terça-feira, 6 de setembro de 2011

Mutações elogio à preguiça

Adauto Novaes*

A proposta de um ciclo de conferências sobre a preguiça pode parecer estranha. Talvez fosse mais correto refletir sobre seu oposto, o trabalho, uma vez que os sociólogos dizem que nunca se trabalhou tanto como hoje. Mas, por estar tão próximo e envolvido, de corpo e alma, nas ideias de progresso e na construção da civilização técnica, muitas vezes o trabalhador perde a consciência da sua condição. O mundo do trabalho recebe de cada trabalhador sua força, sua ação e seus impulsos. A existência deste mundo, tal como o vemos, será tão mais potente quanto mais ignorarmos que ele vem de nós, de nosso espírito. A escolha do ocioso não é, pois, arbitrária: ao se pôr à distância, ele pode ver melhor as contradições e dizer qual o sentido da vida no mundo do trabalho incessante. E talvez dar razão a Albert Camus: “São os ociosos que transformam o mundo porque os outros não têm tempo algum”.
 "Na era do grande desenvolvimento tecnocientífico e digital, maravilhosas máquinas “economizam” o trabalho mecânico, mas criam, ao mesmo tempo, dois novos problemas: primeiro, uma espécie de intoxicação voluntária, isto é, “mais a máquina nos parece útil, mais ela nos torna incompletos”. Isto é, a máquina governando quem a devia governar;
daí decorre o segundo problema, bem mais complexo:
tantas potências auxiliares mecânicas
 tendem a reduzir “nossas forças de atenção e
de capacidade de trabalho mental”, o que se relaciona aos seguintes fenômenos: impaciência, rapidez e
 volatilidade nunca antes vistas."

Lemos em A comédia humana, de Balzac, as deliciosas viagens de Louis Lambert em meio às palavras: “Quel beau livre ne composerait-on pas en racontant la vie et les aventures d’un mot?”.
Sabe-se que uma única palavra é suficiente para arruinar reputações e, entre todas, a preguiça é, certamente, uma das mais suspeitas e perigosas. Dela decorre longo cortejo de acusações bizarras, mas também noções de obras de arte, poesia, romance, pinturas, reflexões filosóficas: o preguiçoso é indolente, improdutivo, nostálgico, melancólico, indiferente, distraído, voluptuoso, incompetente, ineficaz, lento, sonolento, silencioso: quem se deixa levar por devaneios. Apesar da oposição, preguiça e trabalho guardam um misterioso parentesco, quase simétrico e especular. A vida íntima que a preguiça leva com o trabalho pode-nos revelar que o preguiçoso trabalha muito. Como?
Para o preguiçoso, “é preciso ser distraído para viver” (Paul Valéry), afastar-se do mundo sem se perder dele, sendo ele, exatamente por isso, acusado de em nada contribuir para o progresso. Além de praticar crime contra a sociedade do trabalho, o preguiçoso comete ainda pecado capital. Pela lógica do mundo do trabalho e da Igreja, o preguiçoso deve, portanto, sentir-se culpado e pagar pelo que não faz.
Mas, ao ver de modo peculiar o fazer, o ocioso pode prestar um grande serviço e ajudar a responder à velha questão moral: o que devo fazer? Dependendo da resposta, teremos diferentes definições do que seja o homem, a política, as crenças, o saber, nossa relação com o mundo, e, principalmente, nossa relação com o trabalho. A resposta pode dizer-nos um pouco mais precisamente, não apenas o que fazemos, mas também o que o trabalho faz em nós. Na era do grande desenvolvimento tecnocientífico e digital, maravilhosas máquinas “economizam” o trabalho mecânico, mas criam, ao mesmo tempo, dois novos problemas: primeiro, uma espécie de intoxicação voluntária, isto é, “mais a máquina nos parece útil, mais ela nos torna incompletos”. Isto é, a máquina governando quem a devia governar; daí decorre o segundo problema, bem mais complexo: tantas potências auxiliares mecânicas tendem a reduzir “nossas forças de atenção e de capacidade de trabalho mental”, o que se relaciona aos seguintes fenômenos: impaciência, rapidez e volatilidade nunca antes vistas. Assim escreveu Valéry: “Adeus, trabalhos infinitamente lentos, catedrais de trezentos anos cujas construções intermináveis acomodavam curiosas variações e enriquecimentos sucessivos... Adeus, perfeições da linguagem, meditações literárias e buscas que tornavam as obras, ao mesmo tempo, comparáveis a objetos preciosos e a instrumentos de precisão! [...] Eis-nos no instante, voltados aos efeitos de choque e contraste, quase obrigados a querer apenas o que ilumina uma excitação de acaso. Buscamos e apreciamos apenas o esboço, os rascunhos. A própria noção de acabamento está quase apagada”.
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* Escritor. Filósofo. Educador.
Texto convocando para o Ciclo de palestras - portal SESC/SP

11 de agosto a 07 de outubro

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