domingo, 10 de junho de 2012

O moderno do contra

North Wind Picture Archives/AP / North Wind Picture Archives/AP Jean-Jacques Rousseau inspirou, de alguma forma, todos os movimentos de contestação política e social dos dois últimos dois séculos (seu retrato, por Quentin de La Tour)

O século XVIII foi um tempo de esperança intelectual e amor ao progresso. Os sábios dessa era racionalista entraram para a história com o nome de iluministas, e o período, como século das luzes. A República das Letras, fazendo circular pela Europa a comunicação de ideias novas na ciência e na filosofia, punha em contato autores como os franceses Voltaire, d'Alembert e Denis Diderot e o alemão Immanuel Kant. Eram pensadores esperançosos de que, graças à revolução de ideias que operavam, a humanidade sairia da infância e entraria na vida adulta. Ou seja, as pessoas passariam a pensar por conta própria, sem tutelas políticas, religiosas ou intelectuais. Mas, entre os modernizadores, houve alguém do contra, que incomodou a todos: Jean-Jacques Rousseau.
Celebra-se neste ano o tricentenário do nascimento do chamado Cidadão de Genebra, em 28 de junho de 1712. Rousseau foi o homem que lançou nuvens carregadas de dúvida sobre os conceitos de modernidade, progresso e ilustração típicos do pensamento de seus interlocutores. Bruno Bernardi, do Collège International de Philosophie (CIP), em Paris, descreve a obra de Rousseau como "a autocrítica do iluminismo". O autor do "Contrato Social" (1762) e dos "Devaneios do Caminhante Solitário" (1776-78) não foi um reacionário intelectual, daqueles que expressam a nostalgia de tempos passados. Paradoxalmente, seu olhar crítico, muitas vezes duro, fez dele um dos mais modernos dentre os modernos e garantiu a permanência de suas ideias, admiradas e desprezadas em igual medida.

"O homem nasce livre, mas em toda parte se encontra agrilhoado", escreve Rousseau, no início de sua obra-prima, "O Contrato Social"

Genebra celebra o nascimento de um de seus filhos mais ilustres com o programa "Rousseau Para Todos", com um colóquio, debates e passeios pela cidade. Facetas do filósofo que ficaram um pouco esquecidas, como suas composições musicais e obras para o teatro, são recuperadas e encenadas. O destaque é a opereta "O Adivinho da Aldeia" (Le Devin du Village), em que Rousseau procura aplicar suas ideias contrárias à grandiosidade cada vez mais exótica das óperas do período. Em São Paulo, a PUC (Pontifícia Universidade Católica) sedia, em setembro, o colóquio "Je Suis Autre" (Eu Sou Outro), organizado pelos professores Luiz Fernando Franklin de Matos, Maria Constança Pissarra e Maria das Graças de Souza.
Maria Constança explica a escolha do título do encontro a partir da variedade de temas que Rousseau abordou: teatro, música, política, educação, idiomas. "Ele é a voz crítica do século XVIII, aquele que se contrapõe ao otimismo iluminista. Ele é este outro, aquele que questiona e se inquieta."
Também em São Paulo, a vertente artística de Rousseau está em destaque. Ao longo do ano, textos seus serão lidos no teatro Tuca, da PUC-SP: "Pigmalião", "Narciso" e "O Adivinho da Aldeia", entre outros. Em setembro, o coro da Orquestra Sinfônica de São Paulo apresentará obras de compositores barrocos franceses cujas obras inspiraram os textos estéticos e críticos de Rousseau, como Jean-Philippe Rameau e Marc-Antoine Charpentier, sob direção de Naomi Munakata.
 
