domingo, 4 de setembro de 2011

Mente=estômago

Rubem Alves*
Há muito estou fascinado pela relação analógica que existe entre pensar e comer. Relação analógica é isto: comer e pensar são funções parecidas; quem entende o processo de comer entende o processo de pensar. Quem pensa "comer" está pensando "pensar" e vice-versa. Os professores deveriam tomar lições com as cozinheiras... Não sou o único a perceber esta relação. A semelhança entre o comer e o pensar tem sido percebida há milhares de anos. A Bíblia se inicia com o relato de como a serpente seduziu Adão e Eva dizendo-lhes que eles ficariam sábios se comessem uma fruta. E a mesma Bíblia termina com o livro de Apocalipse que descreve uma refeição insólita: o vidente João se encontra com um anjo, e esse lhe ordena comer um livro. Santo Agostinho percebeu a mesma coisa e nas Confissões disse que a memória funciona como um estômago de ruminante. Nietzsche amplia Agostinho e diz que a mente inteira é um estômago, e compara a atividade intelectual do sábio (por oposição à do cientista) à atividade de um degustador que cuidadosamente discrimina entre o "gostoso" e o "não gostoso". Novalis, por sua vez, diz que o filósofo trabalha os seus problemas da mesma forma como os homens trabalham a comida. Um problema não resolvido é uma comida não digerida. Mário Quintana confessa que o seu desejo era que os seus poemas fossem como um fruto carnudo que mata de prazer quem o come, antes mesmos que o seu sentido seja compreendido. Eu mesmo cheguei a sugerir que caminho para as salas de aula, nas escola, deveria passar pela cozinha...

O MELHOR PIORA: Jay W. Forrester, professor de administração do MIT, enunciou a seguinte lei das organizações: "Em situações complicadas esforços para melhorar as coisas frequentemente tendem a torná-las piores, algumas vezes muito piores e, ocasionalmente, calamitosas". Essa mesma lei foi enunciada há quase dois mil anos de forma mais simples e poética que todos podem compreender: "Não se costura remendo de tecido novo em roupa podre. Porque o remendo de tecido novo rasga o tecido podre e o buraco fica maior do que antes" (Jesus).


O ESSENCIAL: O livro sagrado do Taoísmo, o Tao-Te-Ching, diz que estamos constantemente divididos: de um lado, a tentação de 10 mil coisas que demandam ação. Todas, não essenciais. Do outro lado está uma única coisa, essencial... Sabedoria é deixar o sufoco das 10 mil coisas não essenciais e focalizar os olhos na única coisa que é essencial.
POLÍTICA E JARDINAGEM: "Paraíso" - jardim - é uma palavra que se deriva do grego "paradeisos" que por sua vez, vem do antigo pérsico "pairidaeza", que quer dizer "espaço fechado". Jardim é um espaço fechado. Por que fechado? Para ser protegido. Para que seja nosso. Fora dos muros que fecham o jardim está o espaço selvagem, ainda não moldado pelo desejo de vida e beleza que mora nos seres humanos. Política é a arte de criar espaços. Política é a arte da jardinagem aplicada ao espaço público. Deixando de lado as 10 mil coisas a serem feitas, digo que a missão das prefeitas e dos prefeitos é criar esse espaço necessário para que a vida e a convivência humana possam acontecer. Tudo o mais é acessório. Mas do jeito como os crimes de colarinho branco e os crimes dos marginais acontecem sem que sejam punidos parece que os muros que protegiam o paraíso foram derrubados. Penso, inclusive que a palavra "marginal" deveria ser abolida. "Marginal" é quem ora nas margens. Mas faz muito que eles saíram das margens. Transitam por todos os lugares...

SONHO: "Sonho que se sonha só é só um sonho. Sonho que se sonha junto é realidade". (Raul Seixas).

CULTURA E PRIVADAS: Escrevi uma crônica com o título "A função cultural das privadas". Conversando com a Vera, que trabalha em empresa, relações humanas, tivemos uma ideia brilhante. E se as empresas passarem a colocar, semanalmente, na porta diante do trono, um trecho literário curto, para ser lido em dois minutos? Naquele lugar todos se sentem compelidos à leitura! Os resultados poderiam surpreender!

PAPEL HIGIÊNICO PEDAGÓGICO: Vi, muitos anos atrás, nos Estados Unidos, uma coisa insólita, que jamais passaria pela minha cabeça: um papel higiênico que tinha, em cada folha, um aforismo, máxima ou conselho. O usuário não resistia à tentação e, antes de fazer o uso normal do papel, lia o que estava escrito, o que contribuía decisivamente para a sua formação intelectual e espiritual. Imaginei uma melhoria nessa ideia: livros inteiros impressos no papel higiênico. Assim, aos poucos, assentada na privada, a pessoa iria lendo as grandes obras da literatura mundial. Vai aqui uma sugestão para as fábricas de papel higiênico. Um bom moto de propaganda seria: "Use o papel higiênico "Inteligente", que dá cultura enquanto limpa"...
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* Teólogo. Escritor. Educador
Fonte: Correio Popular on line, 04/09/2011
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