sábado, 3 de setembro de 2011

O amigo de fé no centro dos extremos

JOTABÊ MEDEIROS*
 
Em Israel, a presença singular de Roberto Carlos parece
 quebrar dogmas e se impor em limites longínquos,
como uma força estranha
Acho que vou agradecer, sabe, bicho?" A forma singela de Roberto Carlos definir que reação terá quando finalmente se postar frente ao Muro das Lamentações, misturando ecos do bicho-grilismo dos anos 60 com sua profunda reverência religiosa, poderia soar estranha a estranhos, os não iniciados. Primeiro, porque quem mais fala "bicho" hoje? Mas, assim como sua arte popular, a presença singular (e, para muitos, meio anacrônica) de Roberto parece determinada a quebrar dogmas, estranhamentos, e a impor-se em fronteiras extremas como uma tranquila "força estranha", na definição precisa de Caetano Veloso.
Roberto Carlos não sabe definir com precisão por que ele quer ir ao Monte das Oliveiras, ou ao Muro das Lamentações, ou ao Rio Jordão, ou à Galileia. Mas o sorriso da carioca que há quatro anos (no balcãozinho ao lado dos detectores de metais) distribui lenços para as mulheres cobrirem os braços desnudos antes de entrarem no palco sagrado do Muro das Lamentações demonstra desbragada vontade de ir ao show de Roberto Carlos. E ela sabe precisamente o que gosta em Roberto - ele tangencia todas as emoções com suas canções, embora não se detenha em nenhuma delas. Mas a mulher não sabe se poderá ir. Na quinta à noitinha, ela lamentava seus plantões na porta do Western Wall, "o local que a presença divina nunca abandonou", centro de peregrinação mais sagrado dos judeus, há mais de 2 mil anos recebendo orações.
"Por tudo que carrega de Jesus", como ele mesmo define, Jerusalém se impõe, na visão beata do mundo de Roberto, como um local obrigatório, mesmo para alguém que mistura o repertório da fé com o repertório pagão, carnavalesco da Apoteose, de conteúdo sexual, erótico, sentimental - sem que um se oponha ao outro. Ou melhor: como se um fosse decorrência natural do outro. Sem os afetos, sem o sexo, não haveria essa profusão de meninos palestinos andando de bicicleta e essas famílias imensas de judeus caminhando pelas ruas. A divisão não é da natureza.
Roberto não é profundo em sua religiosidade, não tem um grau de informação que se deduza minimamente teológico, é apenas sincero - e até demonstra temores infantis ou exagerados para um devoto. Por exemplo: sua recusa em cantar de novo um dos seus clássicos, Quero que Vá Tudo para o Inferno, deve-se ao seu apego a fantasmas neocarismáticos (não quer pronunciar a palavra "inferno"), uma devoção que o próprio cantor confessa não ter fundamentos suficientes. "Acho que vai rolar em breve, logo logo vou cantá-la", afirmou, esforçado, quando inquirido anteontem pela milésima vez sobre a ausência da música em seu repertório.
"Roberto não é profundo em sua religiosidade,
não tem um grau de informação que se
 deduza minimamente teológico,
é apenas sincero - e até demonstra
 temores infantis ou exagerados
para um devoto."
Entretanto, Roberto Carlos agora aventura-se em territórios em que a gestão do território confunde-se com a afirmação da fé. A posse material se equipara à posse espiritual. Isso já o fez recuar, há alguns dias, na decisão de cantar uma música em hebraico. Ele tinha escolhido uma que já conhece, Jerusalém de Ouro, mas voltou atrás após reações de palestinos - a canção é um hino de orgulho israelense, composta em 1967, na época da anexação de parte da Jordânia. Cantá-la poderia ser ofensivo aos palestinos, cerca de 250 mil que vivem na cidade de aproximadamente 700 mil habitantes. "Estou estudando, tenho de decorar, para não ler no teleprompter", explica. Roberto não ofende ninguém, mas também não se posiciona, o que o torna um curioso caso de neutralidade em movimento (ele não está contigo nem comigo, mas teima em ficar conosco).
Sem conhecê-lo a fundo, um repórter israelense resolveu inquiri-lo contundentemente sobre seu tema favorito, o amor. Perguntou-lhe como é que ele sabia que a mulher de sua vida tinha sido Maria Rita (ex-mulher, que morreu de câncer em dezembro de 1999), se tivera tantas mulheres. "Quando chegar o amor de sua vida, você saberá", respondeu-lhe o rei da canção popular brasileira. Mais ou menos o que Thelonious Monk respondeu quando lhe perguntaram o que era o jazz.
