GILLES-GASTON GRANGER: mestre da razão: uma homenagem ao filósofo.
José Arthur Giannotti*
Um dos principais nomes da epistemologia
do século 20, o professor francês ajudou
a criar a faculdade de filosofia da USP
No início de 1950, fui assistir à minha primeira aula lá na
Rua Maria Antônia. Entra na sala um professor de altura mediana, rosto
redondo e sorridente e logo começa falando francês. Fazia parte daquela
missão estrangeira de várias nacionalidades, que viera ao Brasil para
fazer funcionar a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, espécie de
espelho de todo o saber, que haveria de ajudar velhos e novos institutos
paulistas a se integrar numa verdadeira Universidade.
Éramos 10 alunos no primeiro ano, e quatro se entusiasmaram de
tal forma com as aulas do professor Gilles-Gaston Granger que terminaram
lhe pedindo que continuasse suas lições por mais dois anos. Mais tarde
ele me disse que foram as aulas mais prazerosas desta sua primeira
estadia no Brasil – depois disso houve muitas outras.
Foi assim que mergulhamos na epistemologia francesa, marcada por
George Ganguilhem, Gaston Bachelard e Jéan Cavaillès, mas enriquecida
com excursões na lógica matemática. Esta, naquela época, ainda estava
encruada na França, depois da perda de seus maiores lógicos, Cavaillès e
Lautman, fuzilados pelos alemães.
Granger trabalhava na sua tese de doutoramento, “Pensée Formelle
et Sciences de L’homme”, demarcando aquele terreno que haveria de
cultivar toda a vida. Por certo, com grandes transformações. No entanto,
como bom discípulo de Aristóteles e de Kant, se perguntava como as
estruturas formais do pensamento haveriam de se mobilizar e se ampliar e
se modificar até capturar finuras dos comportamentos humanos. Um de
seus melhores livros é “Essai d’une Philosophie du Style”, de 1968.
Entendia por estilo a maneira peculiar pela qual um conteúdo é pensado e
informado, mas seguindo formas que sempre haveriam de ter como
paradigma estruturas matemáticas.
Para Granger, a razão é um processo humano objetivado, que só
pode ser apreendido pela inspeção cuidadosa de seus produtos. Não é à
toa que às vezes se dizia funcionário dela. Obviamente isso o leva ao
Tractatus de Wittgenstein, que traduz em 1993. Particularmente
interessava-lhe as relações entre este filósofo e as ciências, estando
mais próximo do positivismo lógico do que dos wittgensteinianos de
Oxford, que lhe pareciam ter sucumbido aos encantos do psicologismo.
É nessa fissura que eu mesmo me encontrei. Voltando para a
Europa, Granger foi substituído por Claude Lefort, cujo primeiro curso
foi sobre História e Existência, lidando sobretudo com Weber, Marx e
Merleau-Ponty. Até então, para mim, Marx era apenas uma referência
política; tomá-lo como um filósofo desarrumava o espaço onde ainda
pensava. E com Marx veio o interesse pela fenomenologia husserliana, que
trazia as estruturas lógicas para o campo da consciência transcendental
e para o mundo da vida.
Em 1956, uma bolsa da Capes e do governo francês me permitiu
estudar em Rennes, na Bretanha, onde Granger estava lecionando. Lá
conheci Victor Goldschmidt que logo foi me dizendo, mas com a maior
delicadeza possível, que meu tema de doutoramento, a definição, era
demais abrangente, pois perpassava toda a história da filosofia.
Afundei-me na lógica de Husserl e o próprio Granger me apresentou Jules
Vuillemin, seu amigo íntimo, que, na Escola Normal, ministrava um curso
sobre as Investigações Lógicas. E foi assim que fui para Paris, e foi
assim que me tornei amigo daqueles filósofos franceses que fizeram minha
cabeça.
Granger era ciumento, não via com bons olhos minhas viagens pela
fenomenologia e pelo marxismo. Uma vez, já em Aix-en-Provence,
apresentou-me como um discípulo que o traíra. Traição que reforçou nossa
amizade, que solidificou a necessidade de estarmos juntos trocando
experiências diversificadas, que aumentou o cuidado de um com o outro
para evitar que um arranhão criasse uma distância entre nós.
A sólida formação que todos eles me deram me preveniu contra os
deslumbres do pós-estruturalismo francês, que tentou, a meu ver, uma
combinação impossível entre a “fenomenologia” heideggeriana e o
estruturalismo de Ferdinand Saussure. Para Heidegger, o sentido se forma
antes de linguagem, enquanto para Saussure unicamente pelas diferenças
distintivas dos sinais constituindo-se em símbolos. Sem a garantia da
diferença-identidade do ser e do ente, a formação da linguagem se dá sob
a égide de um sistema de regras “previamente” dado. Granger pressentiu
essa dificuldade e se agarrou à lógica formal, posicionando-se, assim,
contra o novo estruturalismo. Visto que essa onda ainda está na moda,
ele ficou fora dela – na França e no Brasil. Por ironia, ele sucedeu a
Michel Foucault no Colégio de França. Não percebendo que Foucault foi
maior que o pós-estruturalismo, pois, como afirmou o grande historiador
Paul Veyne, ele revolucionou a própria história, Granger teve muita
dificuldade em fazer, como é de praxe, o elogio de Foucault em sua aula
inaugural no Colégio.
Gilles-Gaston Granger morreu em 24 de agosto deste ano de 2016,
aos 96 anos. Deixa marca profunda, embora hoje pouco visível nos estudos
filosóficos brasileiros. Este artigo tenta atiçar a lembrança do que
ele significou para todos nós. Já no meu caso, sua importância é ainda
maior, pois também me legou sua família, da qual aprendi a participar.
------------------ * Filósofo. Escritor. Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,um-mestre-da-razao,10000075162 -11/09/2016 Foto: Louis MONIER | PAGOS
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