Por: Patricia Fachin | 24 Fevereiro 2020
Nos últimos 20, 30 anos, os
sociólogos brasileiros estiveram distraídos
e “não prestaram atenção na direção em que as mudanças estavam
acontecendo, porque achavam que elas estavam indo na direção contrária à
da que se viu depois”, diz o sociólogo
José de Souza Martins.
Mais recentemente, diante de uma “mudança brutal na sociedade
brasileira”, muitos ficaram surpresos, quando não havia razões para
surpresas.
De acordo com o professor
Martins, a distração dos sociólogos brasileiros com os rumos do país sinaliza um outro problema: a
invasão ideológica neutralizou a ciência. “Houve uma
ideologização da produção do conhecimento sociológico, aquela coisa do
politicamente correto, a coisa do engajamento. Mas a prioridade de qualquer
trabalho sociológico não é nem engajamento nem o politicamente correto. O
sociólogo tem
que ser objetivo; esse é um princípio básico da ciência. Houve muita
condescendência com esse voluntarismo político que foi muito marcante no
Brasil, e que produziu análises que não servem para nada no fim das contas”, critica.
Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à
IHU On-Line na última terça-feira, 03-09-2019, quando esteve na
Unisinos ministrando a aula magna dos
20 anos do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, cujo título foi “
O Brasil ideológico e desatento: Mudanças sociais e políticas e uma nova agenda de prioridades temáticas da sociologia”,
José de Souza Martins explica a importância do
método científico
para fazer ciência e sugere um retorno aos clássicos. “O que acho que
houve a partir de 1964 foi que as pessoas perderam a perspectiva do
método, as ciências sociais e a sociologia se expandiram pelo Brasil e
se passou a fazer sociologia imaginando que, usando conceitos, se faz
ciência. A ciência não é feita de conceitos. Conceitos são muletas que
usamos para ir demarcando o terreno da análise. Mas a questão central é a
do método, do método lógico, do método de explicação conectado com o
método de investigação”.
Ele também reflete o impacto das ideologias nas resoluções dos problemas sociais, como o da
questão agrária,
que não se modificou. “A atualização da minha interpretação da questão
agrária já está feita, porque a questão agrária não se modificou depois
disso, ela parou ali, isto é, houve uma derrota clara das lutas
populares, uma acomodação e, portanto, nenhuma novidade aconteceu depois
disso”, afirma.
José de Souza Martins durante a Aula Magna (Foto: Frame do Youtube)
José de Souza Martins é graduado em Ciências
Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo -
USP. Foi professor-visitante da Universidade da Flórida e da
Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo
Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998
a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP. Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (São Paulo: Paulos Editora, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (São Paulo: Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (São Paulo: Editora Contexto, 2015) e Do PT das lutas sociais ao PT do poder (São Paulo: Editora Contexto, 2016).
A entrevista a seguir foi revisada pelo entrevistado após a publicação da primeira versão, publicada em 09-09-2019.
Confira a entrevista.
José de Souza Martins – Eu faço uma crítica a uma certa distração dos
sociólogos brasileiros,
que nos últimos 20, 30 anos, não prestaram atenção na direção em que as
mudanças estavam acontecendo, porque achavam que elas estavam indo na
direção contrária à de que se viu depois.
IHU On-Line – Em que sentido especificamente?
José de Souza Martins – O Brasil não foi na direção suposta pelos governos e muito menos pelos sociólogos e, de repente, há uma mudança brutal na sociedade brasileira
e fica todo mundo surpreso. Surpreso com o quê? Não há que ficar
surpreso; significa que o pessoal estava distraído. Então, faço a
crítica da distração e da falta de prontidão dos sociólogos brasileiros, de uma certa vulnerabilidade ao que parece, mais do que aquilo que é. Isso não é bom para um sociólogo. O sociólogo não pode fazer isso.
IHU On-Line – Nem os jornalistas.
José de Souza Martins – Sim, mas o sociólogo menos,
porque o jornalista sempre tem a desculpa de que as notícias mudam de um
dia para o outro. Mas os sociólogos não podem dizer isso de jeito
nenhum.
IHU On-Line – Por que o senhor avalia que os sociólogos estavam distraídos nos últimos anos? Identifica alguma razão?
José de Souza Martins – Houve uma ideologização da produção do conhecimento sociológico,
aquela coisa do politicamente correto, a coisa do engajamento. Mas a
prioridade de qualquer trabalho sociológico não é nem engajamento nem o
politicamente correto, da ilusória certeza na linearidade do processo
histórico. O sociólogo tem que ser objetivo; esse é um princípio básico
da ciência. Houve muita condescendência com esse voluntarismo político
que foi muito marcante no Brasil, e que produziu análises que não servem para nada no fim das contas.
IHU On-Line – A sua crítica se estende aos últimos 20, 30
anos. Então, ela não diz respeito somente aos sociólogos ideólogos do
PT? O senhor está falando de um processo que iniciou antes?
José de Souza Martins – Estou falando também deles.
Claro que a sociologia em todos os países e em todas as sociedades
reflete muito o que aquela sociedade é e as dificuldades pelas quais ela
está passando. No
Brasil, a sociologia acadêmica não nasce com
Gilberto Freyre, mas com a missão francesa que funda a
Universidade de São Paulo e nos traz padrões de trabalho científico. O primeiro professor de sociologia da USP foi
[Claude] Lévi-Strauss, que depois se tornou um etnólogo famoso. Depois veio o
Roger Bastide. Todos eles vieram para o Brasil para escapar do que estava acontecendo na Europa
: não só na questão política
stricto sensu - também por isso -, mas para escapar do racionalismo exacerbado, da ideia de que a
razão explica tudo, de que tudo se resume nela. Eles sabiam que havia lugares no mundo, como a
África e a
América Latina, em que a razão não reinava. Era residual e adjetiva, como continua sendo.
Bastide era protestante, calvinista, de uma família de sobreviventes da
Noite de São Bartolomeu. Ele veio para o Brasil para estudar a
cultura negra, o
candomblé, e se tornou filho de santo para poder entrar nesse universo. Ele faz uma
sociologia muito criativa parceira da antropologia.
Durante muito tempo a sociologia no
Brasil foi uma sociologia como que voltada para entender os bárbaros e
civilizá-los - bárbaros eu é que estou falando -, mas para compreender o
homem simples, primeiramente. A ideia era fazer da sociologia um instrumento de mudança social
– ela foi introduzida para formar professores para a escola primária -,
uma ponte entre pessoas que estavam à margem da sociedade e as
conquistas da sociedade moderna, como o desenvolvimento industrial, por
exemplo. A sociologia no Brasil se preocupou, durante muito tempo com as
chamadas resistências sociais à mudança.
No fim dos anos 50, começo dos anos
60, quando me tornei aluno da universidade, essa perspectiva era
dominante e aprendíamos sociologia em função disso. Durante o período em
que eu estava no curso, aconteceu uma virada, que foi a da influência
do nacional desenvolvimentismo, expressão do projeto de nação do getulismo e do juscelinismo, expressos em obras de autores como Roberto Símonsen e Celso Furtado.
O nacional desenvolvimentismo é o desenvolvimento social e econômico
voltado para dentro. A ideia era que o Brasil tinha que deixar de ser
colônia, reduzido à economia agrícola de exportação, como o açúcar e o
café. O país tinha a alternativa da industrialização apoiada na
valorização do mercado interno. Houve uma grande aliança de classes
sociais voltadas para fazer do Brasil um país moderno, mas brasileiro.
Foi o período do boom industrial, da indústria automobilística, um
momento bonito da sociedade brasileira. A sociologia compreendeu e
assumiu o desafio de estudar e analisar as mudanças sociais na
perspectiva das dificuldades do que era historicamente possível. Aquele
foi o período em que Fernando Henrique Cardoso – que foi meu professor – foi aluno e professor na USP, além de Octavio Ianni e os pesquisadores que se dedicaram ao seminário semanal sobre o método em O Capital, de Karl Marx.
