Marília Moschkovich*
Ser escritora, pesquisadora ou artista é socialmente mais
relevante que faxineira? Problema está na profissão ou nas condições de
trabalho?
Sexta-feira (27) foi Dia Nacional da Trabalhadora Doméstica. Começa
pelo gênero – “trabalhadora doméstica”, no feminino. A profissão não é
fechada aos homens, mas historicamente em nossa sociedade a limpeza tem
sido um tipo de trabalho delegado às mulheres. Inclusive
profissionalmente. Mais do que isso, a origem do trabalho pago de
limpeza no Brasil está diretamente associada à herança da escravidão e à
pobreza. São majoritariamente negras as mulheres que fazem este tipo de
serviço.
Enquanto algumas correntes da esquerda e do feminismo almejam um
mundo em que não exista trabalho doméstico pago e outros grupos
políticos defendam que ele exista e continue sendo mal pago e uma
“exceção” no mercado de trabalho (em termos de direitos e garantias das
trabalhadoras e trabalhadores), pessoalmente me alinho com a luta pela
regulamentação em regime CLT, com piso salarial, férias, 13º, fundo de
garantia, licença-maternidade (e por que não, paternidade?), etc. O
trabalho de limpeza, me parece, não é necessariamente mais ou menos
degradante, exigente, etc. do que outros tipos de trabalho. Tudo depende
das condições em que é realizado.
Me lembro de conhecidas e conhecidos que buscam/buscaram empregadas
domésticas para dormir no serviço. Isso significa morar com a família
que emprega (portanto deixar a sua própria em segundo plano) e estar à
disposição, em maior ou menor grau, 24 horas por dia. Gostaria,
sinceramente, de perguntar a elas/eles se aceitariam tais condições de
trabalho – independente do salário. Que tal se o chefe ligasse dizendo
que a partir de segunda-feira você teria que dormir no escritório, tomar
banho no escritório, comer no escritório etc. com o mesmo salário? Em
tese, você não estaria trabalhando mais horas, só ajudando com um
telefonema ou outro, uma urgência ou outra. Sabem como é. O fato é que
muitas das pessoas que vivem reivindicando atitudes “profissionais” e
comportamento “ético” no próprio espaço de trabalho não hesitam em
tratar o trabalho doméstico como “uma ajuda”, pagá-lo mal e tratar
empregadas e empregados de forma desumana como jamais fariam com um
colega de equipe – e como jamais gostariam que seus chefes fizessem
consigo.
Este tipo (horroroso) de condição de trabalho também pode ser
regulamentado. Há casos em que a distância de casa e a insalubridade são
“compensadas”, em tese, com bônus. Trabalhadores de plataformas de
petróleo, por exemplo, têm períodos longos de descanso antes de
embarcarem novamente, recebem diversas bonificações. Na cabeça de
algumas pessoas, há um outro fator que faria com que trabalhadores de
plataformas de petróleo merecessem ganhar mais do que empregadas
domésticas que dormem no trabalho: eles estudaram mais anos e executam
um trabalho mais especializado. Parte-se do pressuposto que qualquer um
pode fazer a faxina. Oras, então por que não a fazem? Ao mesmo tempo, se
todas as pessoas tivessem a mesma oportunidade e o mesmo acesso à
formação especializada, igualmente qualquer um poderia realizar o
trabalho nas plataformas de petróleo, certo? Se os bens simbólicos
fossem distribuídos entre as pessoas de forma homogênea, qualquer um a
princípio poderia ser um intelectual, médico, engenheiro… Não há nada,
inato na pessoa em ou na profissão em si, que faça de alguns mais
apropriados para certos tipos de trabalho do que outros.
Não é fácil, porém, desconstruir o mito da meritocracia. Mesmo as
pessoas que mais criticam o status quo, que querem transformar a
situação das empregadas domésticas (seja através da regulamentação de
sua profissão ou através da extinção), não pensam duas vezes antes de
concordar que quem estuda mais anos deve receber mais dinheiro. Não se
lembram de que o status de um profissão não está apenas relacionado ao
dinheiro, nem aos anos de estudo e nem apenas à relevância social que
lhe é atribuída. Ignoram que este pensamento é uma forte ferramenta de
dominação – afinal, os recursos simbólicos e a educação não são
distribuídos igualmente entre as pessoas, e a competição é absolutamente
injusta desde a largada, o que nos leva a deduzir erroneamente que quem
nasceu em condições privilegiadas “merece” continuar em posições
privilegiadas.
Portanto, antes de defender que o trabalho doméstico seja uma
“exceção” em termos da regulamentação e direitos trabalhistas, reflita
se o seu trabalho também poderia ser uma exceção. Antes de defender que
esta profissão deixe de existir, pergunte-se: por que te parece que uma
médica, executiva, escritora ou pesquisadora é socialmente mais
relevante que uma empregada doméstica?
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Na coluna Mulher Alternativa
Fonte: http://www.outraspalavras.net/2012/04/30/o-discreto-preconceito-dos-intelectuais/
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