sábado, 2 de junho de 2012

O homem, filho do cachorro

Paulo Ghiraldelli Jr*

O Pitoko é uma criança, ele é uma criança, mas só com a parte boa 

Francielle Maria Chies

“Pelo cão, o deus dos egípcios!” – era assim que Sócrates exclamava. Ele sabia o quanto soava engraçado essa formulação em uma sociedade como a dele, cujo antropocentrismo nós herdamos e conhecemos muito bem. Mas ele também sabia que os egípcios, mais antigos que os gregos, não eram nada tolos e a adoração do cão remetia a tradições inteligentes que vinham de um passado mais que distante. O cão e o homem estão juntos faz tempo, e pesquisas recentes indicam que esse encontro é muito mais velho do que até poucos anos se supunha. Admite-se agora que o homem e o cão passaram a se entender quando ainda estavam na superfície da terra o neandertais, aqueles que diferiam muito pouco dos humanos, mas que foram brindados com a extinção.
Os neandertais chegaram a acasalar com os humanos e tiveram filhos. Os pesquisadores consideravam esses filhos como híbridos, aos menos até pouco tempo atrás. Mas agora, admite-se claramente que esses rebentos não eram híbridos e que a carga genética de ao menos 1/3 da população mundial tem a forte presença dos neandertais. Não somos todos iguais perante Deus, apenas tentamos isso, nas democracias liberais, perante a lei. Essa diferença inclui, também, nossa relação com o cão. Neandertais comiam carne, e só carne, e não aceitaram os cães entre eles. O homem humano diversificou a sua alimentação e, assim, teve mais condições adaptativas que o seu concorrente, e o ensino escolar da evolução, até pouco tempo, dizia que este foi o elemento decisivo para que o homem tivesse escapado do tempo de escassez que fez com que os neandertais desaparecessem. No entanto, as pesquisa mais recentes – e fortemente embasadas em dados empíricos e na pluralidade de grupos de pesquisas – indicam que o que realmente salvou o homem foi sua amizade com o cão (e com o lobo). (Veja Scientist)
Os olhares que trocamos com os cães, atualmente, e que mostram cumplicidade e entendimento (uma humanização do cão ou, talvez, o inverso), e o comportamento do cão, que efetivamente ganhou merecidamente o título de “o melhor amigo do homem”, denota uma relação extremamente antiga. Essa relação salvou o homem e determinou o rumo da evolução quanto à existência da humanidade como ela é hoje. O cão pode muito bem ter chefiado a vida do homem, conseguindo comida, caçando, farejando água, protegendo seus filhos e os filhos dos humanos em uma época dificílima na Terra. Além disso, o cão, quanto mais próximo do lobo, tende a comportamentos monogâmicos e de clã, dando ao homem um feedback positivo quanto ao comportamento que estaria sendo já adotado pelo homem. Os neandertais não tiveram a sorte de serem amigos dos cães. O cão ficou como o “amigo do homem” – seu melhor amigo. Melhor em um sentido muito mais intenso e decisivo que aquele que até pouco tempo louvávamos.
As pesquisas atuais mostram que o homem primitivo não sacrificava os cães nem os comia. Além disso, o punha em condições especiais. Crânios de cães dessa época mostram apetrechos incrustados, postos neles após sua morte, em um claro sinal de devoção. O cão foi um deus muito antes do que imaginávamos, e não sem razão. Diante dessas descobertas, também inscrições e desenhos em cavernas, ganharam outra dimensão. Neles, não raro, os cães são mostrados acompanhando o homem em caçadas e outras atividades. Ou, talvez, o contrário: o homem esteve acompanhando o cão nisso tudo.
Falamos muito em humanização dos cães, hoje em dia. Mas o trabalho todo para nos conhecermos – o “conhece-te a ti mesmo” ainda continua sua saga – talvez devesse ser posto de ponta cabeça. Deveríamos ler em nós o quanto temos dos cães, e não o quanto eles têm de nós. Pois a interação primitiva não deve ter sido unidirecional. Nietzsche chamou o homem de “animal de rebanho”, talvez fosse interessante pensarmos em nós mesmos como “animais de matilha”. Mogly, o menino lobo, e os fundadores de Roma, Rômulo e Remo, deveriam ser símbolos de nossa antropologia e, de certo modo, da filosofia. Talvez não tenhamos sido só salvos pelos cães, ganhando destino diferente dos neandertais. Talvez tenhamos recebido dos cães uma educação muito especial, que nós fez trabalhar coletivamente, e que nos deu a parte bondosa de nossa natureza.
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*Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2012/06/01

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