domingo, 11 de setembro de 2011

Nem vítimas nem algozes

Filósofo condena perda de direitos
dos muçulmanos no Ocidente e critica
falta de compreensão mútua

Para Ramadan, os islâmicos precisam falar não só de religião,
mas de desemprego e desigualdade

Suíço por nacionalidade, egípcio por memória, muçulmano por religião e europeu por cultura." É assim que o filósofo Tariq Ramadan costuma se definir. Daí se entende porque a questão da identidade muçulmana no século 21 é tão central em sua obra. "O pó do colapso das torres nem bem tinha se assentado e nós, muçulmanos, fomos chamados a nos explicar e desvincular nossa imagem dos extremistas. Dez anos depois, sinto que falhamos."
Para alguns, Ramadan é um teórico progressista do Islã e, talvez com exagero, o "Martin Luther muçulmano". A revista americana Foreign Policy o colocou entre os cem maiores intelectuais de nosso tempo. A Time o chamou de "inovador". Para outros, entretanto, o neto do fundador da Irmandade Muçulmana no Egito é um fanático e antissemita. Sua crítica mais ferrenha, a escritora feminista francesa Caroline Fourest, disse que ele é mais perigoso que os fundamentalistas "justamente porque soa mais razoável".
Ramadan é professor de Estudos Islâmicos Contemporâneos em Oxford, onde aceitou trabalhar depois de não ter conseguido assumir um cargo na Universidade Notre Dame, em Indiana. Em 2004, o filósofo foi banido dos Estados Unidos sob o Ato Patriótico, criado pelo governo Bush para "interceptar e obstruir o terrorismo". A acusação contra ele era de ter feito um depósito de US$ 900 para uma organização palestina que tinha ligação com o Hamas. Acadêmicos americanos se manifestaram em defesa do colega, pressionando pela liberação do visto, o que só foi feito em janeiro do ano passado.
Em seus livros Western Muslims and the Future of Islam (Oxford Press, 2003) e The Quest for Meaning (Penguin, 2010), ainda sem tradução no Brasil, o discurso de Ramadan é o da tolerância. Neles, o teórico procura mostrar como muçulmanos podem fugir dos rótulos de vítima ou algoz e desempenhar um papel positivo no Ocidente. "O islamismo é uma religião europeia", disse ele ao Aliás.
Na entrevista exclusiva a seguir, Ramadan lista perguntas que surgiram do Marco Zero: qual é a relação do Islã com a violência? É possível ser muçulmano e estar plenamente integrado no Ocidente? E explica por que os eventos dá última década fizeram dele um pessimista. "Estamos longe de uma melhor compreensão mútua, ouvir uns aos outros está cada vez mais difícil."

Depois do colapso das torres

"Os muçulmanos estão na defensiva. O 11 de Setembro e os atentados de Madri, em 2004, e de Londres, em 2005, puseram uma imensa pressão sobre as comunidades islâmicas na Europa e nos Estados Unidos. O Islã é apresentado como um dos principais problemas do Ocidente. O pó do colapso das torres nem bem tinha assentado e fomos chamados a nos explicar, a explicar a religião, a dizer quem eram os muçulmanos extremistas, os ‘maus’, e a tentar desvincular nossa imagem da deles. Dez anos depois, parece que falhamos. Digo isso porque me lembro que logo após o 11 de Setembro pesquisas de opinião apontavam que os americanos sabiam que os atentados eram responsabilidade de extremistas que não representavam o Islã. Pois bem, isso há dez anos. O cenário mudou e hoje muitos americanos consideram problemática a presença de muçulmanos nos Estados Unidos, deixando de entender que os terroristas são uma minoria e passando a ver na maioria um problema. Regredimos. Estamos longe de uma melhor compreensão mútua e ouvir uns aos outros está mais difícil.

