quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Um barco para a pós-modernidade

Com criatividade e ironia aguçadas, 
o escritor Cunha de Leiradella, que assume 
ter tido influência do existencialismo de Camus,
trata de questões profundas sob 
uma persperctiva diferente
Por Denise Duarte*

Escritor luso-brasileiro, Cunha de Leiradella cursou Direito em Coimbra e Sorbonne e Filosofia em Salamanca, sem completar nenhum dos cursos, pois considera que a vida foi e será sempre a sua melhor universidade. Tem uma vasta obra e também um amplo repertório de prêmios no Brasil e no exterior por sua obra literária e teatral. É também roteirista de cinema.
Leiradella viveu 45 anos no Brasil. Chegou ao Rio de Janeiro em 1958 “com um curso de Direito interrompido e uma cuca prestes a fundir-se. Não fundi a cuca e também não paguei analista apenas porque virei escritor”, disse. Em Belo Horizonte, onde residiu de 1980 a 2003, fundou e presidiu o Sindicato dos Escritores do Estado de Minas Gerais e hoje mora na casa onde nasceu, contrafortes da Serra do Gerês, norte de Portugal, próximo à fronteira com a Espanha.
Foi amigo de Albert Camus e conheceu Sartre, tendo recebido influências do existencialismo. Mas não gosta de falar muito sobre o assunto “Eu não conheci o Camus, nem o Sartre e, muito menos, a Simone de Beauvoir. Convivi com eles e finis. Mas falar deles o quê? Se eu não gosto de falar de mim. É verdade que Camus muito me influenciou como pessoa, e mais ainda como escritor, muito mais do que o Sartre. Mas conviver é apenas conviver, né não?”
Nesta entrevista, feita por e-mail, com seu jeito despojado e cheio de neologismos, faz inúmeras referências da personagens históricos e literários para expor sua crítica ao mundo. Para ele, o conceito de pósmodernidade não significa nada e fala de uma crise de representação, já que hoje o homem quer mostrar e se fazer parecer aquilo que não é. E se questiona sobre o paradoxo de padrões estreitos para se escrever, na atualidade, num mundo em que impera a desordem e o protesto pelas possibilidades. “Se na entropia da pós-modernidade tudo vale, se todos os discursos e semelhanças são válidos, por que no ensaísmo só vale a rigidez cadavérica das normas ‘abntênicas’? Não é um contrassenso?”. Ele diz que precisamos enfrentar a pósmodernidade de barco, brincando com a expressão “líquida” usada pelo sociólogo Zygmunt Bauman – mas com cuidado, pois “o Titanic e o K-141 Kursk, considerados inafundáveis, não afundaram?”
FILOSOFIA • Os termos “modernidade tardia” e “pós-modernidade”, assumidos por alguns estudiosos, dão conta de definir nosso tempo? O que é pósmodernidade para você?
Cunha de Leiradella •
Antes de continuar este “pau-de-ararismo”, deixe-me confessar que nunca estudei os estudiosos. Gosto dos Perrys, isso gosto. Mas naquela altura eu andava era com o Perry Mason¹, não com o Perry Anderson², a deslindar O Caso do Elefante Sem Tromba, não assisti ao julgamento, e foi a Della Street que estenografou a “cambulhada”. Mas digo-lhe, além de confiar plenamente na transcrição estenográfica da Della e no testemunho do Platão, concordo com a sentença.. Não se admite que diante de tantos sabentes chegue um mequetrefe qualquer e diga “porque não sei, não acredito saber”. O tal do Sócrates era um inimigo da sabença e tinha mesmo de tomar aquele chá de cicuta. Pena que o “coroner” não o tivesse mandado autopsiar, senão se provaria que no cérebro daquele enxerido não existia nem um nanomicrograma sequer de células cinzentas à la Hercule Poirot.
Mas se não teve autópsia, pelo menos teve entropia. E, valha a verdade, tudo vale a pena se a gente acorda vivo. O que me preocupa, nesta de estarmos na pós-modernidade, é o pó. Se esse troço “bigbangou” após a queda do muro de Berlim, o que virá depois se a muralha da China também cair? Já viu o tamanhão dos pós-pós-pós? Se bem que já não sendo preciso inovar nem ser original para ser pós-moderno, ainda resta a esperança de podermos continuar sendo o que somos. O que já não é pouco, convenhamos.
O resto, minha cara, é tudo faz-de-conta. Com hífen, pra ficar mais empedernido e volumar o oco da tão apregoada crise de representação que, dizem os entendidos em estudos “abntenicamente”3 perfeitos e enxundiosíssimos em notas de pé de página, assusta a Arte e o ser existencial da comunicabilidade pós-modernista. Daí, a criação do tudo vale, da tal da entropia, e vamos nessa. Se tudo é válido, para que queimar a “mufa” tentando encontrar padrões lógico-realistas de representar a realidade? Real, basta ser o criador. O resto, é cada um por si e Deus por ninguém.
Gilles Lipovetsky, aquele que começou essa história de pós-moderno com A Era do Vazio, em 1983, e virou a mesa com Os tempos hipermodernos, em 2004, declarou, em junho de 2011 à revista Os meus livros: “A pós-modernidade não existe e nem nunca existiu”. E agora? Ficamos pós ou apenas modernos?
O que é pós-modernidade para mim? Nada. Se a pergunta fosse feita a Jean de Metz, a Joana d’Arc também teria sido pósmoderna. Por isso, eu estou e não abro é com o Charles Olson, aquele dos versos projetivos: “o que não muda é a vontade de mudar”. Mas uma pergunta me fissura a cuca: se na entropia da pós-modernidade tudo vale, se todos os discursos e semelhanças são válidos, por que no ensaísmo só vale a rigidez cadavérica das normas “abntênicas”? Não é um contrassenso?
Mas está certo. Se na pós-modernidade entrópica tudo vale, os contrassensos também valem, não?

