segunda-feira, 8 de julho de 2013

Dostoiévski: “A consagração do profeta” (Manuel da Costa Pinto)



Rodrigo Menezes*
 
Com Dostoiévski: O Manto do Profeta (1871-1881), Edusp conclui a publicação da monumental biografia do romancista russo escrita pelo crítico 
norte-americano Joseph Frank

Numa biografia de E. M. Cioran, o ensaísta Patrice Bollon, após assinalar que Dostoiévski era a fonte primordial do filósofo romeno, nota que na França o autor de Os Demônios é visto sobretudo como romancista ou, “no limite extremo, como um genial psicólogo das profundezas da alma humana”. E acrescenta: “Ora, na Rússia – e não esqueçamos jamais o peso, para Cioran, da cultura ortodoxa e de suas leituras de Chestov e Berdiaev – trata-se de uma evidência para todos os pensadores: Dostoiévski é também um metafísico; e, derivada de sua visão do homem, há nele toda uma concepção da Política, que aliás é freqüentemente qualificada de ‘reacionária’ ” (Cioran, l’Hérétique, Gallimard, p. 174).

O fato de Cioran – filósofo que abdicou do vitalismo de suas referências eslavas para se converter às ironias e ao racionalismo da língua francesa – ter conservado Dostoiévski como uma espécie de bússola de seu ceticismo revela um pouco das ambigüidades que até hoje cercam a recepção do escritor russo.

Afinal, o criador do romance polifônico (segundo a tipologia de Bakhtin) foi, além de um revolucionário da forma, um ideólogo e moralista que passou do socialismo utópico para o ultranacionalismo, um militante político que, após a condenação à morte por conspiração e os serviços forçados na Sibéria, tornou-se devoto do czar e de uma Igreja destinada a converter-se em Estado e a liderar a missão regeneradora do povo russo sobre terra.

O credo de Dostoiévski soa exótico como a cúpula das catedrais bizantinas, mas preserva sua força messiânica para além dos dogmas do cristianismo ortodoxo ou das proclamações do movimento eslavófilo. O inventor de Mychkin (O Idiota) e Stavróguin (Os Demônios) fala sempre de um além que, não deixando de ser religioso, é sobretudo um mais-além do homem. Foi isso que seduziu pensadores ateus como Lukács, Sartre, Camus ou Cioran. E é esse caráter messiânico que confere singularidade a seus romances e profundidade inaudita a suas personagens – perto das quais as personagens da literatura pregressa parecem sempre um pouco estereotipadas ou superficiais.

Como, porém, contemplar o caráter visionário de Dostoiévski sem pôr a perder o fato de que ele é acima de tudo um escritor – talvez o maior de todos – e, ao mesmo tempo, como descrever a força inexaurível de sua ficção sem ignorar que ela ultrapassa o âmbito da invenção artística?

É essa tarefa que Joseph Frank assume no último volume do empreendimento sem precedentes representado pelos cinco tomos de sua biografia do escritor russo. Com Dostoiévski: O Manto do Profeta (1871-1881) completa-se um ciclo que se iniciou nos EUA em 1976 (ano de publicação do primeiro volume pela Princeton University Press) e teve sua contrapartida brasileira inaugurada pela Edusp em 1999, quando aqui saiu em português Dostoiévski: As Sementes da Revolta (1821-1849). Seguiram-se Dostoiévski: Os Anos de Provação (1850-1859), Dostoiévski: Os Efeitos da Libertação (1860-1865) e Dostoiévski: O Anos Milagrosos (1865-1871) – fruto de um trabalho de pesquisas e de um mergulho no universo cultural russo que começou muito antes e que renderia ainda o volume Pelo Prisma Russo – Ensaios sobre Literatura e Cultura, lançado pela Edusp em 1992.

Comentando o caráter monumental de sua biografia, Frank escreve no prefácio desse quinto volume:
“Em colóquio realizado, em 1989, na Stanford University, dedicado aos trabalhos de Ian Watt e aos meus, alguém me perguntou se era realmente essencial devotar tantos volumes a um único autor (na época, já tinham sido publicados três tomos dessa série). Segundo me lembro, respondi que, se eu estivesse tratando do autor apenas enquanto indivíduo, talvez não fossem precisos tantos volumes; mas, como estava escrevendo igualmente uma história condensada da cultura russa do século XIX, cujo centro era ocupado por Dostoiévski, achava minha ‘prolixidade’ plenamente justificada. Na verdade, esse autor enfocara em seus romances todos os problemas dessa cultura – não no nível em que seus contemporâneos os analisaram usualmente, mas transformando-os com base em sua própria visão escatológica e messiânica. E a reação enlevada que essa visão despertou na época torna muito importante a possibilidade de elucidá-la para nós próprios.”