Emílio (de "Emílio, ou da Educação") e sua futura mulher, Sophie, representados em 
"Les Maîtres de la Sensibilité Française au XVIIIème Siècle"
 
De perto ou de longe, Rousseau inspirou a maior parte dos movimentos de contestação política e social dos dois últimos séculos. Ecologistas, socialistas e anarquistas podem encontrar as raízes de suas doutrinas nos textos de Rousseau. Pioneiro ao usar a expressão "direitos dos homens", em meados do século XVIII, ele já deplorava a perda de participação democrática na modernidade, que se expandia rápido demais. Antes que Freud destrinchasse a intimidade da alma, um "caminhante solitário" do século XVIII mergulhava na própria "torrente de afetos" sem pudor. Quando as crianças ainda eram educadas com violência, Rousseau propunha a opção do incentivo à curiosidade.
Ele é célebre pela afirmação que abre sua obra-prima, "O Contrato Social", de 1762: "O homem nasce livre, mas em toda parte se encontra agrilhoado". Escrita em pleno coração do século que acreditou na possibilidade de fundar sociedades verdadeiramente livres, a fórmula soa como uma estocada de punhal. Apenas 14 anos mais tarde, Thomas Jefferson abriria a declaração de independência dos Estados Unidos reafirmando a crença, "evidente por si só", nos "direitos alienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade". Rousseau foi aquele que denunciou a alienação desse direito inalienável.

Na visão de Rousseau, "o progresso produz também a negação do próprio homem", assinala Maria Constança Pissarra

O Cidadão de Genebra antecipou um problema que se tornaria urgente no século XX: o ambientalismo. Foi, talvez, o primeiro pensador moderno a afirmar sistematicamente que o homem, ao transformar a natureza para seu próprio proveito, destrói vínculos importantes com a própria origem. "Ele insiste na oposição entre natureza e cultura, mas não para rejeitar a cultura, e sim para mostrar que o processo civilizatório é positivo, mas tem um lado negativo", diz Maria Constança. "O progresso é resultado da ação humana, mas produz a negação do próprio homem."
Rousseau também antecipou um conflito que surgia no século XVIII e se tornaria crucial no fim do século XX, com a globalização. François Jacob, um dos organizadores das celebrações em Genebra e curador do Instituto e do Museu Voltaire, assinala que Rousseau associa a formação dos cidadãos à ligação com seu território, sua cultura e sua língua. Na falta dessas referências, os indivíduos também perdem a possibilidade de ser verdadeiramente livres. "Essa concepção nova da identidade será retomada pela Revolução Francesa, que conduzirá à criação da noção de pátria."
As críticas profundas que Rousseau faz à representação política, à propriedade privada e à liberdade individual entendida como mera ausência de restrições à ação o colocam no contrapé das sociedades que se construíam em seu tempo. Os limites que via na democracia representativa e naquilo que viria a ser o capitalismo são os mesmos que ainda se criticam, 300 anos depois.
Newscom / Newscom 
Elisabeth Françoise Sophie Laline de Bellegarde, condessa de Houdedot, paixão de Rousseau, 
aparece vestida como homem em "Le Maître de la Sensibilité Française au XVIIIème Siècle"
 
Sobre a propriedade privada, Rousseau escreve que o verdadeiro fundador da sociedade civil foi "aquele que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer 'isto é meu' e encontrou pessoas simplórias o suficiente para acreditar nele". Para Rousseau, a igualdade e a liberdade são, ambas, valores fundamentais, porque uma não existe sem a outra. Portanto, se falta liberdade na sociedade civil é porque em algum momento foi instituída a desigualdade social.
O texto que lhe deu celebridade, "Discurso sobre as Ciências e as Artes" (1750, publicado no ano seguinte), já anunciava o espírito crítico que se seguiria. O progresso da ciência não foi acompanhado pela evolução moral, argumentava Rousseau. Ao contrário, a humanidade abandonava a moralidade ao se deixar cegar pelas facilidades que o avanço técnico trazia.
A representação política, que fundava, no século XVIII, a democracia moderna, foi acerbamente atacada por Rousseau. "Não faz diferença, para ele, se estamos submetidos a uma pessoa só [monarquia] ou a várias. O fato é que sempre estamos submissos", explica Maria Constança. O problema levantado por Rousseau reaparece periodicamente na modernidade que se segue a ele. Nos acampamentos de Madri, Nova York e Santiago do Chile, no ano passado, cartazes com os dizeres "Vocês não nos representam" eram visíveis com frequência. Bernardi cita esse exemplo para explicitar como, muitas vezes, a representatividade política até hoje aparece como insuficiente.
"Rousseau faz uma analogia da política com uma amante", diz Maria Constança. "Se queremos que a paixão continue, temos de cuidar dela continuamente. Temos de dar atenção constante." O filósofo genebrino celebra a democracia participativa dos gregos, ainda que ela excluísse escravos, mulheres e pobres, porque, nesse modelo, fazer política era responsabilidade de todos.