Aí vem o golpe de 1964, que enterrou isso tudo. Da noite para o dia,
mudou a temática da sociologia brasileira: enquanto projeto de estudo,
já não valia; aquele projeto histórico não dera certo.
Fernando Henrique defendeu a sua tese de livre-docência no fim de 68 e, no começo de 69, ele foi cassado pela
ditadura,
assim como outros professores de ciências sociais do Brasil. Ele
terminou a tese de livre-docência em ciência política, perguntando:
subcapitalismo ou
socialismo?
É a coisa mais precisa que já se definiu em termos das dificuldades de
compreensão dos processos, porque era isso mesmo. A esquerda achava que
estávamos marchando para o
socialismo; não diziam qual socialismo, nem sabiam qual era, porque todo mundo era anti-stalinista. E, ao mesmo tempo, a
alternativa capitalista do
nacional desenvolvimentismo era subcapitalista, era uma subcolônia.
Nós vivemos, a partir de 1964, um período muito longo de oposição pura e simplesmente, sem entender que as alternativas para o Brasil eram justamente as de falta de alternativa.
Não nos deixaram nenhuma alternativa: as novas gerações não têm nenhuma
alternativa, os cientistas não têm nenhuma alternativa. Estamos sendo
transformados em colônia, de um país que avançou lá na frente e que nos
trata como um país lá de trás.
Vou tentar fazer uma crítica à sociologia perdida que estamos fazendo: tudo fragmentário. Não tem um projeto de nação por trás das ciências sociais.
IHU On-Line - É possível perceber, no seu percurso
intelectual e na sua produção acadêmica, uma análise metassociológica e
uma preocupação com o método de pesquisa em ciências sociais. Inclusive,
na introdução do seu livro “Exclusão social e a nova desigualdade”, que
é dos anos 1990, o senhor critica o fato de os conceitos terem um lugar
central em algumas análises sociológicas que tentam explicar o social,
porque esses conceitos funcionam como rótulos e não captam o social
propriamente dito. Em outras palavras, o senhor diz que “os militantes
não derivam os conceitos da práxis, mas procuram fazer da práxis a
realização dos conceitos”. Em outro artigo publicado neste ano, o senhor
voltou a tratar da ideologia na ciência. O que eu gostaria de perguntar
é o seguinte: em que momento do seu percurso intelectual o senhor se
deu conta de que esse fenômeno ocorre nas ciências sociais e como
começou o seu processo de fazer uma meta-análise das ciências sociais?
José de Souza Martins – Eu fiz toda a minha formação no grupo de
Florestan [Fernandes], na
USP
e, nesse grupo, a questão do método precede todas as outras questões.
Eu fui educado nessa linha. O que acho que houve a partir de
1964 foi que as pessoas perderam a perspectiva da precedência do método, as
ciências sociais e a
sociologia se expandiram pelo
Brasil e se passou a fazer sociologia imaginando que, usando conceitos, se faz ciência. A
ciência
não é feita de conceitos. Conceitos são muletas que usamos para ir
demarcando o terreno da análise. Mas a questão central é a do método, do
método lógico, do método de explicação conectado com o método de
investigação. O conceito resulta disso e não isso resulta do conceito.
Essa é a crítica forte que farei na
palestra de hoje à noite [03-09-2019].
Foi lá por 1975 que dei a minha virada. A chave não é só aplicar o método,
mas descobrir o que a realidade investigada, na perspectiva do método,
te obriga a fazer para pensar essa realidade. Os três métodos
científicos fundamentais explicativos usados na sociologia são métodos produzidos na Inglaterra, na Alemanha e na França. Na sociologia, os métodos científicos
expressam o que determinada sociedade é, sua estrutura social, seus
valores, sua mentalidade. De certo modo, os métodos correspondem às
singularidades das sociedades que os inspiraram. Os professores da Missão Francesa, na USP, vieram atrás de descobertas no campo do singular e original, o diferente em relação ao já conhecido.
IHU On-Line – A análise metassociológica é um processo que o
sociólogo ou os pesquisadores de outras áreas conseguem perceber somente
a partir da maturidade do desenvolvimento das suas pesquisas?
José de Souza Martins – Depende da educação
intelectual que ele teve. Eu comecei a me dar conta de uma coisa
diferente da linha em que vinha, porque meus professores foram cassados
e, de repente, junto com um grupo da minha geração, que ainda não
deveria estar assumindo funções de orientação, fui obrigado a assumir
funções de criação interpretativa num grupo que ou fazia isso ou morria.
A ideia, a partir da perspectiva metodológica, passa a ser, então,
tentar descobrir o que é o Brasil de fato. Era isso que o grupo já vinha fazendo, mas esse fazer fora interrompido. O que é o Brasil de fato?
O que o Brasil nos diz? Todas as sociedades têm a sua singularidade e o
que se tem hoje é que todo mundo copia o que os americanos fazem, o que
os europeus fazem. Mas isso não tem nada a ver com o Brasil, ou tem
muito pouco. Uma realidade social como a brasileira
pede a recriação das interpretações. Não adianta aplicar uma sociologia
parsoniana no Brasil, que não vai explicar nada. Nós temos que descobrir
o que é o Brasil, quem nós somos. É o que aconteceu com Lévi-Strauss, que estava em Mato Grosso conversando com um xamã indígena e o xamã contou para ele um mito nambiquara. Nesse momento, deu um estalo na cabeça do Lévi-Strauss; é o momento exato em que nasce o estruturalismo lévi-straussiano.
Por que isso aconteceu? Porque ele tinha formação teórica. Podia
desenvolver um método correspondente à realidade que estava observando,
que virá a ser o seu estruturalismo. Então, a linha que tínhamos na USP –
e isso se perdeu lá também – era a linha da prontidão para ver
sociologicamente a realidade em situações que não pareciam relevantes.
Brasil: a sociedade do avesso
Estou trabalhando mais recentemente o fato de que o Brasil é uma sociedade do avesso
– esse é tema de um livro meu que deve sair nos próximos meses. O
Brasil foi gerado como sociedade do avesso e não se liberta desse
avesso; tudo é pensado no avesso: agimos no avesso, pensamos no avesso.
Temos que enfrentar essa singularidade. O México, por
exemplo, é outra sociedade: não é a sociedade espanhola, não é a
sociedade inglesa; é a sociedade mexicana, só tem lá. E Brasil só tem
aqui, então temos que identificar as singularidades da sociedade brasileira para explicá-la sociologicamente.
IHU On-Line - Como a ideologia presente na ciência se
manifesta nas ciências sociais? Pode nos dar exemplos de abordagens
sociológicas ideológicas no Brasil, ou de que ideologias têm determinado
as pesquisas sociológicas?
José de Souza Martins – Nas ciências, não só na
sociologia, a ideologia está presente nos pressupostos extra-científicos
da pesquisa e da interpretação. Pressupostos religiosos têm
condicionado, limitado e orientado análises científicas, bloqueando-lhes
a criatividade investigativa e interpretativa. No Brasil, no último
meio século, não foi incomum, na sociologia, o pressuposto de uma
evolução linear da sociedade em direção à superação do capitalismo.
Mesmo quando, no mundo inteiro, o comunismo entrou em crise e regrediu
para o capitalismo. O próprio capitalismo já não é o capitalismo
clássico, da crítica da economia política. No Brasil é um capitalismo
inacabado, eivado de sobrevivências pré-capitalistas e atalhos não
capitalistas. Não reconhecer isso, sociologicamente, tem sido uma
deformação ideológica maximalista que compromete nossa sociologia como
autoconsciência científica da sociedade, a que se referia Florestan Fernandes, na linha do sociólogo alemão Hans Freyer.
