas datas, eu às vezes decido não escrever sobre elas. Mas acabo escrevendo. Bobagem minha, porque sempre há o que partilhar, ainda que sejam dúvidas. Por que, por exemplo, considerar datas especiais como farsa porque às vezes aproximam pessoas que nem se gostam, ou desculpam em tantas o frenesi do consumo que as deixa endividadas por todo o ano seguinte?
Essas datas não precisam ser festivais de consumismo, especialmente nesta fase de empobrecimento de quase todo mundo. Mesmo quem há alguns meses podia viver sem preocupação (desde que não cometesse excentricidades), é hora de calcular, encolher, recolher grandes impulsos. Passamos dos generosos presentes, dados e recebidos, às “lembranças” – não menos amorosas, pois revelam: “Não posso mais tanto, mas ainda posso te mostrar, lembrar o quanto és especial para mim”.
Essas datas podem ser aprendizado de economia e de afeto. Aprendemos no bolso e no coração que dinheiro não é tudo. É importante fator de segurança, dignidade e liberdade, mas tudo bastante relativo: não nos confere nenhuma nobreza, nem direitos, nem grandeza, nem, menos ainda, isso que chamamos felicidade. Acredito que muitas pessoas bem modestas têm mais chance de se sentirem amadas, acompanhadas, contentes: porque a união as mantém de pé, porque a proximidade, que de um lado propicia mais conflitos, de outro garante abraço e escuta ou um prato de comida compartilhado.
Talvez as épocas de mais penúria sejam boas para nos ajudar a reavaliar isso que chamamos “valores”, palavra que tantos pronunciam de boca cheia e coração vazio, cabeça mais ainda. O que mais vale? O carrão novo ou o filho encaminhado na vida, decente e ainda entusiasmado? O resort nas Bahamas ou poder pagar as prestações da casa modesta mas nossa, e aconchegante? Ganhar na Mega Sena ou recuperar a saúde que parecia perdida? Reencontrar o amigo que se afastou (e nem sabemos por quê), ver emoção brilhando nos olhos das pessoas queridas, só porque estamos juntos, esquecendo por algumas horas as rivalidades, as infantilidades, os mal-entendidos e os desentendimentos – e porque afinal ainda estamos aqui, firmes e atentos?
Gosto dessas datas que muitos dizem detestar: aquele telefonema, aquele recado na internet, aquela visita inesperada, aquela boa conversa frente a frente, lado a lado (se filhos ou netos, parece que ontem ainda estavam em nosso colo, mas passam o braço em nossos ombros, nós menores que ele ou ela). Se parceiro ou parceira, renova-se o calor de um afeto talvez antigo.
Essas datas são ainda mais especiais em tempos preocupantes aqui e pelo mundo. Que o Natal nos dê conforto, calor na alma, renovadas risadas, conversas jogadas fora, simples alegria de escutarmos nossas mútuas vozes, e olharmos nos olhos uns dos outros – ou, para quem estiver muito, muito longe, esse telefonema em que se brinca, pra disfarçar na voz a mal contida emoção.
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* ESCRITORA
FONTE: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a8881035.xml&template=3916.dwt&edition=30334§ion=70
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