Paulo Ghiraldelli Jr
A
melhor descrição nem sempre nos favorece e, ainda assim, temos de optar
por ela. Eis aí o lema do filósofo. Aquele que não segue este lema pode
se dar bem em várias tarefas, talvez em todas, menos na de filósofo.
Essa regra de ouro faz com que eu tenha
de entrar no novo túnel do tempo. Sim, o facebook deu agora para ser um
tipo de linha de recuperação do passado como se ele fosse o presente.
Basta uma notícia ser interessante para barrar outra, e as centrais de
produção de factóides, tanto a direita comprada e enlouquecida (Veja) quanto a recém-esquerda mercenária (Nassif), resgatam coisas do youtube de modo a torná-las notícia de agorinha. Tem ocorrido isso, e dessa vez a vítima foi o Lobão. Uma entrevista dele, em 2011, é comentada agora, como se fosse de ontem, merecendo inclusive charges atuais.
O que o Lobão diz é exagerado e irônico.
Mas, completa mentira não é. Ele diz coisas que todos nós sabemos e,
enfim, se não perdemos o nosso discernimento, não podemos negar. Além
disso, se somos inteligentes, podemos ver a entrevista no youtube e
perceber que seu alvo é um tipo de música e um tipo de cantor que, para
ele, roqueiro, não tem serventia. Mas, se não temos discernimento e,
enfim, se não estamos comprometidos com o lema acima, a regra de ouro do
filósofo, fica fácil torcer tudo e colocar Lobão como simples aliado da Ditadura Militar – coisa que não faz nenhum sentido, em se tratando de alguém que adora a liberdade.
Lobão diz que uma boa parte da MPB se
coloca à esquerda de um modo pouco nobre. Ou seja, ser de esquerda, para
esse pessoal, é produzir música dentro de uma cultura depressiva. Ora,
negar isso é difícil. Ele diz que ser de esquerda, para muitos artistas é
dizer que foi preso e torturado, quando na verdade há artistas que se
fizeram de vítimas, sendo que jamais receberam outra coisa senão uma
notícia de que seriam perseguidos. Isso não pode ser negado. Ele diz que
há artistas de esquerda que se aproveitam disso, da fama política, para
grudar em governos e pegar dinheiro público para financiamentos
(desnecessários para alguns, que já possuem sucesso). Também isso é
alguma coisa que todos conhecemos bem. Ele diz, também e
fundamentalmente, que os que lutaram contra a Ditadura Militar não
estavam lutando pela democracia, mas pela “ditadura do proletariado”, e
ele complementa que isso seria ruim para o Brasil. Alguém nega?
É claro que Lobão, no meio disso,
carrega nas tintas, exatamente porque esse é seu estilo. Alguns que
lutaram contra a Ditadura Militar eram de uma esquerda autoritária, mas
nem todos. Muitos liberais, democratas sinceros e de uma esquerda não
comunista, não ditatorial, também se puseram contra a Ditadura Militar.
Isso sem contar que a tortura não foi exercida do lado da esquerda,
enquanto que foi a prática corriqueira da direita e, pior, em nome do
Brasil, de toda a nação, porque feita pelo Estado. A foto de Dilma,
que correu a imprensa, sendo interrogada quando tinha vinte anos,
mostra bem que aquilo que Lobão falou precisa ser posto sob uma luz
melhor. Dilma na foto aparece altiva diante do tribunal, enquanto que os
militares, mesmo exercendo função dentro da legalidade vigente,
escondem o rosto. Diante daquela foto, Lobão redescreveria sua
entrevista, tenho certeza.
O que faço ao dizer essas coisas é um
modo de alertar a juventude. O melhor caminho não é o meio termo e, sim,
o do discernimento racional. “A verdade está no meio” é uma frase que
nenhum filósofo inteligente disse. Aliás, ninguém de boa cabeça disse
isso (só o Aristóteles quando lido pelos tolos). Quando ouvimos os dois
lados, ainda assim, não temos necessariamente nada melhor do que ouvir
um lado só. Aliás, essa coisa de “ouvir os dois lados” é frase de
jornalista tonto, pois nunca alguma coisa tem só dois lados. O mundo das
ocorrências não é bidimensional. A questão não é essa. A questão é de
informação. Temos informação suficiente? O quanto de informação é
suficiente? Temos coragem de colocar essa informação à luz de nosso
discernimento? Ou estamos de tal modo comprometidos com uma doutrina
que, enfim, o discernimento não nos dá mais nada de bom? Sob análise
racional e experiente, paramos a investigação e concluímos, ou dá para
explorar mais? São essas perguntas que um bom promotor, um jornalista
cioso e um filósofo normal devem fazer. No mínimo estas!
Eu vivi o período da Ditadura Militar
inteiro. Eu vi a Ditadura Militar entrar e sei bem o que os meus pais
sentiram e passaram; eu me dei por gente durante a Ditadura, eu briguei
com ela e eu saí dela, junto com o Brasil. Passei por situações bem
desagradáveis. Jamais invoquei isso, nem evoquei. Procurei passar por
cima. Mesmo nas vezes que isso poderia me favorecer, deixei de lado. Não
por virtude, mas … sei lá, por vontade mesmo de deixar de lado e “tocar
bola para frente”. Isso quanto a mim. Mas não quanto a outros. Nunca
achei que poderíamos fazer gozação com os que tombaram na luta contra a
Ditadura. Mas nunca achei que os que tombaram contra a Ditadura
estivessem sempre certos, tanto em meios quanto em fins. O discernimento
é o instrumento do filósofo. E a melhor descrição, ou seja, aquela que
não esmaga o discernimento, nem sempre nos favorece, mas, ainda assim,
temos de optar por ela. A injustiça com a história é uma faca contra o
filósofo. Isso para o filósofo, o de cultivar a descrição que nem sempre
é a que nos daria completa glória, é sagrado, pois é o que ele tem a
oferecer para a Coruja de Minerva. Quando o filósofo perde a benção da
Coruja, perde tudo.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/05/12/transformaram-lobao-em-aliado-da-ditadura-militar/
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