As ideologias que têm procurado aparelhar a sociologia são ideologias de esquerda, de um marxismo mal digerido,
desvinculado do método dialético, puramente conceitual. Vi um trabalho
nos anos 1970 de uma antropóloga que fez um estudo sobre uma tribo do
Xingu e aplicou a categoria de modo de produção - que é uma categoria
marxista – para explicá-la, o que não tem cabimento. Sem contar que o
próprio Karl Marx escreveu trabalhos etnográficos e nunca cometeu esse erro. Acho que há um pseudoesquerdismo difuso
que demarcou e empobreceu nosso pensamento sociológico ao estabelecer
um cerco à sociologia com base na ideia de que a revolução é inevitável e
só é boa a sociológica politicamente correta.
A realidade atual, não só no Brasil, desmente esse pressuposto. É a
da força social e política do repetitivo e do reprodutivo das relações
sociais, em detrimento do transformador e revolucionário. Tenho dado
cursos e escrito artigos e livros sobre isso. As condições e
possibilidades das transformações sociais e políticas são outras em
nossos dias, em comparação com as do fim do século XIX e início do
século XX. O tempo e a força da revolução deslocou-se para o modo de
vida e as brechas históricas da vida cotidiana. Henri Lefebvre e Agnes Heller deram o grande salto interpretativo nessa linha de compreensão da sociedade contemporânea.
Isso não quer dizer que seja ideológica a linha da ciência de todos
os sociólogos. Mas isso pode, às vezes, se fazer presente na sala de
aula através de uma pressão ideológica que vem dos partidos
através de alunos. É preciso saber dialogar com as diferentes correntes
do pensamento científico. Se o pesquisador considera que ciência é só
aquilo que ele acha isso não é ciência e ele nem precisa ficar na
universidade.
IHU On-Line - Hoje, pesquisadores são impedidos de ministrar
palestras em universidades por movimentos estudantis de caráter
sociopolítico. O senhor já foi vítima disso pelo menos três vezes em
universidades brasileiras e essa prática tem sido comum nos EUA. Do
mesmo modo, alguns professores são questionados pelo uso de alguns
textos teóricos, porque tais textos “afetariam a sensibilidade” de
estudantes. A que o senhor atribui esse fenômeno e quais as implicações
disso para o fazer científico, especialmente na área de ciências
sociais, e para o debate acadêmico e público?
José de Souza Martins – Isso está acontecendo porque
historicamente a ciência não é ideologia nem se vincula a partido
político. Isso não quer dizer que os membros de partidos políticos não
devam se interessar por ciência, ao contrário. Acontece que os grupos
partidários, no caso brasileiro concretamente e da esquerda, estão muito
fragilizados e, rigorosamente, a esquerda passa por uma crise de
público no Brasil e há fatores para isso: a desindustrialização esvaziou
a classe operária; o operário está sendo substituído por máquinas. Na
região do ABC já existem fábricas em que não há nenhum operário. A
profissão de Lula, torneiro-mecânico, se ele quisesse voltar para uma
fábrica, não existe mais. Sei disso porque sou do ABC e meu irmão é
ferramenteiro especialista em ferramentas leves de alta precisão, mas a
profissão dele desapareceu Hoje tem um computador que faz de maneira
muito melhor o que ele fazia.
A classe operária de fato, hoje,
está numa situação difícil: em nosso país em que há 13 milhões de
desempregados. Não se pode ser classe nessa situação, porque classe só
existe quando a categoria social tem uma vontade peculiar dela, em que
ela reivindica, pressiona e dirige o processo político em função de
identidade e vontade de classe. O reduto que sobrou para a esquerda é a
universidade e não são todas as áreas da universidade, mas as Humanas.
Porém, sem qualquer conexão vital com uma categoria social que dê
sentido a suas manifestações.
IHU On-Line - As críticas que o senhor fazia nos anos 1990
também são reiteradas hoje. Alguns teóricos afirmam que as universidades
brasileiras e os intelectuais importam teorias estrangeiras, como o
marxismo, o estruturalismo, a teoria de gênero, o feminismo, o
pós-colonialismo, para interpretar os fenômenos sociais do Brasil. Por
que essa prática se acentuou na universidade?
José de Souza Martins – Não tem sentido recusar a leitura de autores estrangeiros
e não tem sentido a falta de familiaridade com os clássicos e autores
teoricamente criativos. A criatividade teórica e interpretativa da
sociologia entre nós tem dependido e depende de enraizamento do
pensamento sociológico na sociedade brasileira. Não só naquilo que é
parecido com o que é próprio das sociedades de origem as teorias
sociológicas, mas também e sobretudo naquilo que é próprio de nossa
sociedade e que nos faz diferentes e mesmo divergentes delas.
A metodologia, sim, se aplica a qualquer sociedade que tem as
características que foram referência daquela metodologia. Nós não temos
uma teoria nossa, uma metodologia brasileira. O estruturalismo lévi-straussiano foi desenvolvido a partir da conversa com o xamã porque havia um francês culto na frente dele que era capaz de entender antropologicamente o que ele estava dizendo.
Fui professor na universidade de Cambridge, na Inglaterra. Meu college, Trinity Hall,
é um dos mais antigos de Cambridge, é de 1350. Vizinho dele, tem outro
muito mais jovem, que é de 1500 e alguma coisa, que foi o college de [Isaac] Newton. Na entrada do Trinity
existe um gramado e no meio tem uma macieira plantada, a qual é
descendente direta da famosa macieira da maçã que não caiu na cabeça de Newton,
mas caiu em sua frente. Junta muita gente, especialmente japoneses,
orientais, que ficam adorando a macieira. Por que ela é importante? Ela
não é importante; importante é Newton. Ela é simbolicamente importante
porque caiu quando Newton estava sentado no horto do
college com seus cadernos, tomando notas e refletindo sobre o problema
de pesquisa que o desafiava naquele momento. À luz da pesquisa que Newton
estava fazendo, a maçã não caiu, ela foi atraída pelo centro de
gravidade da Terra. Se você for um cientista, você entende o que está
acontecendo. Se você não for um bom cientista, não perceberá as
revelações do rotineiro.
Nós temos excelentes cientistas sociais no Brasil, porque tiveram
excelente formação metodológica e eles são capazes de ver as coisas, dar
uma explicação científica para elas e aprender com elas, porque o
cientista não é o que fica explicando que aquela planta é assim e tal;
ele interage: a coisa diz para ele algo e ele devolve explicando aquela
coisa, porque a situa, decifra e explica. As novas gerações tem dificuldade percorrer esse caminho, especialmente aqui, em que são tantos os desestímulos à pesquisa científica.
IHU On-Line – Isso acontece por quê? Há um problema de formação nas universidades nos últimos anos?
José de Souza Martins – Além do desestímulo crônico,
que mencionei, sem sempre os governantes e as autoridades encarregadas
do trato com as áreas da educação, da cultura e especificamente da
ciência são qualificadas. É o problema do cerco ideológico que cerceia e
desqualifica a ciência. Eu sou um grande admirador de Lula,
um político comparativamente diferençado, não sou petista nem tenho
vínculo partidário com nenhum partido. A primeira vez que encontrei com
ele foi a pedido dele. Praticamente dei uma aula para ele sobre a questão agrária
que ele ouviu atentamente. Ele é um dos políticos brasileiros mais
inteligentes. Um dos grandes erros e problemas dele foi,
invariavelmente, ter depreciado os títulos acadêmicos. Essa é uma
obsessão de Lula. Ele tem dado frequentes demonstrações de que sofre por
ter sido sucessor de um intelectual de competência internacionalmente
reconhecida. Fernando Henrique – que conheço bem, fui
aluno dele e sou leitor de suas obras -, é um homem de grandes méritos
intelectuais, é um grande cientista. Ele é o único ganhador do que é
considerado o Prêmio Nobel de Sociologia – o Prêmio da Biblioteca do Congresso dos EUA, que é equivalente ao Prêmio Nobel –, e foi presidente da Associação Internacional de Sociologia. Depois de ser presidente, voltou à sala de aula como professor da Brown University,
nos Estados Unidos. Ao fazer deboche dos títulos e diplomas
universitários, Lula estimula nos estudantes universitários a ideia de
que os livros não servem para nada, o diploma não serve para coisa
nenhuma.