Mesquita perto do Marco Zero

"Uma atmosfera nociva contamina os Estados Unidos. Da polêmica em torno da construção da mesquita no Parque 51 (próximo ao Marco Zero) ao Dia da Queima do Alcorão, as tensões com os muçulmanos têm aumentado. Isso mostra que precisamos participar mais da sociedade. Não podemos nos pronunciar só sobre questões relacionadas ao Islã. É nossa responsabilidade, enquanto cidadãos e muçulmanos, discutir problemas que são comuns a todos, como o desemprego, a desigualdade e a situação econômica. Alguns muçulmanos estão acuados e não se sentem plenamente em casa no Ocidente (foi um choque para mim saber que os atentados em Londres foram feitos por muçulmanos nascidos no Reino Unido). Mas creio que vêm sendo feitos progressos. As gerações mais jovens estão, aos poucos, saindo da mentalidade de gueto. Vejo que os muçulmanos votam com mais frequência, estão ativos socialmente, querem construir mesquitas e centros islâmicos. Esses são sinais saudáveis de uma presença positiva na sociedade.

Multiculturalismo

"Ao contrário do que a chanceler alemã, Ângela Merkel, disse, o multiculturalismo não falhou na Europa. Aliás, é uma história de sucesso. O pluralismo, cultural e religioso, não é mais uma opção, é fato. Nos últimos 25 anos, os muçulmanos estão mais presentes em todas as esferas da vida da Europa, principalmente as mulheres. Elas saem mais de casa, trabalham e estudam. A maior visibilidade incomoda, tornando muçulmanos alvos fáceis para o ódio de alguns. Para esses, a verdadeira integração seria se os muçulmanos fossem assimilados e, talvez, menos muçulmanos. Existe uma crise na narrativa europeia em torno da questão da nacionalidade e vivemos nos perguntando: ‘Por que estamos juntos?’ A melhor forma de lidar com isso é pôr em discussão a essência de ser europeu hoje em dia. Isso implica necessariamente uma análise crítica de quem somos. No meu livro What I Believe, mostro como a maioria dos muçulmanos europeus é leal ao seu país, fala as línguas locais e respeita as leis. Eu não preciso ser menos suíço para ser mais muçulmano.

Islamofobia
"A covardia política domina a Europa. O que é verdadeiramente perigoso é que o discurso ouvido antes na extrema direita agora é assumido pelo centro e até pelos socialistas. O absurdo foi normalizado. Na Suíça, os moderados estão dizendo que os muçulmanos querem colonizar o país. Faltam políticos capazes de assumir que os problemas enfrentados hoje pela população se referem a antigas tensões socioeconômicas. Os governantes não estão conseguindo dar soluções para os problemas que corroem a Europa e os populistas da direita extremada estão ganhando terreno. A filosofia desses partidos é espalhar fobias. Eles não estão interessados em debater, apenas em estigmatizar.

Obama muçulmano

"O Tea Party é o espelho disso do lado de lá do Atlântico. O partido tem alertado para a ‘islamização’ dos Estados Unidos. A ‘questão muçulmana’ foi e será novamente um tópico quente no debate político das eleições presidenciais. Parte do eleitorado acha que Obama é um muçulmano enrustido, outros que ele não é um ‘bom cristão’, o que o tornaria menos americano. A polêmica chegou a tal ponto que uma certidão de nascimento teve de ser providenciada. O subtexto desse discurso me assusta. Quando temos esse tipo de sentimento anti-islâmico espalhado pelo país, cria-se uma atmosfera tóxica em que muçulmanos são percebidos como ‘os de fora’. Dizer que o Islã é estranho aos valores ocidentais é uma construção ideológica que procura criar o choque entre um ‘eu’ e um ‘outro’, forçando uma visão falsa de um ‘nós’ e um sentimento de nação. O Islã não é uma religião de imigrantes. A presença de muçulmanos na Europa e nos Estados Unidos é muito antiga. Ainda assim, o Islã é entendido como a destruição da cultura ocidental. O Islã não destrói o Ocidente, enriquece-o.