Para o filósofo Michel Onfray, o cidadão de Genebra era um homem "azedo, colérico, paranoico, misantropo, megalômano"

Só assim, ele diz, é possível fazer aparecer a "vontade geral" - um de seus conceitos mais importantes - para organizar o funcionamento da sociedade. Só a "vontade da maioria" não basta, porque também é uma forma de dominação. A vontade geral é aquela que resulta dos debates, das discussões, das diferenças, das discordâncias. É possível criticar a proposta como utópica, lembra Bernardi, porque tanta participação política poderia levar à imobilidade. Mas Rousseau não está preocupado em ser viável. Como filósofo, lembra Maria Constança, seu papel é nos colocar diante de um problema: "Como construir a soberania do coletivo"?
Tentativas de produzir sociedades mais igualitárias e mais coletivas surgiram diversas vezes, depois dos escritos de Rousseau, frequentemente citando o próprio autor do "Discurso sobre as Ciências e as Artes" como inspiração. A cada vez, os resultados foram menos que satisfatórios. A primeira experiência ocorreu com a Revolução Francesa de 1789. Os jacobinos, vertente mais radical dos revolucionários, fizeram de seu "Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens" (1754) um livro de cabeceira.
Em parte, isso explica a associação histórica que se criou entre Rousseau e grandes movimentos totalitários. Maximilien de Robespierre, o líder violento e radical que deu início ao período sanguinário do "Terror", em 1793, era um admirador confesso de Rousseau. Pouco após a morte do revolucionário, também guilhotinado, em 1794, os restos mortais de Rousseau foram trasladados de Ermenonville, onde repousavam desde sua morte, em 1778, para o Panthéon, o monumento parisiense aos nomes mais célebres da França. Ironicamente, Rousseau descansa frente a frente com a tumba de seu maior rival, mas também referência capital da Revolução Francesa: Voltaire. (Leia mais sobre a relação de Rousseau com seus contemporâneos na página 8.)
Em textos como o "Manuscrito de Neuchâtel" e os póstumos "Confissões" e "Devaneios do Caminhante Solitário", Rousseau se fez o precursor da literatura autobiográfica, confessional e intimista do século XX. Os primeiros leitores, porém, não apreciaram nem um pouco o tom desinibido (para os padrões da época) das autobiografias do filósofo.
 