IHU On-Line - Como diferenciar o que é ideologia do que é
ciência em ciências sociais? Qual é o critério de demarcação entre
ideias científicas e não científicas na sociologia?
José de Souza Martins – A ideologia é orientada por valores,
quase sempre valores de grupo ou percepções individuais de valores de
grupo. Expressam interesses. A motivação é a de confirmar as convicções
extracientíficas de quem pesquisa, mesmo quando se engana ao supor que
sua verdade é a verdade inteira. Se você for católico e não conseguir
neutralizar o seu catolicismo ao fazer sociologia, fará uma sociologia
limitada ao que quer ou pode ver, viesada ideologicamente.
Se você for protestante, o viés vai ser outro. Se você não for nada,
pior ainda, porque não vai conseguir lidar com uma sociedade como esta
que é de pessoas religiosas. Eu não vou discutir a qualidade da
religiosidade do brasileiro, mas são pessoas que acreditam; mesmo quem
diz que não acredita, crê em alguma coisa. O Brasil é um país em que um
milhão de habitantes tem fé, mas não tem religião, não tem opção
confessional. Na pesquisa sociológica tenho que ser objetivo,
o que não quer dizer contra. Tenho que desenvolver uma compreensão
científica das crenças como objeto de conhecimento e não como
instrumento de conhecimento. Isso vale, também, para o senso comum.
Todas essas modalidades extracientíficas de compreensão da realidade a
deformam, são viesadas do ponto de vista científico, embora tenham pleno
sentido no vivencial. A alienação do trabalho é socialmente necessária à
justificação e legitimação subjetiva da exploração do trabalho, sem a
qual essa exploração seria insuportável e comprometeria a reprodução
social da relação de exploração. A ideologia deforma e acoberta o real,
ao mesmo tempo que viabiliza a reprodução deformada do real.
Se você é – e isso aconteceu muito nos últimos anos – petista, não lê
quem não é petista. Eu passei por essa situação inúmeras vezes na minha
vida, de me questionarem, de porem em dúvida a objetividade do
conhecimento sociológico que produzo porque não é petista e não sendo
petista só pode ser dos inimigos do PT. Houve situações cômicas. Depois da conversa que tive com o Lula,
ele recomendou que diferentes grupos de lulistas do Brasil inteiro
conversassem comigo, porque o PT estava querendo entrar na questão
agrária e não sabia nada sobre o assunto, incluindo os agraristas do partido, mais acadêmicos de gabinete. O primeiro grupo que me chamou por sugestão do Lula foi a Central Única dos Trabalhadores – CUT.
Passei um dia inteiro ministrando um curso no Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo, para cerca de mil pessoas. Num certo
momento, o presidente da CUT reagiu porque ele achava
que ao descrever os problemas sociais do campo, que são dramáticos e
muito mais dramáticos do que os da classe operária, eu estava diminuindo
a classe operária, porque ela é o “nó” da história.
Depois, fui dar um curso na Universidade do Ceará e um grupo do PT
veio me procurar. Convidou-me para almoçar no domingo na casa de um
deles. Não estava claro que era um grupo do PT, mas eles insinuaram que Lula
tinha sugerido que conversassem comigo. Eu chego lá, tudo muito
simpático e à vontade – era uma conversa informal –, aí me dei conta de
que era um grupo do PT. Esclareci que eu não era membro
do PT mas estava à disposição para conversar, se quisessem.
Expliquei-lhes que não era membro de partido político nem pretendia ser.
Era o que já havia dito a Lula. O almoço esfriou na
hora; eles não conseguiram almoçar nem conversar comigo. O que
aconteceu? A ideologia se sobrepôs à possibilidade de uma conversa sobre
sociologia.
Isso acontece com os alunos. A sociologia, enquanto ciência, é objetiva:
um biólogo que está estudando a minhoca não se apaixona por ela, porque
não serve para nada se apaixonar pela minhoca. Da mesma forma, se você
estuda um grupo humano X, você não pode se converter ao grupo, você
nunca será membro daquele grupo porque você é outra pessoa. Então, o que
tem que fazer é assumir a sua alteridade e observar objetivamente de
fora para dentro, sabendo quais são suas limitações, porque você não é
daquele grupo. Poderá viver com ele, mas sempre será o outro.
Se pensarmos num grupo indígena,
por exemplo, eles têm valores que não se revelam imediatamente, não são
discursivos, eles não vão fazer uma sociologia ou uma antropologia para
você; eles são eles e você é quem tem que descobrir e, objetivamente,
entender que a humanidade é feita de diferenças. Há homem e mulher, que
são diferentes, existem crianças que vão se tornar adultas e que são
diferentes; as pessoas mudam e se ressocializam. Então, temos que estar
atentos a isso tudo. O pesquisador não pode determinar o que a sociedade
deve ser e nem fazer o que Bolsonaro faz. Para ele,
ser brasileiro é ser o que ele acha que é, e o que ele é não é
brasileiro; esse é o detalhe. Ele recebeu uma educação de quartel, por
isso ele tem as limitações da visão de mundo instituição que o educou.,
como eu posso ter as minhas. O sociólogo trabalha objetivamente quando
consegue situar e relativizar todas essas diferenças.
IHU On-Line - Os intelectuais ou militantes que se apaixonam
por partidos não têm, de outro lado, uma preocupação genuína com
questões sociais e por isso se vinculam apaixonadamente a partidos ou
teorias que acham que representam suas preocupações?
José de Souza Martins - Certamente tem eles preocupações genuínas com as questões sociais. Mas, porque limitados pelos imperativos ideológicos da militância partidária,
quando nela se envolvem, isso não torna suas análises objetivas e
científicas. O que empobrece o próprio sentido que, com a ciência de
viés ideológico, querem dar à sua militância. São cientistas com
bloqueios e limitações. Tenho um pé atrás em relação às análises eu
fazem. Frequentemente, deixam um rastro de insuficiências no que
analisam. Quase sempre é uma sociologia enquadrada, sob cerco. A
sociologia que faço é uma sociologia de descoberta: estou de prontidão
para me surpreender; essa é a minha atitude e todo o cientista deveria
fazer o mesmo. Por isso é que existe, em todas as ciências, “serendipity”
[feliz descoberta ao acaso], que é o nome de uma ilha que foi
descoberta por acaso. O cientista tem que estar aberto para essa
possibilidade. Foi assim que o escocês Alexander Fleming
descobriu a penicilina, em 1928. O cientista tem que estar de prontidão
científica para as revelações do acaso. Ideologia não leva a
descobertas de valor científico.
IHU On-Line – E com o DNA.
José de Souza Martins – E com o DNA. Aliás, sobre o DNA tem uma historinha lindíssima: o DNA foi descoberto em Cambridge. Um dos descobridores era do Clare College, que é o college de Fernando Henrique Cardoso, que foi professor em Cambridge, e o outro é do Gonville and Caius College. Eles faziam a pesquisa no Laboratório Cavendish,
que, se olhar o lugar, ninguém acredita que uma revolução da ciência
aconteceu ali. Eles se reuniam lá e todos os sábados saíam do
laboratório e iam almoçar no pub Eagle, que existe desde 1667, localizado a 50 metros do laboratório. Num sábado, eles estavam indo para o Eagle e no meio do caminho um deles, Francis Crick,
decidiu voltar ao laboratório para fazer mais um teste. Vinte minutos
depois ele chegou no pub “branco como uma cera” e disse para James
Watson: “acabamos de descobrir o segredo da vida”. O dono do pub mandou
colocar uma placa com essa frase na fachada da casa e a mesa em que eles
estavam quando isso aconteceu ainda está lá. A pesquisa tem esse lado
de aventura, mas uma aventura que só tem sentido se você estiver
trabalhando com as categorias da ciência, senão, é só mais uma
cervejinha.