Morte de Bin Laden

"O anúncio de Barack Obama da morte de Bin Laden foi eloquente, mas poucos muçulmanos deram ouvidos, pois o líder da Al-Qaeda nunca galvanizou grande apoio dos muçulmanos, apenas dos radicais.

Cartuns do profeta

"Virou um jogo destrutivo. De um lado, grupos atacam símbolos religiosos, como nas charges de Maomé, na esperança de suscitar uma reação negativa e assim provar que o Islã é fundamentalista. De outro lado, alguns islâmicos, infelizmente, respondem com violência e de maneira errada. É um ciclo vicioso em que o ódio se realimenta.

Proibição à burca

"Pode-se achar que na França, por causa da polêmica dos véus, a integração dos muçulmanos na sociedade não existe ou é permeada de atritos. Não é verdade. Não podemos confundir as controvérsias nacionais com as dinâmicas locais. Muçulmanos franceses estão entre os mais ativos e participativos em toda a Europa. Ali e no Reino Unido o maior problema enfrentado por eles é a desigualdade social, o que não é um problema só de islâmicos. Já a Holanda, que é considerado o país mais politicamente liberal da Europa, concentra um grande número de organizações anti-islâmicas. Todos os dias, na Holanda, coisas ruins são ditas sobre muçulmanos e, com frequência, o Alcorão é comparado ao Minha Luta, de Hitler.

Redução de direitos

"Para escrever What I Believe, levantei dados de todos os governos da Europa que mostram como a imensa maioria dos muçulmanos não têm problemas com leis seculares. Nunca houve tentativa de subverter a legislação nacional ou pressionar para mudá-la a fim de melhor se adaptar ao Islã. Até uns anos, a liberdade de devoção era completamente respeitada na Europa. Contudo, estamos vendo um processo no caminho contrário. Os populistas querem mudar as leis para torná-las mais restritivas para a prática religiosa. Os muçulmanos estão perdendo seus direitos enquanto cidadãos. Na França, mudaram a Constituição para banir os véus. Na Itália, idem. Na Holanda, querem banir o sacrifício religioso de animais. Nos Estados Unidos, 18 Estados têm leis em tramitação contra a sharia (lei islâmica), que é apresentada como a barbárie. E aí uma questão delicada se coloca. Como exigir nossos direitos sem criar um clima de confrontação de "nós" versus "vocês"? Precisamos aprender a lutar pelos nossos direitos enquanto franceses, não contra os franceses. É isso que chamo de lealdade crítica ao país. Você não é leal só ao respeitar as leis do país, mas quando se envolve criticamente no debate democrático. Políticos são obcecados pelo tempo presente. Nós precisamos tomar atitudes pensando no futuro. Um maior entendimento mútuo não virá a cada eleição, mas a cada geração. Infelizmente, acho que tempos difíceis se aproximam e não me espantarei se muçulmanos, sentindo-se pressionados pela redução de suas liberdades individuais, recorram a atitudes extremadas e negativas. Por isso, no curto prazo diria que sou pessimista, mas tento ser otimista no longo prazo.

Irmandade Muçulmana

"Os movimentos pacíficos no mundo árabe têm muito que ensinar. Vimos homens e mulheres protestando por mais justiça, igualdade, liberdade e o fim das ditaduras. São esses os valores muçulmanos. O Islã é isso para mim. Não sei dizer qual será o papel da religião nos novos governos, mas não vejo a Irmandade Muçulmana governando o Egito, a Tunísia ou a Líbia. O Islã é, sem dúvida, uma referência social e cultural que terá um papel a desempenhar no futuro desses países. O discurso político muçulmano está mudando rapidamente e quer distanciar-se do modelo iraniano, aproximando-se do turco. Os slogans não são mais por um Estado islâmico, mas por um Estado civil de maioria muçulmana. O discurso está mais aberto do que já foi."
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Reportagem por Carolina Rossetti - O Estado de S. Paulo
Fonte: Estadão on line, 10/09/2011

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