Temos aqui, portanto, “a biografia de toda uma época centrada em torno de Dostoiévski”, conforme definiu João Alexandre Barbosa ao comentar esse último tomo no ensaio “Dostoiévski sob o Manto do Profeta” (Mistérios do Dicionário, Ateliê). E uma centralidade que não pode ser atribuída exclusivamente a sua obra de ficcionista – daí o subtítulo provocador do volume que encerra a biografia.
 
Professor de literatura comparada e eslava das universidades de Princeton e Stanford, Joseph Frank é um crítico insuspeito de simpatias por interpretações extra-literárias do fenômeno estético. Formado na escola norte-americana do close reading, da leitura cerrada dos elementos poéticos, tornou-se reconhecido como teórico ao publicar, em 1945, o ensaio “Spatial Form in Modern Literature” – posteriormente republicado em The Idea of Spatial Form, ao lado de textos que desdobram o conceito e respondem a algumas restrições feitas a sua aplicação de categorias formalistas de análise da poesia à estrutura narrativa da prosa.

Se o rigor textual de Frank é um traço de seu percurso, não o impede de enxergar na obra de um autor como Dostoiévski conteúdos que só podem ser amplamente compreendidos em seu contexto de origem. Vem daí a ambivalência do título e da própria metodologia de Frank. O mesmo crítico que afirma que, se quisermos fazer justiça ao romancista, devemos esquecer as questões ideológicas e os problemas sociopolíticos em que estão envolvidas suas principais personagens, não hesita em afirmar que o enfoque desse último volume é a transformação do artista Dostoiévski em homem público:

“Os últimos dez anos da vida de Dostoiévski, tema deste volume, marcam o término de extraordinária carreira literária e de uma vida que se elevou às alturas e desceu às profundezas da sociedade russa. No curso desses anos, muitos – mesmo aqueles que discordavam dele (e às vezes de forma bastante violenta) – encaravam Dostoiévski nas questões sociopolíticas com uma certa reverência e viam em suas palavras uma visão profética que iluminava a Rússia e seu destino. Quando, nas sessões de leitura – de que participava com freqüência – lia um de seus poemas prediletos, ‘O Profeta’, obra poderosamente evocativa de Púchkin, seus ouvintes hipnotizados sentiam que ele mesmo estava assumindo o papel. Atingiu uma estatura inaudita, fato que surpreendeu até mesmo seus amigos e admiradores, e superou todos os limites pessoais e políticos. Aos olhos da grande maioria do público letrado, converteu-se num símbolo vivo de todo o sofrimento que a história impusera ao povo russo, e de todo o anseio deste povo por um mundo ideal de amor e harmonia fraternos (cristãos).”

Comparado aos quatro volumes anteriores, este quinto tomo tem uma quantidade muito menor de acontecimentos dramáticos, além de compreender um período em que a produção dostoievskiana encontra-se focada em poucas obras. Não permite, portanto, a variedade interpretativa que os leitores haviam encontrado, por exemplo, em Os Anos Milagrosos – que compreendia a fase de redação de Crime e Castigo, O Idiota e Os Demônios. Ainda assim, trata-se do tomo mais extenso – e isso, certamente, porque foi nessa última década de vida que Dostoiévski excedeu o papel que vinha desempenhando até então, fenômeno que exige o exame detido de todas as nuances da sociedade russa.

Frank descreve o retorno de Dostoiévski da Europa (onde passara quatro anos com a segunda mulher, Anna Grigorievna) e sua lenta reinserção nos círculos literários, com a criação de uma pequena editora que lhe permitiu deixar de ser um “proletário das letras” e com uma colaboração regular em periódicos conservadores ou populistas como O Cidadão eNotas da Pátria (onde publicou o romance O Adolescente).

