Em quatro países,
eleitores rejeitam ditadura das finanças, apoiam partidos rebeldes e
sugerem: amadurecem possibilidades de uma nova política
Por Antonio Martins
Desde domingo, o novo
presidente francês – François Hollande, do Partido Socialista – está nas
manchetes. Pergunta-se como este homem de aparência tímida venceu o
arrogante Nicolas Sarkozy, seu antecessor; que terá levado os eleitores a
escolher um projeto dado há tanto tempo como morto; até onde poderá
chegar o chefe de governo, em sua promessa de questionar as políticas
impostas pela Troika1. Mas quase não se fala do quadro mais geral.
A vitória de Hollande
foi apenas um dos feitos de um dia histórico. Em quatro países – França,
Grécia, Itália e Alemanha – os eleitores participaram de distintas
eleições, mas enviaram três mensagens muito semelhantes, que têm
potência para sacudir um continente em crise. 1. Eles já não aceitam que
seus governos adotem, como se fossem as únicas possíveis, as medidas de
cortes de direitos e serviços públicos ditadas pela oligarquia financeira.
2. Para alcançar mudança, eles estão dispostos a sacudir sistemas de
partidos estabelecidos há décadas, e a optar por organizações e grupos
antes tidos como outsiders sem
futuro. 3. Esta disposição pode favorecer projetos que expressam, no
terreno institucional, algo muito semelhante ao que propõem, nas ruas,
grupos como os Indignados e o Occupy.
A curto prazo, o resultado eleitoral francês é o mais capaz de abalar a atual ordem europeia (leia nossa análise
a respeito) mas ele foi, também, o menos surpreendente. Uma série de
motivos levou o eleitorado a confiar nos socialistas. Sua experiência
anterior no governo (François Mitterandgovernou
o país entre 1982 e 1995) é mista – diferente de outros partidos
social-democratas europeus, marcados pelo abandono de seu próprio
projeto e pela rendição às lógicas “de mercado”. Os setores à esquerda
(em especial os que apoiaram
Jean-Luc Mélenchon no primeiro turno) votaram e trabalharam ativamente
por Hollande, na disputa final. O candidato vitorioso apresentou um
programa claro (ainda que tímido) de ruptura com as políticas hoje
praticadas na Europa.
De mesmo sentido, porém muito mais profunda, foi a reviravolta na Grécia.
O eleitorado massacrou os dois partidos (Nova Democracia, de
centro-direita e Pasok, “socialista”) que aceitaram aplicar, no país, as
medidas exigidas pela Troika. Desde 1974, revezavam-se no
poder. Há apenas três anos, quando eram rivais, obtiveram 77,4% dos
votos. Agora, juntos, ficaram reduzidos a 32%. Não conseguirão formar um governo e o país irá provavelmente a novas eleições, em junho.
Como grande surpresa, emergiu a Syriza,
que significa Coalizão da Esquerda Radical. Articulada formalmente
apenas em 2004, tinha, até as eleições parlamentares de 2009, apenas
4,6% dos votos. Passou agora a 16,75% – à frente do Pasok e apenas 150
mil votos atrás da Nova Democracia. É uma aliança entre pequenas
organizações partidárias e coletivos de cidadãos autônomos. Sua origem
está associadas ao movimento altermundista: remonta a 2001, quando um
grupo de movimentos gregos articulou-se para participar dos protestos
contra o G-8, em Florença, e do I Fórum Social Europeu.
Nos últimos anos, soube
abrir-se a setores que vão muito além do que sugere seu nome. Toda sua
campanha foi baseada na denúncia das políticas de “austeridade” e dos
acordos de “resgate” firmados entre o e Troika (“não são a
salvação, mas a tragédia”, afirmou Alexis Tsipras, um engenheiro de 37
anos que lidera o movimento). Marginalizada pela mídia, esta postura
conquistou o eleitorado. Não se exclui sequer a hipótese de o Syriza
crescer ainda mais e formar um governo de esquerda. Se nenhum partido
for capaz de montar uma coalizão majoritária no Parlamento, nos próximos
dias, haverá eleições suplementares em junho e, então, parte do
eleitorado poderá aderir a uma proposta até há pouco considerada
inviável.
Um terceiro tremor de grandes proporções pode estar se armando na própria Alemanha
– de onde a chanceler Angela Merkel comanda a adoção das políticas
favoráveis à oligarquia financeira. Também no domingo, a coalizão de
Merkel foi derrotada no pequeno estado nórdico de Schleswig Holstein,
tradicionalmente conservador e fronteiriço à Dinamarca. A derrota
segue-se a dois insucessos da chanceler (em Berlim e no Sarre) nos
últimos meses. Poderá assumir dimensões muito mais dramáticas caso se
repita no próximo domingo (13/5), quando irá às urnas o mais populoso
estado germânico, a Westfália-Renânia do Norte.
Até no pacato Scleswig,
de apenas 2,8 milhões de habitantes e fortemente influenciado pela vida
rural, houve novidades relevantes. Embora maior força individual, o
partido de Merkel (CDU, União Democrática Cristã) obteve a mais baixa
votação desde 1950 (30,5%). Seu aliado na coalizão que governa o país (o
FDP, de postura expressamente neoliberal) despencou de 14,9% para 8,2%
de apoios. Entre os grupos emergentes está o Partido Pirata,
que, além de se opor aos cortes de direitos, defende a livre circulação
de conhecimento e a democracia direta. Ele passou de 1,8% para 8,2% e
participará pela primeira vez do Parlamento (o Partido de Esquerda
tradicional caiu de 6% para 2,8%).