Com esses dribles, Roberto Carlos cuida de manter afastada de si a imagem de artista messiânico, embora muitos fãs também o tenham como uma espécie de santo (enquanto algumas mulheres elegantes, bem casadas, bem posicionadas profissionalmente, o colocam numa posição equivalente à de modelo de homem, seguindo-o mundo afora há anos). É verdade que, quando empunha suas canções mais religiosas (Luz Divina, Nossa Senhora e Tu És a Verdade, Jesus), o show dele não se distingue muito de uma showmissa do padre Marcelo Rossi, daquela catarse que parece oferecer um atalho para o divino. Na verdade, há até uma correspondência direta entre ele e os padres cantores, como a amizade que tem com Antonio Maria, que reza missas e canta suas próprias canções durante os cruzeiros de Roberto.
A diferença entre as canções religiosas do Rei e as dos outros é que ele não se contenta em usá-las como suporte de sua fé. Também sabe construir melodias elogiadíssimas para elas, a ponto de um agnóstico se pegar cantando, sem constrangimento, os versos de Nossa Senhora: "Cuida do meu coração/Da minha vida/Do meu destino". Talvez por isso ele tenha confessado, um dia, durante uma entrevista no Recife, que chegou mesmo a se imaginar convertendo-se em padre (parece que, na juventude, frequentou um seminário em Itu, há testemunhas disso), mas também considerou que foi por causa do seu estado emocional frágil que tinha cogitado o engajamento - tinha acabado de perder a mulher.
Os gestos de Roberto, sejam religiosos ou artísticos, têm esse componente de espontaneidade. Ficou famoso o ato de, durante o enterro de sua mulher (um ato dolorosamente público, acompanhado por mais de 3 mil pessoas), ele ter voltado e pedido para reabrirem o caixão para que pudesse deixar ali um terço. Não um terço comum, mas aquele que ganhou das mãos do papa João Paulo II durante a visita deste ao Rio de Janeiro, em 1997, ocasião em que Roberto teve grande protagonismo e cantou Nossa Senhora, acompanhado pela Orquestra Sinfônica Brasileira e pelo Coral da Arquidiocese do Rio.
Após a morte da mulher, houve somente um momento em que essa relação de Roberto com a devoção pareceu estremecida. Foi também num hotel no Recife que isso se manifestou, quando um jornalista quis saber se ele não questionava Deus por tirar-lhe pessoas tão importantes de sua família. "Não acredito mais nisso de ‘fique tranquilo, porque isso é da vontade de Deus’", respondeu. "Deus não dá a dor, ele dá a endorfina."
Assim como não se escora nas convenções religiosas, fazendo seu caminho laico ao seu estilo, nosso herói também não se deixa oprimir pelas convenções sociais. Trouxe consigo, pagando do próprio bolso, uma das empregadas domésticas de sua residência na Urca. Por quê? Simplesmente porque ela queria muito conhecer Jerusalém. Não para lhe prestar serviços, apenas por amizade. O mundo de Roberto Carlos é pequeno (seus amigos são os mesmos há décadas), mas ao mesmo tempo seus horizontes são largos.
Impedido desde os 9 anos de andar pelas ruas como um homem comum, o que o poupou de tornar-se uma espécie de monge de si mesmo é o entusiasmo renovado pela poesia da música, fenômeno que reconhece rapidamente quando este surge, em qualquer de suas formas. Ficou encantado com o senso poético do político Shimon Peres, de 88 anos, quando este lhe disse, essa semana, que "Israel é um país unido pela música e desunido pelas palavras".
Nessa levada de universalização de sua intuição e sua vontade
, já está acertado que, no ano que vem, Roberto Carlos irá a Roma, explorando os desígnios da autoridade papal em sua nova cruzada internacional. Protagonista de dois festivais de San Remo, a Itália é um local que domina culturalmente, seja pela militância católica, seja pelo repertório romântico que já conhece de quatro décadas, e que se emparelha com o italiano. Não dá para prever o que vai acontecer, mas será que o Rei verá o papa (como aliás já aconteceu no Brasil) ou o papa irá ao Rei, como era no passado? Será que a mediação tropical de Roberto terá um efeito de desobstrução nas inflexões radicais do catolicismo? Afinal, será que um dia será possível saber o que pode fazer um coração comum contra os extremos?
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* O JORNALISTA JOTABÊ MEDEIROS VIAJA A CONVITE DA DC7, PROMOTORA DO SHOW DE ROBERTO CARLOS EM JERUSALÉM
Fonte: Estadão on line, 03/09/2011

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