IHU On-Line - Quais são as teorias sociais que têm crescido
na academia brasileira e quais suas implicações políticas e sociais para
o debate público?
José de Souza Martins – As teorias são as mesmas;
nada de novo aconteceu nas ciências sociais, na sociologia em
particular, desde o último grande teórico que foi Max Weber.
A partir disso, tudo o que se fez depois foi desenvolvimento das
possibilidades teóricas daquilo que os clássicos já tinham formulado. No
Brasil, a sociologia, de certo modo, parou na obra de Florestan Fernandes e de seus discípulos mais próximos. Mesmo aí, com a preocupante evidência de que a sociologia de Roger Bastide, de Florestan, de Fernando Henrique Cardoso, de Octavio Ianni, de Marialice Mencarini Foracchi
raramente é citada e raramente entra nos cursos de formação dos novos
cientistas. Em minha própria escola, num curso sobre relações raciais, a
obra de Florestan não foi incluída na bibliografia, embora ele tenha se
tornado um reconhecido sociólogo da questão racial. Gilberto Freyre
não só saiu do horizonte , como é satanizado pelas novas gerações
porque sua obra colide com o politicamente correto de certos grupos.
Minha tese é que para sair do imobilismo, é importante voltar aos
clássicos e reconstituir uma sociologia brasileira a partir dos
clássicos, porque o Brasil mudou muito. Temos que nos redescobrir no
retorno aos clássicos, sobretudo para rever aquilo que abandonamos.
IHU On-Line - Há clássicos na sociologia brasileira que deveriam ser retomados?
José de Souza Martins - Sim. Os clássicos devem ser relidos sempre. Hoje, eu começaria um curso de introdução à sociologia com Roger Bastide.
Estou cada vez mais encantado com as coisas dele que estou revendo –
estou nesse voltar atrás. Ele era um homem incrível, que trabalhou com a
ideia de estruturas sociais profundas. Hoje se discute a questão dos
negros e das cotas. Bastide foi o grande especialista na questão racial no Brasil, ele mergulhou de cabeça nisso, se apaixonou pelo tema, foi à África com Pierre Verger,
fotógrafo francês radicado na Bahia, que fotografou o candomblé.
Escreveu um trabalho pequeno de baseado numa pesquisa sobre sonhos, de
negros. O que você sonha tem a ver com aquilo que você é.
Descobriu que boa parte dos negros – a pesquisa foi feita em São
Paulo – não sonha como negro, ou seja, eles não são mais negros; eles
sonham como brancos, o imaginário onírico de muitos negros é branco. São
negros aqueles que sonham com os ancestrais e com eles conversam, pedem
e ouvem conselhos. É a negritude. O candomblé faz essa ponte, pois você
fala com as entidades do candomblé e com os ancestrais e eles te dão
conselhos. Se você está sofrendo, está penando, eles têm uma saída, te
ajudam a compreender o que está acontecendo. Então, a negritude é isso,
não é a cor da pele simplesmente.
É importante fazer a releitura de Florestan Fernandes. Seu melhor trabalho de resposta para uma situação como a nossa não foi reeditado, seu livro “Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada”
(Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais, 1960). Nós não desenvolvemos
sua proposta teórica de uma sociologia aplicada no Brasil. A sociologia
ficou indiferente às possibilidades de sua aplicação em face das
decorrências socialmente problemáticas do nosso desenvolvimento
econômico.
Eu leria não só o grupinho da USP e da Escola de Sociologia e Política de São Paulo,
bem como os “solitários” de várias regiões que produziram trabalhos
decisivos para compreender o Brasil em perspectiva brasileira, no Rio,
em Minas, em Pernambuco. Fizeram pesquisas no momento em que a
sociologia brasileira era muito promissora; nós abandonamos o que eles
estavam fazendo. O legado da sociologia, em todas as
partes, aqui também, é muito mais o das perguntas ainda não respondidas,
as indagações teoricamente reveladoras, as dúvidas pendentes cujas
respostas carecem de teoria e de inovação teórica. É claro que, no meio
do caminho, entre os pioneiros e a geração mais jovem, muita coisa se
fez, novas questões foram levantadas, pesquisas esclarecedoras foram
realizadas. Mas estamos passando por um momento de “brazilianização”
de nossas ciências sociais, de estrangeirização das perguntas, de
estranhamento em relação ao que somos e ao que podemos. Um momento que
pede aos cientistas sociais a insurgência corajosa da redescoberta
explicativa do Brasil. Um grande desafio sem dúvida.
IHU On-Line – Há muitos anos o senhor afirma que existe uma
crise do pensamento crítico no Brasil. O que significa falar nestes
termos, em crise do pensamento crítico, uma vez que praticamente todo
mundo se julga “crítico” no debate público?
José de Souza Martins – Falo do
pensamento crítico
na perspectiva sociológica. Um dos reflexos na sociologia brasileira,
sobretudo na formação das novas gerações, é que muitos entendem que
pensamento crítico é o
pensamento antagônico, sobretudo
em relação àquilo de que discordamos por motivos ideológicos ou
partidários. O pensamento crítico, na sociologia, é o pensamento que
conduz à revisão de interpretações científicas vencidas por novas
descobertas, que pedem a revisão do já conhecido e nela as novas
questões a desafiar o conhecimento existente.
O pensamento crítico é o pensamento que vê a si mesmo na perspectiva sociológica,
ou seja, você só pode fazer sociologia crítica se situar
sociologicamente a sociologia que você faz para poder ver as
insuficiências que nela há.
O pensamento crítico passa pela desconstrução das interpretações. A grande proposta metodológica nesse sentido é de Henri Lefebvre,
o grande dialético do século XX, que desenvolveu um método bem simples.
Método que Sartre reconheceu como a melhor formulação do método
dialético, que Lefebvre define como método regressivo-progressivo.
Nessa
perspectiva a sociologia decompõe a narrativa, a descrição da
realidade, de um primeiro momento de impressão do que a realidade é. Em
seguida, a partir do atual já descrito, o sociólogo faz a sua
desconstrução, define a estrutura e a data histórica da gênese dessas
relações. A realidade social é compreensível pelas determinações do
desenvolvimento desigual de suas estruturas. Ao fim do processo, o
pesquisador faz o retorno à superfície de partida, ao atual. Reconstitui
as conexões dos momentos e suas recíprocas e desencontradas
determinações, a unidade do diverso. A unidade das contradições que
desafiam a práxis dos personificadores das relações
sociais desses momentos e de suas necessidades sociais. Sejam elas as
necessidades radicais, que abrem à sociedade o desafio e a possibilidade
da transformação social e da revolução social. Sejam elas as
necessidades de revitalização do mesmo, do repetitivo, do mero
reprodutivo. Sejam elas as necessidades do novo na mera forma mimética
da cópia e do fingimento.
A sociedade muda muito depressa. Há cinco anos nós achávamos que a
sociedade brasileira era uma. Neste momento, já não sabemos o que ela
é. O pensamento crítico nos leva a fazer o que estou chamando de desconstrução, uma palavra que bem define o método.
