Paulo Ghiraldelli Jr*
O Pitoko é uma criança, ele é uma criança, mas só com a parte boa
Francielle Maria Chies
“Pelo
cão, o deus dos egípcios!” – era assim que Sócrates exclamava. Ele
sabia o quanto soava engraçado essa formulação em uma sociedade como a
dele, cujo antropocentrismo nós herdamos e conhecemos muito bem. Mas ele
também sabia que os egípcios, mais antigos que os gregos, não eram nada
tolos e a adoração do cão remetia a tradições inteligentes que vinham
de um passado mais que distante. O cão e o homem estão juntos faz tempo,
e pesquisas recentes indicam que esse encontro é muito mais velho do
que até poucos anos se supunha. Admite-se agora que o homem e o cão
passaram a se entender quando ainda estavam na superfície da terra o
neandertais, aqueles que diferiam muito pouco dos humanos, mas que foram
brindados com a extinção.
Os neandertais chegaram a acasalar com
os humanos e tiveram filhos. Os pesquisadores consideravam esses filhos
como híbridos, aos menos até pouco tempo atrás. Mas agora, admite-se
claramente que esses rebentos não eram híbridos e que a carga genética
de ao menos 1/3 da população mundial tem a forte presença dos
neandertais. Não somos todos iguais perante Deus, apenas tentamos isso,
nas democracias liberais, perante a lei. Essa diferença inclui, também,
nossa relação com o cão. Neandertais comiam carne, e só carne, e não
aceitaram os cães entre eles. O homem humano diversificou a sua
alimentação e, assim, teve mais condições adaptativas que o seu
concorrente, e o ensino escolar da evolução, até pouco tempo, dizia que
este foi o elemento decisivo para que o homem tivesse escapado do tempo
de escassez que fez com que os neandertais desaparecessem. No entanto,
as pesquisa mais recentes – e fortemente embasadas em dados empíricos e
na pluralidade de grupos de pesquisas – indicam que o que realmente
salvou o homem foi sua amizade com o cão (e com o lobo). (Veja Scientist)
Os olhares que trocamos com os cães,
atualmente, e que mostram cumplicidade e entendimento (uma humanização
do cão ou, talvez, o inverso), e o comportamento do cão, que
efetivamente ganhou merecidamente o título de “o melhor amigo do homem”,
denota uma relação extremamente antiga. Essa relação salvou o homem e
determinou o rumo da evolução quanto à existência da humanidade como ela
é hoje. O cão pode muito bem ter chefiado a vida do homem, conseguindo
comida, caçando, farejando água, protegendo seus filhos e os filhos dos
humanos em uma época dificílima na Terra. Além disso, o cão, quanto mais
próximo do lobo, tende a comportamentos monogâmicos e de clã, dando ao
homem um feedback positivo quanto ao comportamento que estaria sendo já
adotado pelo homem. Os neandertais não tiveram a sorte de serem amigos
dos cães. O cão ficou como o “amigo do homem” – seu melhor amigo. Melhor
em um sentido muito mais intenso e decisivo que aquele que até pouco
tempo louvávamos.
As pesquisas atuais mostram que o homem
primitivo não sacrificava os cães nem os comia. Além disso, o punha em
condições especiais. Crânios de cães dessa época mostram apetrechos
incrustados, postos neles após sua morte, em um claro sinal de devoção. O
cão foi um deus muito antes do que imaginávamos, e não sem razão.
Diante dessas descobertas, também inscrições e desenhos em cavernas,
ganharam outra dimensão. Neles, não raro, os cães são mostrados
acompanhando o homem em caçadas e outras atividades. Ou, talvez, o
contrário: o homem esteve acompanhando o cão nisso tudo.
Falamos muito em humanização dos cães,
hoje em dia. Mas o trabalho todo para nos conhecermos – o “conhece-te a
ti mesmo” ainda continua sua saga – talvez devesse ser posto de ponta
cabeça. Deveríamos ler em nós o quanto temos dos cães, e não o quanto
eles têm de nós. Pois a interação primitiva não deve ter sido
unidirecional. Nietzsche chamou o homem de “animal de rebanho”, talvez
fosse interessante pensarmos em nós mesmos como “animais de matilha”.
Mogly, o menino lobo, e os fundadores de Roma, Rômulo e Remo, deveriam
ser símbolos de nossa antropologia e, de certo modo, da filosofia.
Talvez não tenhamos sido só salvos pelos cães, ganhando destino
diferente dos neandertais. Talvez tenhamos recebido dos cães uma
educação muito especial, que nós fez trabalhar coletivamente, e que nos
deu a parte bondosa de nossa natureza.
-------------------
*Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/06/01
Nenhum comentário:
Postar um comentário