Não sendo preciso inovar para ser pós-moderno, ainda resta a esperança de podermos continuar sendo o que somos. O que já não é pouco, convenhamos

FILOSOFIA • Para o sociólogo Zygmunt Bauman, vivemos hoje em uma sociedade líquida, em um mundo que “jamais se imobiliza nem conserva sua forma por muito tempo. Tudo ou quase tudo em nosso mundo está sempre em mudança [...]. Como você entende as colocações gerais de Bauman acerca do mundo líquido moderno? E como situar a problemática existencial humana nesse contexto?
Leiradella • O Mr. Zygmunt Bauman, aquele de O mal-estar da pós-modernidade, que eu vi faz anos na vitrine da Jorge Zahar (mas não comprei porque malestar por mal-estar chegava o meu)? Ah, esse é dos bons! Nasceu polonês, escreve em inglês e ganha em libras. E ainda se preocupa com a generalização universalizante do medo e das perdas advindas da substituição da ordem estabelecida pela busca frenética da liberdade. Devia comandar as tropas da ONU no Afeganistão.
Quanto às colocações sobre as constantes mudanças, estou completamente de acordo. Eu e a Filosofia carioca dos idos de 1950: tudo neste mundo é passageiro, menos condutor e motorneiro. Vivemos hoje sufocados por informações de todos os tamanhos e feitios. Televisão, rádio, jornais, Internet, iPods, iTunes, twitteres, facebooks, Blackberry bolds, mexericos das comadres, segredos inconfessáveis, o escambau. Como conseguir respirar e sobreviver, então, no meio desta selva, tentando “microscopar” a nossa própria identidade? Ficando apenas com o escambau. Porque, ou nos unimos, o que é utopia, (pois aquela do povo unido jamais será vencido foi a maior balela da paróquia), ou partimos para o individualismo do manda quem pode, obedece quem tem juízo, e nos estrepamos sem apelo nem agravo.
Como situar a problemática existencial humana nesse contexto? Sendo o contexto líquido, só de barco ou de submarino. E mesmo assim, com cuidado! O Titanic e o K-141 Kursk, considerados inafundáveis, não afundaram?