IHU On-Line - Como o senhor atualizaria as suas pesquisas
hoje à luz do Brasil atual? A partir das pesquisas que o senhor fez ao
longo da sua produção intelectual e acadêmica sobre questões como os
conflitos no campo, a questão da terra, sobre as vítimas de processos
sociais, políticos e econômicos excludentes, que novas abordagens
sociológicas diria que precisariam ser consideradas para compreender
esses fenômenos hoje no Brasil?
José de Souza Martins – Minha obra tem dois grandes conjuntos: o primeiro conjunto é o da questão agrária, com o qual trabalhei muitos anos, e o outro conjunto é o da questão suburbana e da vida cotidiana.
Minhas linhas de pesquisa são as seguintes: fazer uma sociologia urbana
é importante, mas o urbano num país como o Brasil não se explica nos
moldes clássicos da explicação do que é a cidade, em termos de pesquisa.
O segredo do urbano está aqui, metodologicamente, no suburbano, no
urbano que não se constitui: o urbano das insuficiências, do incompleto,
do inacabado, das lutas operárias pela cidade. O centro é o centro do
poder e do monumental, Não é o lugar dos conflitos transformadores, mas
dos conflitos pelo poder.
Questão agrária
Desde os meus primeiros trabalhos
sobre a questão agrária – que são dois artigos que publiquei em 1969, já
como resultados de pesquisas no campo– até os mais recentes, inclusive
um publicado pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul -
UFRGS, que não teve nenhuma divulgação, intitulado “O Sujeito Oculto”, sobre reforma agrária, e o que foi publicado pela editora da USP, sobre o mesmo o assunto, chamado “Reforma Agrária — o impossível diálogo”,
não há descontinuidade. Eu não estou me repetindo. Fui fazendo
descobertas a partir das pesquisas e do trabalho de campo. Fui para o
campo, para a Amazônia, para fazer minha pesquisa decisiva e conclusiva
sobre o peculiar da questão agrária no Brasil: não o confronto entre o
capital e a propriedade da terra, mas a anômala aliança entre capital e
terra, que responde pelo subcapitalismo do capitalismo brasileiro. Um
problema já analisado em “O Cativeiro da Terra”, de 1979 (9ª. edição, revista e ampliada, Editora Contexto, São Paulo, 2010). “Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano”
(Editora Contexto, 2009) é um livro de minhas descobertas, sobre a
sociedade do limite, estava lá e aquilo era muito revelador do que é o
Brasil.
Então, a atualização da minha
interpretação da questão agrária já está feita, porque ela não se
modificou depois disso, chegou ao seu limite. Houve ali uma derrota das lutas populares pela terra,
apesar de seu implícito projeto socialmente transformador, de
valorização e modernização da cultura agrícola popular e familiar. Os
próprios governos do PT não compreenderam o profundo alcance social da luta pela reforma agrária
e de suas metas inovadoras e valorizadoras do capital social
representado pela agricultura familiar. Venceu o afã de poder e a opção
preferencial pela aliança com o grande capital e o agronegócio.
IHU On-Line - A questão fundiária continua sendo a fonte da maioria dos problemas sociais do Brasil?
José de Souza Martins – Continua sendo. O lamentável drama é que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST,
que poderia ter conseguido dar outro encaminhamento para a questão
agrária no Brasil, entrou para ser derrotado, porque entrou para fazer
trabalho ideológico em nome de um equívoco. O de achar que o marxismo vê na questão agrária e no campesinato um fator da revolução social;
ele nunca viu. O próprio Marx é extremamente crítico em relação aos
camponeses, que, para ele, são a força do conservadorismo. Não
obstante, a reforma agrária, que é uma reforma social, se completada,
poderia representar a extensão das bases da democracia ao campo.
Minha tese é que ser força do conservadorismo não é um defeito.
A tradição conservadora em todo o mundo, e no Brasil também, é
carregadíssima de informações preciosas e de valores sociais preciosos
para a renovação do mundo, porque a tradição conservadora é inimiga da
coisificação da pessoa. O proletariado não luta contra a coisificação,
de que não tem consciência, o que é o grande erro do proletariado, das
lideranças. O Sul do Brasil que é ainda campesino, familista e
religioso, é um reduto da tradição conservadora, é onde se tem o Brasil
mais bem realizado. Onde não tem isso, não deu certo, e é por causa dos
valores precários relativos à coisificação da pessoa nas insuficiências
de um capitalismo patológico, não por causa do marxismo.
Se o MST, em particular, tivesse sido menos ingênuo, no sentido de ser menos instrumental, teria, por exemplo, negociado com o governo Fernando Henrique.
Ele é um especialista em questão agrária e na questão do trabalho
escravo — eu o conheço bem, fui aluno dele, trabalhei com ele e somos
amigos até hoje. Quando fracassou a política agrária de seu governo com o
massacre de Eldorado dos Carajás, quando ficou claro
que não adiantava entregar a política agrária para os banqueiros porque
eles não iriam fazer uma reforma social, ele chamou Raul Jungmann [que foi ministro do Desenvolvimento Agrário e ministro extraordinário de Política Fundiária do governo FHC].
Primeiro, Jungmann
foi às livrarias e comprou todos os livros sobre a questão agrária. Leu
tudo e foi atrás dos autores que tratavam desse assunto. Ele me chamou
em Brasília e queria que eu fosse seu assessor. Eu não tinha condições
de ser assessor de governo, sobretudo devido a meus compromissos de
ensino e pesquisa na Universidade de S. Paulo, mas poderia fazer
sugestões. As sugestões que fiz foram as seguintes: “Você tem que ir às
universidades onde estão sendo feitas pesquisas sobre a questão agrária.
Converse com os pesquisadores e procure se reunir com eles ou em
Brasília ou em outro lugar ao menos uma vez por mês para avaliar o que
você está fazendo”. Ele fez isso: se reuniu em São Paulo, em Brasília,
criou um órgão no governo, dirigido por um professor da USP, Juarez
Brandão Lopes, para tratar desse assunto. Jungmann era a
pessoa que mais entendia o MST e estava disposto a levar a diante a
reforma agrária, como levou. Seu gesto mais ousado, nunca reivindicado
por qualquer movimento pela reforma agrária, foi o de cobrar dos
proprietários, os grande latifundiários da região amazônica, a
apresentação dos documentos relativos à cadeia dominial das
propriedades, isto é, foi atrás da legitimidade ou não do direito que
invocavam sobre terras, não raro de posse legítima de índios e
posseiros. Milhões de hectares de terras foram arrecadados pelo governo
federal porque careciam de fonte de legitimidade.
Eu me lembro de uma conversa com FHC
em que ele apostava na possibilidade de que, via a política de
agricultura familiar que o MST preconizava, seria possível criar uma
alternativa de desenvolvimento econômico e social em cima dos valores da
família. O João Pedro [Stédile] não estava aberto para o diálogo; foi uma pena. Mas o que eles [MST]
fizeram, fizeram bem. Outro dia mesmo eu vi um documentário sobre um
assentamento no Rio Grande do Sul: é fascinante o que essas famílias
fazem em torno dos valores de família, sem contar as inovações técnicas
de que são capazes em terras perdidas pelo latifúndio por gestão
temerária e incapacidade de recorrer a meios simples e à organização
comunitária do trabalho.