A oposição à
“austeridade” e o inconformismo com o sistema político tradicional
manifestaram-se, finalmente, na Itália – onde houve, entre domingo e
ontem, eleições em quase mil prefeituras. O bloco de direita que
governou o país na era Berlusconi desagregou-se e foi vastamente
derrotado. Em 17 das maiores cidades que foram às urnas, candidatos de
centro-esquerda estão à frente, contra apenas 8, em que lideram partidos
da antiga base de apoio do cavaliere (em muitas localidades, a
disputa será resolvida no segundo turno). Haverá mudanças de governo em
Parma, Verona e outras cidades importantes.
Mas as maiores surpresas
foram, também aqui, as formações não-convencionais. Em Palermo
(Sicília), venceu Antonio Di Pietro, da Itália dos Valores. Antigo
magistrado conhecido por sua luta contra a corrupção nos anos 1980, ele
caracterizou-se mais recentemente por se opor de modo resoluto, no
Parlamento, às medidas de “ajuste” exigidas pela Troika. Ainda
mais inesperado foi o despontar de uma organização inteiramente nova, o
Movimento Cinco Estrelas – que ultrapassou os 10% do eleitorado e
superou o centro-direita em cidades importantes como Gênova e Parma.
Liderado por Giuseppe (Beppe) Grillo, um ator cômico e blogueiro popular (algo como “o Michael Moore italiano”, segundo The Guardian) e formado
há apenas dois anos, o Cinco Estrelas defende a liberdade na internet e
a democracia direta. Seu nome é alusão a cinco princípios: Água Livre
(desprivatizada), Ambiente, Transporte, Conectividade e Crescimento. Num
post publicado logo ontem (7/5), logo após a divulgação dos resultados
eleitorais na França e Grécia, Grillo frisou: “São uma clara resposta ao
Banco Central Europeu. A política estra prevalecendo sobre as finanças.
Há uma tentativa de repostular a democracia. O castelo de cartas está
caindo. (…) É preciso deixar claro que os povos são donos de seu destino
– não os bancos , os spreads, as agências de avaliação de risco”.
Ainda não é possível
enxergar com clareza as consequências imediatas do voto rebelde de
domingo. As forças que defendem a oligarquia financeira tentarão
neutralizar os resultados. Por seu peso, o grande foco de atenções é a
França – e a mídia conservadora terá papel de destaque no esforço para
evitar que François Hollande leve adiante suas intenções. Um texto
publicado nesta terça (8/5), pela agência Reuters, dá a senha. Ele
sugere que o novo presidente renuncie a suas promessas de reativar e
reforçar os serviços públicos. Para não desgastar-se, poderia usar, como
pretexto, a revisão que o Tribunal de Contas faz, anualmente, sobre as
contas nacionais. Deveria alegar que números muito desfavoráveis o
impedem de realizar o que propôs. Esta é, segue o texto, a única
alternativa para “evitar o baque dos mercados financeiros”, que não
aceitarão “déficits recorrentes e dívida crescente”.
Como o sucesso de tal
manobra é incerto, outra hipótese é uma rápida retomada das tensões
financeiras que agitaram a Europa em 2011. Foi o que se viu nos dois
primeiros dias após o voto de protesto de domingo. Na terça, o euro caiu
abaixo de 1,30 dólares pela primeira vez em quatro meses. As bolsas de
Frankfurt, Londres e Paris sofreram perdas importantes. O nervosismo
acentuou-se depois que Alex Tsipras, líder da coalizão de esquerda grega
afirmou, em completa sintonia com o resultado eleitoral em seu país: “O veredito popular é claro: o acordo [com a Troika] é nulo”.
Muito mais importante
que os prognósticos de curto prazo é, porém, uma mudança de ânimo, que
se esboça entre as sociedades. Ao contrário do que vinha ocorrendo nos
dois últimos anos, os eleitores não se limitaram a aproveitar as
eleições para afastar o governo no poder – e dar vitória a seu adversário tradicional.
Eles sinalizaram, com
seu voto em favor de propostas antes inusitadas, que podem entrar em
sintonia com as ruas – onde se gritava, no ano passado, “nem políticos,
nem banqueiros”. Esta atitude abre, por sua vez, caminho para um passo complementar. Movimentos como o dos indignados,
que até agora desprezavam o espaço institucional, podem abrir-se para
ele, ao perceberem que há espaço e audiência para suas propostas. Neste
caso, surgiria uma dinâmica de alimentação recíproca. A força crescente
das manifestações fortaleceria grupos políticos como os que sobressaíram
no domingo; e estes ajudariam as ruas a formular, além de protestos,
alternativas concretas para novas relações sociais.
A série de manifestações que começa em diversas partes do mundo, neste 12 de Maio, pode ser o primeiro teste desta hipótese.
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1. Compõem a Troika a
Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário
Internacional (FMI). Desde 2009, as três instituições têm agido em
conjunto para pressionar os Estados a adotar políticas que, diante da
crise, penalizam as sociedades, preservam os privilégios do mundo
financeiro-corporativo e esvaziam a democracia, transformando-a num
regime de fachada. O nome é referência aos grupos de três burocratas que
dirigiram a União Soviética em distintas ocasiões, a partir de 1954.
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Fonte: http://www.outraspalavras.net/2012/05/08/o-dia-em-que-a-europa-encarou-a-troika/
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