IVAN MARTINS*
Quem gosta de viajar talvez já tenha pensado nisso: as pessoas são como
cidades. Quando nos envolvemos com elas, quando passamos a conhecê-las
intimamente, é o equivalente a caminhar sem mapa por ruas nas quais
nunca pisamos, por bairros que não sabíamos existir. O prazer desse
passeio inaugural é irreproduzível. Você poderá voltar às mesmas ruas
muitas vezes, deve fazê-lo na verdade, mas nenhum outro momento terá a
surpresa daqueles instantes iniciais, quando os nossos olhos são puros e
o nosso coração é virgem outra vez. Pode-se amar uma cidade a vida
inteira, mas é impossível descobri-la duas vezes.
A imagem das pessoas como cidades me ocorreu na semana passada,
enquanto conversava com uma amiga que está redescobrindo o mundo.
Falávamos de novos relacionamentos, sobre a luz fresca que eles despejam
sobre a nossa vida, de como nos despertam a totalidade dos sentidos.
Então surgiu a ideia de que as pessoas são como cidades ensolaradas e
coloridas – às vezes sombrias e chuvosas - que vão sendo exploradas à
medida que as conhecemos. Ou à medida que consintam em ser devassadas.
Se eu olhar para o meu passado – e você para o seu – descobriremos ter passado por diferentes geografias humanas.
Havia uma moça, aos 19 anos, que era uma tempestade em movimento.
Enquanto estivemos juntos, eu descobria, a cada passo, ruas sombrias que
me assustavam, placas com direções contraditórias, terrenos abandonados
e hostis. Na cidade que era ela, quanto mais eu andava mais perdido me
sentia. Consegui espantar o medo do que via em troca do prazer de estar
ali, mas isso não foi suficiente. Antes que eu tivesse tempo de fazer um
mapa, de ensaiar a mais elementar das compreensões, ela se foi. Só fui
revê-la anos depois, ainda impenetrável, ainda perturbadora.
Com o passar do tempo, eu, que me julgava um amante da sombra, descobri
os prazeres da luz – e o fascínio daquilo que é, ao mesmo tempo,
transparente e intraduzível.
Uma mulher de imensa delicadeza entrou na minha vida e a encheu de sol.
Mais que uma cidade, ela me pareceu um país inteiro. Andei tanto por
suas ruas, me perdi tanto descobrindo, que não notei que havia ficado
sozinho. Tive de deixar a cidade que eu amava e aquilo foi como um
exílio. Passaram-se anos antes que eu encontrasse outra pessoa tão
marcante, outra cidade tão nova e diferente da minha, outro lugar de
onde não queria me afastar. Explorei essa nova cidade com a urgência de
quem nunca vira nada semelhante, arfando e rindo, tomado pela alegria e o
colorido do que ia percebendo. Nunca me senti tão acolhido, nunca fui
tão feliz. Mais que uma cidade, havia uma festa ao meu redor. Quando, ao
final, as luzes se apagaram, eu havia me tornado outro homem –
suavizado pela experiência tranquila de amor, capaz de entender,
finalmente, o que me cabe e o que me completa.
Como sabem os amantes das viagens, uma cidade leva a outra. Explorar é
explorar-se. Conhecer é conhecer-se. Cada experiência nos prepara para a
outra. Cada mudança antecipa a outra que está por vir. Assim, aos
trancos, cheguei à cidade onde me encontro. Não a havia antecipado.
Quando a vi, me pareceu tão linda que não me cabia, mas fui ficando,
como um usurpador ou um clandestino. Tornou-se o meu lugar. Às vezes
descubro uma esquina nova, de vez em quando me perco na beira do Rio,
fico. Gosto do que conheço, sinto que há muito mais a descobrir.
Percebo, meio encantado, que esta cidade cresce à frente dos meus
passos, ao meu redor, comigo. Há nela algo de inesgotável que reage a
mim. É a minha cidade. Cuido dela, que me faz feliz.
Minha amiga me faz notar, porém, que nem todas as pessoas são cidades.
Algumas serão vastos continentes gelados. Outras, apenas becos sem
saída.
Posto diante dessa imagem poderosa, me pergunto quem sou eu. Um
quarteirão deserto e árido? Uma praça com bancos coloridos? Uma
cidadezinha preguiçosa plantada num vale? Uma metrópole à beira mar,
varrida pelo vento e pela sirene dos navios? Eu não sei. Não sabemos, na
verdade. E nem nos cabe dizer. Na verdade, temos de ser descobertos,
nomeados e mapeados. É pelo olhar amoroso do outro que nos revelamos. É
no olhar do outro que nos re-conhecemos. Como uma cidade. Um país. Um
mundo que o outro queira habitar – e transformar em sua casa.
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* Editor-executivo de ÉPOCA Autor do livro Alguém especial- Fonte: http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2013/08/voce-e-uma-bcidadeb.html Imagem da Internet
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