quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Cara de senador

Juremir Machado da Silva*
Crédito: ARTE JOÃO LUIS XAVIER 
Quando alguém diz Machado, em vez de Machado de Assis, eu sei que se trata de um afetado, uma pessoa que quer demonstrar excesso de intimidade. O mesmo acontece com Guimarães Rosa, tratado de Guimarães. Já escrevi sobre isso em meu livro "A Miséria do Jornalismo Brasileiro". Era um tempo em que os afetados de Porto Alegre andavam no Brique da Redenção com um jornal embaixo do sovaco e se achavam geniais porque liam a Folha (de S.Paulo) e compravam livros da Companhia (das Letras). Hoje, andam com um iPad e sentem-se incrivelmente à frente dos mortais e dos medíocres. Mas o assunto é Machado de Assis. Se eu fosse afetado, escreveria "O Bruxo do Cosme Velho". Os machadianos adoram alguns clichês. Pois é, o homem escreveu sobre a diferença entre legisladores e salteadores. Os primeiros faziam as leis que estes últimos tratavam de burlar.
Claro que logo houve uma fusão. Hoje, pelo que se diz por aí, há salteadores que conhecem as leis de cabo a rabo e só agem com o Código Penal embaixo do braço. Alguns, mais atilados, enviam projetos de lei ao Congresso Nacional, que propõe emendas, devolve para o autor e, finalmente, as aprova, exigindo apenas que os proponentes sejam bons financiadores de campanha, o que se justifica filosoficamente: toda lei tem um custo. Creio que essa parte ainda não existia na época em que Machado de Assis era cronista da vida política nacional. Machado (opa!), isto é, Machado de Assis, escreveu uma famosa crônica intitulada "O Velho Senado": "Para avaliar bem a minha impressão diante daqueles homens que eu via ali juntos, todos os dias, é preciso não esquecer que não poucos eram contemporâneos da maioridade, algum da Regência, do Primeiro Reinado e da Constituinte. Tinham feito ou visto fazer a história dos tempos iniciais do regímen, e eu era um adolescente espantado e curioso".Não parece igual? Efetivamente nada muda, ainda que os senadores já não sejam vitalícios: "A figura de Itanhaém era uma razão visível contra a vitaliciedade do Senado, mas é também certo que a vitaliciedade dava àquela casa uma consciência de duração perpétua, que parecia ler-se no rosto e no trato de seus membros. Tinham um ar de família, que se dispersava durante a estação calmosa, para ir às águas e outras diversões, e que se reunia depois, em prazo certo, anos e anos. Alguns não tornavam mais, e outros novos apareciam; mas também nas famílias se morre e nasce". Quem podemos colocar hoje no lugar de Itanhaém com sua carranca de proa? José Sarney, com seu ar de família senatorial, ou o nosso Pedro Simon, que está por lá desde os tempos iniciais do regime? O nosso Senado atual não parece o Velho Senado?Um amigo me explica que todo Senado tem essa cara de Itanhaém, esse jeito entre vetusto e cadavérico, enigmático e sonolento. Nunca se sabe se o senador reflete ou cochila. O problema são as maneiras. Parece que nossos senadores estão cada vez mais desenvoltos. Será que algum dia serão confundidos, alguns, ao menos, com salteadores? Tudo muda. Tudo permanece. Muita gente quer concorrer ao Senado por já ter cara de Itanhaém.
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* Sociólogo. Escritor. Tradutor. Prof. Universitário. Colunista do Correio do Povo
correio@correiodopovo.com.br
Fonte: Correio do Povo on line, 07/09/2011

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