É nesse contexto que Dostoiévski se transforma no arauto das transformações políticas e espirituais que ele celebrou, como se falasse diante de um espelho, no famoso discurso em homenagem a Púchkin, em 1880, no qual o poeta deBoris Godunov é descrito como um profeta. Obviamente, tal consagração não cancela as contradições desse autor que apostava na alma russa, mas que tinha de seu povo uma imagem que beirava a repulsa: “O povo russo é grosseiro e ignorante, devotado à escuridão e à depravação, ‘bárbaros à espera da luz’.” Da mesma maneira, o portador das palavras do Evangelho não conseguia justificar um anti-semitismo disseminado por seus livros e que agora, celebridade da cena literária e política, ele discutia no Diário de um Escritor.

Não seria exagero dizer que esse diário representa, ao lado de Os Irmãos Karamázov, o momento em que Dostoiévski se dissocia da imagem convencional do romancista – tanto em termos formais quanto ideológicos.

Pois se o Diário é um conjunto rapsódico de textos ora ficcionais, ora jornalísticos (incluindo crítica literária) e não pode ser enquadrado num gênero – como mostra o trecho de Frank reproduzido nesta página –, Os Irmãos Karamázovtampouco corresponde a uma idéia tradicional de romance que o próprio Dostoiévski já havia dissolvido nos seus “anos milagrosos” – mas que agora levava a extremos inimagináveis, com seu misto de trama policial, ensaio, alegoria política e panfleto teológico.

Frank faz leituras minuciosas do Diário e do romance no qual culmina a vida de Dostoiévski – leituras que incidem sobre as ousadias formais de Os Irmãos Karamázov, destrincham o subtexto das disputas teológico-políticas que conformam o livro e dissecam ressonâncias internas à obra dostoievskiana. Ao final, o profeta e o escritor convergem: se não anteviu o futuro da Rússia ou da humanidade, Dostoiévski incorporou definitivamente à literatura a idéia de que a representação realista deve incluir um mundo interior de premonições e um mundo exterior de utopias, modificando o presente e a própria maneira de eternizá-lo.

Uma vida cristalizada

Leia abaixo a descrição que Joseph Frank faz do Diário de um Escritor, publicação com artigos integralmente redigidos por Dostoiévski e publicados de modo irregular de 1873 até 1881, ano de sua morte.

O Diário de um Escritor é uma mistura tão grande de material disparatado que fica difícil dar uma noção sofrível de seu conteúdo. As idéias propriamente ditas do Diário já eram conhecidas desde a atividade jornalística anterior do autor, bem como desde os vôos ideológicos de seus romances. No entanto, receberam uma nova vida e uma nova cor graças ao constante desfile de exemplos e ilustrações mais recentes, extraídos de sua onívora leitura da imprensa corrente, de seu amplo conhecimento da história e da literatura tanto russa quanto européia e, muito freqüentemente, dos fatos de sua própria vida. Essas revelações autobiográficas foram, certamente, um dos principais atrativos do Diário e contribuíram enormemente para seu encanto; os leitores sentiam que estavam realmente sendo admitidos na intimidade de um de seus grandes homens. Esse constante intercurso entre o pessoal e o público – a incessante mudança de nível entre os problemas sociais do momento, as ‘questões malditas’ que sempre infectaram a vida humana, e as espiadas nos recessos da vida particular e na sensibilidade de Dostoiévski – revelou-se uma combinação irresistível que deu ao Diário seu cunho literário único.

Além do mais, o Diário serviu de estímulo não só para os contos e esquetes já mencionados, mas também, como o autor já antecipara desde o início, para o grande romance que planejava escrever. Vez por outra aparecem motivos que logo serão utilizados n’Os Irmãos Karamázov; e um dos fascínios desse vasto corpus jornalístico, especialmente para os leitores de hoje, é observar a cristalização desses motivos à medida que emergem espontaneamente durante o tratamento de um ou outro assunto. Mesmo que não seja literalmente um caderno de notas, o Diário preenche essa categorização no sentido exato da palavra. É, verdadeiramente, a ferramenta de trabalho de um escritor nos primeiros estágios da criação – um escritor que procura (e encontra) a inspiração para seu trabalho, à medida que, de pena na mão, inspeciona os fatos correntes e tenta lidar com seu sentido mais profundo.

Extraído de Dostoiévski: O Manto do Profeta (1871-1881), de Joseph Frank
-----------------------
 Resenha publicada no Website da Edusp
Fonte:  http://emcioranbr.wordpress.com/2013/07/08/consagracao-do-profeta/
Imagem da Internet 

Nenhum comentário:

Postar um comentário