Se a mercadoria vai ser o núcleo da
vida, os problemas sociais no campo vão se agravar. A mercadoria é
coisa e é uma coisa que coisifica as pessoas. Isso é próprio da grande
produção industrial. Mas não é próprio da agricultura familiar e da
agricultura comunitária. Nestas, a mercadoria está a serviço delas. No agronegócio
as pessoas estão a serviço da mercadoria. Por aí podemos fazer a
reforma agrária que quisermos e daqui a um ano esse pessoal vai estar
vendendo a terra, que é o que tem acontecido. Em São Paulo houve vários
casos. Por exemplo, houve o caso doloroso de uma grande fazenda de produção de cana-de-açúcar
no interior paulista que foi à falência e o governo se apropriou das
terras por causa das dívidas com impostos e fez um programa de reforma
agrária. O que aconteceu? Um ou dois anos depois, os colonos que foram
assentados pelo governo, que poderiam fazer seu programa de reforma
agrária, estavam arrendando seus lotes para o mesmo dono que tinha ido à
falência, para fazer a mesma monocultura de cana-de-açúcar que ele
tinha feito antes. Sem o inconveniente de imobilizar capital na
propriedade da terra, limitando-se ao muito menos do aluguel. Não dá;
tem que ter uma mística. Essa foi uma coisa que eu disse uma vez para o João Pedro, em Goiânia: você tem que ter uma mística; se não tiver, não faz reforma nenhuma.
IHU On-Line – Problemas urbanos, como a questão do tráfico,
da proliferação das milícias, também têm relação com a questão agrária?
José de Souza Martins – São duas coisas diferentes: a
questão da terra urbana e a
questão rural agrícola.
A política da reforma agrária foi derrotada,
especialmente com a eleição de 2018,
isso está bem claro. Antes que se destrua a cultura da economia
agrícola de família — e ela vai ser destruída, pois daqui a duas ou três
gerações não teremos mais quem queira ficar no campo — ainda é
possível, num país que tem
13 milhões de desempregados, criar uma coisa como os
kibutz em
Israel, criar uma alternativa de economia autônoma, criativa, ambientalista e natural.
O caso do Rio Grande do Sul, que mencionei, é o de uma fazenda que faliu e que produzia pêssego. O governo ficou com a fazenda e fez reforma agrária.
Os colonos chegaram no local e lá estava cheio de pessegueiros, nos
quais os fazendeiros anteriores usavam agrotóxicos e a terra estava toda
contaminada. Esse pessoal teve apoio dos estudantes de agronomia e fez
um trabalho lindíssimo: não ficaram ancorados no desconhecimento, foram
atrás de quem tinha conhecimento, gente muito simples, mas muito ladina.
A tentativa foi manter os pessegueiros, mas primeiro tiveram que
desintoxicar o terreno, e uma coisa que eles fizeram, a partir da
conversa com os estudantes, foi borrifar leite de vaca nos pessegueiros
para evitar que as moscas pusessem ovos de um verme que come a fruta por
dentro. Essa mosca não prolifera onde tem proteína, então, o leite
revestia as flores com uma camada de proteína e a mosca não colocava o
ovo. É uma coisa natural, inteligente, científica, barata e
antiamericana.
IHU On-Line - Por que o senhor elaborou suas pesquisas
sociológicas a partir de uma visão antieconomicista, que se recusa a
compreender os fenômenos sociais como sendo redutíveis à economia e à
política? Hoje, por exemplo, diante da crise climática, econômica e
social, muitos teóricos sugerem pensar uma nova economia. Inclusive, o papa Francisco está convocando os jovens economistas a pensar sobre essa questão.
José de Souza Martins – O
papa Francisco
está cometendo um erro; ele deveria convidar os sociólogos para
neutralizar os economistas. Os economistas — você não precisa ler um
livro para saber disso — mandam no mundo: tudo é a bolsa de valores, os
economistas e a taxa do dólar. Nós estamos sob uma tirania, que é a
tirania dos economistas.
Eles estão destruindo conquistas dos direitos sociais em nome da
economia, e da economia em benefício do particular, de alguns, do
capital; a sociedade não vai recuperar facilmente o que está perdendo.
Há, porém, um economicismo na análise sociológica que vem da esquerda, que foi a esquerda do marxismo vulgar, como era chamado por [Georg] Lukács,
que reduz tudo à economia, porque a economia explica o desenvolvimento
das forças produtivas e, sem o desenvolvimento das forças produtivas,
não existe a revolução social. Não é bem assim e nunca foi assim em
lugar nenhum. Para poder ter uma visão crítica dessa praga que é a economia explicando tudo
e não explicando nada, num país como o Brasil, temos que ter uma visão
sociológica que seja também antropológica, porque nós somos diferentes.
Você sabia que no Brasil ainda falamos português com sotaque nheengatu,
além de um monte de palavras originárias da língua tupi que usamos no
cotidiano? A lógica implícita nessa língua corresponde a outra concepção
do homem e das coisas, que pressupõe a perenidade do que não morre.
Em Portugal, eles falam comendo todas as vogais e
falando só as consoantes e tem lugares em que não entendemos o que as
pessoas falam. A influência tupi em nossa língua brasileira se deu pela
invasão das vogais na língua portuguesa. Sempre dou um exemplo que acho
incrível: flor. No Nordeste é “fulô”,
ou seja, na língua portuguesa tem uma só vogal e três consoantes, mas
democratizamos, usam-se duas vogais e duas consoantes, porque do
contrário, não se consegue falar. Da mesma forma, “oreia”:
se tira um monte de consoantes e se colocam vogais. Isso adoça a
língua, ela fica suave. Nós falamos isso naturalmente e somos bilíngues.
Eu não escrevo “oreia”, mas me pego falando assim.
Então, nós não somos exatamente aquilo da receita livresca do falar
correto. Tem que ter a visão de que fomos feitos assim, essa combinação
de múltiplas influências. Nós massacramos os índios, mas eles
massacraram a língua portuguesa, civilizando-nos por meio de um dialeto
de combate à língua de poder.
IHU On-Line - Como o senhor, enquanto um sociólogo enraizado
na sociedade brasileira, pensa a sociologia brasileira e os seus
desafios para tratar questões sobre desigualdades? Qual é o papel das
ciências sociais no entendimento e na compreensão deste fenômeno que faz
parte da nossa sociedade?
José de Souza Martins – A sociologia tem feito a crítica das expressões econômicas das desigualdades,
porque estamos discutindo as desigualdades com base em critérios
econômicos. Mas as desigualdades não são só econômicas. A discussão
sobre o modo como a mulher é tratada numa sociedade ou o
modo como os jovens são tratados, não tem a ver com a questão
econômica; tem a ver com outras coisas. Aqui pensamos as desigualdades
como violação da igualdade jurídica a todos assegurada pela Constituição.
O
que falta aqui é aceitar o direito à diferença como um direito inerente
ao pressuposto da igualdade jurídica. Tomando como referência a questão
do gênero: mulher é mulher, homem é homem. São diferentes. Mulher
procria, homem só procria junto. Ambos procriam na diferença que os une.
Estou me referindo a uma diferença fundamental e natural, que depende
de elaborações culturais em diferentes sociedades e em diferentes épocas
da história social. Aqui fazemos a crítica vulgar da diferença em nome
da igualdade jurídica, que é outra coisa. Nessa perspectiva equivocada,
acabamos por achar que o diferente não em as suficientes próprias para
ser juridicamente igual. Nessa concepção, o diferente acaba por ser
tratado como desigual.
A desigualdade tem a ver com o fato de que uma
cultura, uma experiência social enraizada, torna injusta a diferença
entre homem e mulher. Mas existe a contrapartida disso: o fogão é um
poder e quem é dono do fogão é dono de tudo dentro da família, da mesa,
dos ritos domésticos. Quem de certo modo descobriu isso foi o [Leon] Trótski, que escreveu um trabalho sobre a vida cotidiana
e fez uma avaliação da revolução russa nessa perspectiva ,
curiosamente, muito sociológica. A revolução não entrava nas casas das
famílias. A mulherada não queria a intromissão da revolução na vida da
família. Elas não queriam cozinha coletiva; queriam a cozinha delas,
porque pela mediação da cozinha da família, elas garantiam a unidade
familiar, e isso era um poder.
