João Pereira Coutinho*
Contemplo exércitos de infelizes que marcham para dentro da academia em busca de formas perfeitas
Caro leitor: você está contente com o seu corpo? Pense bem. Olhe-se bem.
Os ingleses não estão. Informa a BBC Brasil que um grupo de deputados
auscultou a população nativa a respeito.
As conclusões do estudo, intitulado "Reflections on Body Image"
("reflexões sobre a imagem do corpo"), são dramáticas: ninguém gosta da
respectiva carcaça.
Nas escolas, o cenário é particularmente aterrador: um em cada cinco
meninos de 10 anos despreza a própria figura; uma em cada três meninas
também.
A situação é tão extrema que os deputados sugerem aulas de imagem e
expressão corporal para combater a insatisfação com o corpo. É preciso
mais "autoestima", dizem os especialistas. A saúde psíquica de uma nação
depende disso.
Boa sorte, rapazes. Mas posso explicar por que motivo o projeto
educacional está destinado ao fracasso? Deixo ficar a teoria para mais
tarde. Prefiro a prática por agora.
Moro em frente a uma academia de ginástica. E todos os dias, manhã cedo,
contemplo através do vidro exércitos de infelizes que marcham lá para
dentro em busca das formas perfeitas.
O cortejo é deprimente, concedo: a angústia plasmada no rosto de cada um
dos peregrinos faria as delícias de Hieronymus Bosch. Mas o essencial
da experiência está na propaganda da academia -duas frases escritas em
inglês e com cores berrantes, logo na entrada: "One life. Live it well."
Nem mais. Durante séculos, a civilização ocidental -corrijo: a
civilização judaico-cristã que forjou o Ocidente- tinha uma singular
visão do corpo que se alterou com a modernidade.
Simplificando, o corpo tinha a sua importância como guardião da alma
divina. Mas só a alma era eterna; só a alma viajava para o outro lado, o
que concedia ao corpo um estatuto perecível e secundário.
Quando existe um horizonte de eternidade pela frente, e quando a
eternidade se assume como prolongamento da existência terrena e
compensação de suas misérias, é normal que o olhar humano não atribua ao
corpo e às suas imperfeições o lugar histérico de hoje.
Esse horizonte de eternidade perdeu-se. Para usar as palavras de Thomas
Hardy em poema célebre sobre o "funeral de Deus", a divindade podia ser
uma projeção que os homens modernos não conseguiram mais manter viva.
Mas existem consequências desse enterro. Se não existe nenhuma
continuidade pós-terrena, se tudo que resta é esta passagem breve e
incompleta que termina entre quatro tábuas, o olhar humano recentra-se
sobre a matéria.
Pior: coloca a matéria no altar das antigas divindades e troca as
orações e as penitências do passado pelo calvário tangível da malhação
matinal.
Só existe uma vida. Só existe uma oportunidade para vivê-la bem. As
frases promocionais da academia podem ser lidas como grito festivo e
obviamente narcísico.
Mas também são a expressão de uma angústia e terror bem profundos: a
angústia e o terror de quem sabe que não terá uma segunda oportunidade.
Todas as fichas do jogo estão cá embaixo, não lá em cima. Aliás, não existe mais "lá em cima".
Os deputados ingleses, sem originalidade, acreditam que a insatisfação
com o corpo tem origem nas imagens de perfeição irreal que a moda ou o
cinema cultivam. O clichê de um clichê.
Erro crasso. Essas imagens de perfeição irreal são apenas a
consequência, e não a causa, de uma cultura que concedeu ao corpo uma
fatídica importância.
E "fatídica" pela razão evidente de que condena os homens a adorar um
deus falível por definição. Um deus caprichoso e inconstante, sujeito às
inclemências da velhice, da doença e da morte. Se existem causas
perdidas, o corpo é a primeira delas. Alimentar causas perdidas é um
sintoma de demência.
É por isso que a nossa obsessão com a carcaça não se corrige com as tais
aulas de imagem e expressão corporal. Não se corrige com mais
"autoestima".
Ironicamente, corrige-se com menos "autoestima". Somos pó e ao pó
retornaremos. Aulas de teologia fariam mais pelas crianças inglesas do
que renovadas sessões com o corpo no papel principal.
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* É um jornalista, escritor, historiador e comentador e cientista político português.
jpcoutinho@folha.com.brFonte: Folha on line, 05/06/2012
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