Ninguém quer saber quem e o que é. Por isso, todos mentimos e fingimos que somos vítimas sufocadas pela hecatombe de informações, mas ninguém quer abrir mão delas

FILOSOFIA • Em seu artigo artigo, Encontro de Paralelas 4 você defende que apenas um nome refletiu a bom termo sobre a questão ontológica da verdade: Sócrates, que foi condenado à morte por afirmar “porque não sei, não acredito saber”. Em que medida essa incerteza, dado que você diz, referindo-se aos seres humanos “vós fingis que optais só para que os outros pensem que vós ainda podeis optar e vos invejem”, impacta o conhecimento do homem sobre si mesmo?
Leiradella •
Eu citei Sócrates como poderia ter citado Protágoras, Melissos de Samos ou a D. Mariquinhas Farinheira, avó do meu compadre Zé das Couves. E citei-os porque, para dizer o que pensavam, nenhum deles necessitou escrever alentados ensaios, correta e “abntenicamente” formatados. Bastou uma simples frase. Protágoras apenas disse que “o homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são enquanto são, das coisas que não são enquanto não são”; Melissos de Samos disse idem que “o que tem um princípio, ou um fim, não pode ser, nem eterno, nem infinito”, e a D. Mariquinhas disse ibidem “vai-te mundo, cada vez a pior”. E finis.
Mas a verdade é que gostei do “impacta” que inseriu na pergunta. Adoro verbos. Só que, nenhum verbo, por mais transitivo direto que seja, impacta o conhecimento de alguém sobre si mesmo. Impacta, sim, mostrar o que se quer que os outros vejam. Agora, conhecer o que se passa na própria cuca, aí a porca já torce o rabo de tal maneira que nem um esticador hidráulico o consegue endireitar.
O “conhece-te a ti mesmo”não tem nada de incerteza. O problema não está na incerteza, está no espelho. Cada vez mais cada um gosta não só de se ver lindão-zão-zão no espelho, mas também que essa lindeza seja a imagem que os outros possam ver. Ver e, acima de tudo, acreditar. Porque se ele apenas visse no espelho o que realmente é, tadinho do espelho, seria partido em mil pedaços. O que cada um é, não é. Se fosse, não sobrava ninguém para contar a estória do ser.
Quando eu escrevi “vós fingis que optais só para que os outros pensem que vós ainda podeis optar e vos invejem”, não estava falando dos outros. Falava de todos. Até mesmo de mim. Embora não pareça, todos nós somos iguais. Todos mentimos, todos fingimos. Porque se tivesse rosa que sempre cheirasse e esterqueira que nunca deixasse de feder, também os “verdadólogos” venderiam felicidade assim como as farmácias vendem Prozac. Com ou sem receita médica.
Conhecer-se implica saber. E ninguém quer saber quem e o que é. Por isso, todos mentimos e fingimos que somos vítimas sufocadas pela hecatombe de informações, mas ninguém quer abrir mão delas. Você jogaria no lixo o seu Blackberry bold e a sua ligação à Internet? Não? Então o seu “impacta”, apesar de transitivo direto, não leva a conhecimento nenhum sobre nada do que somos. Quando muito, usamos a desculpa de sermos obrigados a ser o que somos por culpa dos outros. A culpa é sempre dos outros. Nós, coitadinhos, sempre somos vítimas.
Razão e mais do que razão tinha Terêncio, aquele africano romanizado, que muito antes de Cristo afirmou: Homo sum, humani nihil a me alienum puto (sou humano e nada do que é humano me espanta), frase que muita gente boa traduz em bom “ipanemês”: não tenho puto e quero que os outros se danem.
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*Denise Duarte é professora universitária, na área de cinema e audiovisual, e roteirista com experiência em roteiros para cinema, vídeo e rádio. Tem especialização em Roteiro de Cinema e mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRO).
Fonte: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/62/artigo227674-1.asp

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