Manuscrito de Rousseau
 
"Emílio, ou da Educação" (1762, mesmo ano da publicação do "Contrato Social") foi recebido com escândalo e resultou em proibição na França e na Suíça. O romance, que é um manual filosófico sobre a estratégia de educar uma criança em respeito à natureza, também antecipou princípios pedagógicos do último século: a criança deixa de ser uma miniatura do adulto; mais importante do que ensinar conhecimentos determinados é passar o gosto do conhecimento.
Todo esse poder de adiantar ideias e problemas que os séculos seguintes desenvolveriam se fez acompanhar de um gosto pelo paradoxo. É por esse motivo que seu nome é evocado para justificar tanto a liberdade quanto a opressão. Também é por isso que, segundo Alain Cernuschi, professor de letras da Universidade de Lausanne, "ele irrita, fascina, inflama e comove".
O filósofo francês Michel Onfray diz que tinha admiração por Rousseau na adolescência, mas se "é bom sinal amá-lo aos 16 anos, é mau sinal amá-lo mais tarde". Escrevendo sobre o legado rousseauniano, Onfray não poupa adjetivos: trata-se de um homem "azedo, colérico, paranoico, misantropo, megalômano". Suas ideias, lembra Onfray, "nas mãos de personagens sinistros, tornaram-se armas de destruição em massa".
A filósofa e escritora Élisabeth Badinter ressalta o lado misógino de Rousseau, cujos romances e tratados atribuem à mulher um papel estritamente doméstico e materno. Ela mesma uma autora feminista, refere-se a Rousseau como o autor "antifeminista por excelência", ressalvando que, embora muitos autores da época, entre eles Voltaire, já propusessem a igualdade dos sexos, o feminismo como tal ainda estava longe de surgir.
O século de Rousseau foi o tempo dos chamados "déspotas esclarecidos", reis com poderes absolutos (ou quase), mas com os olhos na modernidade. Voltaire se instalou na corte prussiana para aconselhar o rei Frederico II. Foi no suntuoso castelo de Sans Souci, nos arredores de Berlim, que o autor de "Cândido" (1759) completou seu livro "O Século de Luís XIV". Em Portugal, o rei José I entregou as rédeas do reino ao homem que salvou o país do caos, quando um terremoto destruiu Lisboa em 1755. Era Sebastião José de Carvalho e Mello, o Marquês de Pombal.
Na Rússia, a imperatriz Catarina II, alemã de nascimento, juntou na corte um séquito de sábios, incluindo o físico e matemático Leonhard Euler, que batiza teoremas de cálculo, geometria e mecânica. Quando Voltaire e Diderot tiveram dificuldades financeiras, a imperatriz comprou suas bibliotecas, mas permitiu que as guardassem consigo, alegando a dificuldade de transportar os livros para a Rússia.
O espírito modernizante e revolucionário atravessou o Atlântico e inspirou os "pais fundadores" da república americana. Benjamin Franklin passou uma temporada na França, onde frequentou os salões do iluminismo, e Thomas Jefferson era um grande leitor de Montesquieu, o autor de "O Espírito das Leis" (1748), que teorizou a divisão dos poderes políticos em executivo, legislativo e judiciário. Jefferson também invocou a inspiração do "Contrato Social" de Rousseau. Era o "Século das Luzes" derrubando monarquias e fundando nações.
Rousseau, ao contrário, pouco pôde contar com as boas intenções dos poderosos da época. Desde a infância, não teve motivos para ver com bons olhos o funcionamento da sociedade. Sua mãe (Suzanne) morreu de parto e seu pai (Isaac, um relojoeiro) foi obrigado a fugir de Genebra, então uma cidade-Estado (a incorporação à Suíça aconteceu em 1815), por ferir um militar numa briga. O pequeno Jean-Jacques, então com dez anos, foi viver com um tio e, pouco depois, um pastor de nome Lambercier.
Em suas "Confissões", Rousseau relembra esse período, passado nos campos próximos à cidade natal, como o mais feliz de sua vida. Mas foram dois anos, apenas. Ainda adolescente, Jean-Jacques voltou a Genebra, onde se tornou aprendiz de gravura com Abel Ducommun, descrito como "brutal e autoritário". Aos 16 anos, no fim de uma noitada passada entre amigos na região vizinha (francesa) da Savóia, o futuro filósofo deu com a cara nos portões trancados de Genebra. Em vez de sentar para esperar a manhã, preferiu cair no mundo.
Daí por diante, sua biografia é uma sucessão de mudanças, muitas delas forçadas, outras fruto da paranoia: após o banimento do "Contrato Social" e de "Emílio", Rousseau passou a ver em todas as críticas que recebia um complô para derrubá-lo. O filósofo renegou a fé calvinista em que foi criado, para abraçar o catolicismo. Depois, mudou de ideia e voltou à religião de seus pais e de sua cidade. Viveu em Annecy, Lyon, Paris, Lausanne, Neuchâtel, Ermenonville, Chambéry e Londres. Sua estadia na Inglaterra não durou muito: convidado pelo filósofo David Hume, Rousseau rapidamente se convenceu de que o escocês estava envolvido em um complô contra ele e partiu às pressas.
De exílio em exílio, Rousseau terminou a vida empobrecido, vivendo como copista de música em Paris e, mais tarde, como agregado do marquês de Girardin, no castelo de Ermenonville. Ao morrer, em 2 de julho de 1778, foi enterrado na ilha lacustre de Peupliers, em plena natureza.
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Reportagem por  Por Diego Viana | De São Paulo
Fonte: Valor Econômico on line, 08/06/2012 

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