Em Cuba — eu fui como jurado do Prêmio Casa de las Américas, um prêmio literário — tive a chance de conversar três vezes com Fidel, duas vezes com Raul e conversei com a figura mais importante da família, que era o Ramon,
que não era político. E foi dele que ouvi estas coisas: o governo
cubano fez a reforma agrária, que foi um problema e também gerou
problemas que já tinham sido gerados na União Soviética.
A reforma agrária era coletivista e este era o problema, porque algumas
famílias não aceitaram que as parcelas fossem unificadas num grande
empreendimento e o governo depois criasse núcleos urbanos nas áreas
rurais. Além disso, todo o serviço doméstico era modernizado e
coletivizado para as mulheres não ficarem presas aos fogões — essa era
uma crítica que os intelectuais faziam, mas não perguntavam para as
mulheres o que achavam dessa inovação social. Eu sou a favor de que a
mulher não fique presa ao fogão, mas ela tem que participar do processo e
decidir.
Fomos com o Ramon ver o projeto do Valle Picadura,
que virou uma grande pastagem moderna para a pecuária renovada com o
cruzamento de gado rústico e nativo com gado canadense e holandês. O
objetivo era multiplicar a produção de leite, de modo que todas as
crianças o tivessem. Olhando de cima do morro, viam-se as casas
caipiras, iguais às nossas, de pessoas que não aceitaram participar do
programa com todas as vantagens que o governo estava oferecendo em
compensação. Isso significa que tem algo a mais na resistência: a
unidade da família, a questão de manter os filhos na terra, ou seja,
eles preferiam ser pobres, mas ser eles mesmos e não agentes de projeto
social de um partido político.
IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz da revolução cubana?
José de Souza Martins – Cuba não teve alternativa e esse foi um problema. Os EUA tratavam Cuba como a zona do meretrício deles: os ricaços saíam de Miami para Havana de lancha e transformaram Cuba em uma “putaria” antes da revolução — isso ouvi de muitas pessoas. A revolução
não era uma revolução socialista necessariamente, mas os americanos
decidiram colocar os cubanos de joelhos e eles se agarraram à União
Soviética. O Partido Comunista nem participou da revolução e transformou Cuba
num país socialista e essa foi a única alternativa que tiveram; os
americanos insistiram no boicote e não deixaram nenhuma alternativa. Os
cubanos fizeram milagres: transformaram um país de analfabetos em um dos
países com os maiores índices de alfabetização do mundo. Eu fui às
escolas em Cuba e fiquei muito impressionado. Outra coisa, fomos levados
à Ilha de Pinos, numa cidadezinha chamada Gerona. Na praça, os poetas da ilha se reuniam no fim do dia para ler seus poemas.
Numa escola em Havana, conversei com as crianças
matriculadas nas escolas primárias. Num certo período do ano, eram
levadas para a escola dos Pioneiros de acordo com o interesse
profissional que manifestavam. Nessa escola que visitei, elas conviviam
com os profissionais da profissão pela qual tinham interesse: o
profissional ia fazendo sua atividade e ensinando o que fazia. Naquela
época, a única estação de TV colorida de Cuba era uma estação cujos
programas eram feitos e transmitidos por crianças. A Sony deu todo o
equipamento para eles. Esse lado romântico da revolução não é mencionado
e vale a pena. Cuba fez uma edição do Dom Quixote com
papel de bagaço de cana-de-açúcar, tiraram um milhão de exemplares e os
venderam em um dia. Outras crianças se dedicavam à literatura, e os
alunos aprendiam a escrever poemas. Aqui no Brasil, eu vi coisas
dolorosas, como uma professora da Amazônia que me disse ganhar menos em um mês do que uma puta ganhava numa noite.
IHU On-Line – Agora, algumas questões conjunturais: já é
possível avaliar qual é ou será o legado da Lava Jato para a história do
país? Algo mudou na sociedade brasileira depois desse episódio?
José de Souza Martins – Mudou muito. Não satanizo a
Lava Jato.
Eles cometeram erros por serem imaturos e jovens demais e não
entenderam a missão para a qual foram chamados, mas fizeram bem a
missão: colocaram um bocado de gente na cadeia e expuseram as tripas
deste país. O
legado da Lava Jato é um
legado moral, muito mais do que político: corrupto vai para a cadeia, não importa o poder que tenha ou a classe social a que pertença.
IHU On-Line – E a “vaza jato”?
José de Souza Martins – A “
vaza jato”
é a anti-Lava Jato. A ideia da “vaza jato” — não questiono as conversas
que descobriram — é desmoralizar a Lava Jato. Os envolvidos na “vaza
jato” ainda não mostraram onde está a boa intenção do que fizeram nem
explicaram de que modo sua iniciativa fortalecerá o combate à corrupção
no país.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a atuação e o futuro do
PT, do MDB e do PSDB na cena política hoje e que futuro vislumbra para
esses partidos?
José de Souza Martins – Nenhum futuro. Eles
atingiram o vencimento. Também na política, um partido envelhece,
desgasta e se torna ineficaz. Claro que o PT tem seu
resíduo de militantes fiéis, mas não vão conseguir fazer nada porque o
líder deles está na cadeia. Não estou dizendo que é justo ou injusto; é
um fato. O PSDB se fragmentou e caiu nas mãos de pessoas que não têm a mínima identificação com as ideias sociais democráticas e liberais. O MDB é um partido fisiológico que não tem mais poder porque, no meu modo de ver, a virada de 2018 foi em boa parte contra o PT, imitando o PT em grande parte, e foi também contra o MDB, que não é um partido que represente o que o Brasil precisa.
IHU On-Line - Bolsonaro foi eleito com a bandeira de combate à
corrupção, criticando o “nós contra eles”, mas repete o jogo do PT em
seus discursos e declarações diárias?
José de Souza Martins – Repete o jogo do
PT e não vou dizer que é um erro do Bolsonaro;
Bolsonaro é o erro.
Provavelmente ele não acreditava que chegaria ao poder, mas chegou em
função de um cenário de desgaste dos partidos políticos, em particular
do
PT, que por sua vez tinha desgastado o
PSDB,
e não sobrou nada. Sobrou um buraco, tinha um sujeito fazendo um
discurso, então foi eleito. Só que o poder é maior do que ele, e
o poder no Brasil é um
poder corruptor. Resta saber o que vai acontecer. Na eleição do ano que vem, vamos saber dos primeiros resultados.
IHU On-Line - O que impede a elaboração de um projeto de país para o Brasil?
José de Souza Martins – Já tivemos um projeto de nação com
Getúlio Vargas e os tenentes, depois um projeto no período
nacional desenvolvimentista, com toda aquela diferença política e ideológica, mas todos sabiam que queriam fazer disso aqui um
país capitalista enraizado com preocupações sociais, uma espécie de
capitalismo social, se é que se pode chamar assim. Funcionou durante uns 20 anos. Depois, nunca mais tivemos um projeto de nação. Tivemos “
antiprojetos”: a
ditadura foi um antiprojeto.
Este governo é um antiprojeto.
O
vice-presidente Hamilton Mourão, durante a campanha eleitoral, fez uma conferência na principal
loja Maçônica no Rio de Janeiro,
que vale a pena conferir: o projeto é desmontar todo o legado que está
aí e estamos vendo que eles estão desmontando. Mas o que pretendem
colocar no lugar? Eles não têm ideia porque para ter um projeto de
nação, precisa ter competência para articular o mínimo de coerência e
apoio em torno deste projeto, fazer uma coalizão democrática para o
Brasil e para as novas gerações do país. Eles não têm competência para
fazer isso.
Assista à aula magna de José de Souza Martins na Unisinos: https://www.youtube.com/watch?time_continue=6&v=YaOpOXyOXWY&feature=emb_logo
Fonte: https://www.youtube.com/watch?time_continue=6&v=YaOpOXyOXWY&feature=emb_logo