quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O inferno e os sofredores de Philip Roth

SOSSEGADO Philip Roth em foto de 2008. Ele parece muito 
tranquilo, ao contrário de seus personagens atormentados  (Foto: Jurgen 
Frank/Corbis Outline)
Ainda não foi escrita a história das relações entre os escritores e suas criaturas. Mas é certo que nesse estudo não poderá faltar um capítulo dedicado aos personagens do americano Philip Roth. Aos 78 anos, Roth experimenta a fama universal como mestre do romance contemporâneo. É o mais aclamado autor mundial e candidato permanente ao Prêmio Nobel de Literatura. Suas relações com os personagens que criou ao longo de 50 anos de escrita são obviamente complicadas. Roth pode ser descrito como o avesso de suas criações, que vivem à beira do abismo. Magro, alto e muito em forma, ele mantém uma rotina agradável. Adora nadar (“Ajuda a pensar em histórias”, diz) e reveza temporadas em sua casa de campo em Warren, Connecticut, onde gosta de escrever em silêncio, com seu apartamento em Manhattan, de onde espia o mundo exterior e trata de assuntos pessoais. Sabe tudo de arte literária. Nos anos 1960, deu aulas de literatura e escrita criativa. Já teorizou no ensaio O grande romance americano. Parece inteligente, racional e sossegado. Provavelmente esconde um espírito em turbulência.
Esse espírito se materializa no papel. Seus personagens marcam duelos com a fatalidade em cada capítulo, muitas vezes em cada parágrafo. Nesses encontros, os imperativos morais suplantam os desejos individuais e conduzem esses anti-heróis, sempre masculinos, a se confrontar com a morte. Roth elabora suas histórias a partir do destino de um caráter, de um indivíduo, como se usasse o esquema da tragédia descrito por Aristóteles na Poética, escrita no século III a.C. Mas não se trata de um uso passivo do tratado clássico. Roth conhece o mecanismo de despertar piedade e horror e o altera de várias maneiras, da sátira à tragédia, mantendo-se a maior parte do tempo no registro tragicômico. Provoca, assim, horror e empatia, mas também o riso... e a revolta das feministas. No ano passado, quando ganhou o Man Booker Prize, o mais prestigioso prêmio literário em língua inglesa, a jurada australiana Carmen Callil – fundadora da editora Virago, de Melbourne – protestou, acusando Roth e seus anti-heróis masculinos de revoltantes, porcos chauvinistas e, o mais grave dos pecados para um escritor, chatos e repetitivos. “Não sei por que as feministas me odeiam”, disse Roth a ÉPOCA. “Um amigo jura que Carmem só pode me odiar por ser minha ex-mulher, embora eu nem a conheça.”
Cantor é um personagem digno do 
inferno de Roth: um inferno que não perdoa ninguém,
pode tragar inocentes e atende 
pelo nome de vida.
Curiosamente, na ocasião do protesto, Roth publicava uma história quase desprovida de sexo: Nêmesis, seu 27º romance em 52 anos de carreira. O livro, ambientado em Newark, cidade vizinha a Nova York, no verão de 1944, retrata um professor de educação física escolar e sua luta para salvar a comunidade judaica local de uma epidemia de poliomielite. Como de hábito na obra de Roth, Bucky Cantor perde o controle de sua vida e a de seus alunos. O romance sai nesta semana em tradução brasileira pela Companhia das Letras (196 páginas, R$ 36, tradução de Jorio Dauster). A editora também publica quatro outras obras de Roth no volume Zuckerman acorrentado: três romances e um epílogo (552 páginas, R$ 79, tradução de Alexandre Hubner). O livro reúne os seguintes títulos: O escritor fantasma (1979), Zuckerman libertado (1981), A lição de anatomia (1983) e A orgia de Praga (1985). É parte da saga de Nathan Zuckerman (até agora nove títulos), alter ego de Roth, escritor de best-sellers às voltas com os obstáculos da existência. Uma espécie de Prometeu contemporâneo, tal como o mito grego Zuckerman desafia os deuses – e é cotidianamente punido por isso. A diferença de Prometeu para Zuckerman é que este usa a ferida do fígado para filtrar histórias.
Com seus fundamentos fincados no mundo dos arquétipos trágicos, Roth lança mão principalmente de suas lembranças da infância e adolescência passadas na cidade natal de Newark, no Estado de Nova Jersey. Dali, ele extrai a energia com que carrega a vida de seus protagonistas. “Neste livro, retornei aos meus medos de menino”, diz Roth. “Dois acontecimentos em minha infância em Newark me ensinaram que as pessoas não têm controle sobre a vida: a Segunda Guerra Mundial e a epidemia de pólio. Eram ameaças reais. O medo da extinção gerado pela guerra está no livro Complô contra a América. O medo de morrer da peste aparece em Nêmesis.”
O livro encerra a tetralogia de romances curtos, que Roth denominou “Nêmeses”: Homem comum (2006), Indignação (2008) e A humilhação (2009). O clima de Nêmesis é sufocante. No verão de 1944, a cidade operária de Newark, de 429 mil habitantes, parece uma selva equatorial ameaçadora. A poliomielite aniquila seus habitantes nas várias comunidades. A paranoia e o pavor chegam à escola do bairro judaico de Weequahic quando dois alunos morrem. O ídolo da escola é Cantor, professor de educação física de 23 anos. Ele tenta proteger seus alunos. Aos poucos, porém, percebe que seus esforços são inúteis diante da doença. A atmosfera de mortes de inocentes e de abandono moral pode lembrar A peste, romance de Albert Camus de 1947. Mas o elemento da culpa é mais poderoso em Roth. Cantor atribui a si próprio a responsabilidade por não controlar a epidemia. Sua “nêmesis” (palavra grega usada para descrever o pior inimigo de uma pessoa, alguém ou algo que é o oposto de si, mas também, de algum modo, semelhante a si) é o mal incurável. Cantor é um personagem digno do inferno de Roth: um inferno que não perdoa ninguém, pode tragar inocentes e atende pelo nome de vida.

reprodução (Foto: divulgação (5))
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Reportagem de Luís Antônio Giron, de Nova York
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/cultura/noticia/2011/09/o-inferno-e-os-sofredores-de-philip-roth.html

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