domingo, 10 de junho de 2012

“Quem comanda as coisas no Brasil é o mercado, não é o Estado”

 Entrevista: FRANCISCO DE OLIVEIRA | SOCIÓLOGO
 
Ele tem a estatura de Getúlio Vargas (1,60m), a barba branca de Dom Pedro II, o acento pernambucano de Luiz Inácio Lula da Silva e o grau acadêmico de Fernando Henrique Cardoso. Quando se trata de emitir juízos sobre os quatro, é única e plenamente Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira. Sobre Vargas: “O único estadista que o Brasil produziu em seus 500 anos de existência”. Pedro II: “Era de uma mediocridade espantosa”. Lula: “É um farsante, um descendente dos Bourbons, que não aprendeu nada nem esqueceu nada dos últimos 50 anos”. FH: “Foi meio papagaio de pirata (no movimento pela redemocratização). Não é que fosse falso nem nada disso, mas estava ali como eu podia estar”. Aos 78 anos, expoente da teoria social brasileira, Chico de Oliveira se compraz em desafinar o coro dos contentes.

A verve desse professor emérito aposentado de sociologia da USP (que, mesmo aposentado, segue atuando como coordenador científico do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da instituição) assegurou-lhe um lugar de destaque no debate público desde que, em 2003, deixou o PT, do qual fora fundador. Num país em que as ideias dificilmente transpõem a porta do debate político, expôs suas razões em um ensaio intitulado O Ornitorrinco.

O título faz referência ao exótico animal da Oceania, mamífero com aspecto de ave, usado por Oliveira como metáfora do Brasil, no qual convivem avanço e atraso. “Talvez a crítica teórica mais contundente já formulada ao governo Lula”, escreveu a respeito da obra o professor de sociologia Marcelo Ridenti, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Oliveira recebeu Zero Hora no dia 22 de maio por uma hora numa sala da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP:

Zero Hora – Qual será o papel do Brasil na nova configuração da economia global?
Francisco de Oliveira – Um papel secundário. Não porque, como dizia Nelson Rodrigues, tenhamos complexo de vira-lata, mas porque você não pode enfrentar a força de trabalho formidável que a China e a Índia colocaram em atividades produtivas. O meu relógio é certamente chinês, de Taiwan ou da Coreia do Sul, o seu também. Eles fizeram um movimento lastreado em tecnologia. A Índia converteu-se num escritório mundial, e a China foi por outro lado, atacou o sistema produtivo diretamente, juntando uma força produtiva formidável com salários baixíssimos e sem capacidade de reivindicação. Não é um mar de rosas, há conflitos trabalhistas na China todos os dias, mas de qualquer forma é uma força de trabalho domesticada por longos anos de ditadura maoísta. Eles não estão interessados em conflito com os Estados Unidos porque aplicam excedentes monetários em títulos do Tesouro americano.

ZH – O Brasil não está mais próximo da China do que do restante da América Latina, da África e do Sul e oeste da Ásia?
Oliveira – Está, mas isso não autoriza essa sigla, Brics (Brasil, Rússia, Índia e China, designação para o bloco dos chamados países emergentes). As proporções entre Brasil, China, Índia, Rússia e África do Sul são de uma disparidade espantosa. Só o esforço de transmitir esse fenômeno ao grande público é que os junta. O Brasil está mais próximo de China e Índia do ponto de vista de ter realizado transformações enormes, mas a disparidade com esses países é do tamanho da distância entre a Terra e a Lua. A África do Sul fez uma revolução, porque liquidar com o apartheid foi uma revolução, mas está muito longe de constituir algo como os Brics. Têm muito pouco em comum. A diferença essencial é que você não tem uma força de trabalho desse tamanho. É isso que barateia as coisas. O Brasil não tem cacife para se medir com a Índia e a China porque lhe falta força de trabalho. Temos 200 milhões de habitantes, a China tem 1,3 bilhão, a diferença é colossal.

ZH – Guardadas as proporções, o Brasil passou por um processo análogo aos da China e da Índia, não em 30 anos, mas em 80, a partir da Revolução de 1930. Não estamos ainda vivendo o Ciclo de 30?
Oliveira – Não, não vivemos mais. Está saindo essa trilogia sobre Vargas (Getúlio, de Lira Neto). Estou lendo o primeiro volume, que é muito desinteressante porque trata dos anos de formação. É muito sem interesse para o público brasileiro em geral. Não sou varguista no sentido ideológico, mas Vargas é o único estadista que o Brasil produziu em seus 500 anos de existência.

ZH – Dom Pedro II não foi estadista?
Oliveira – Foi nada. Dom Pedro II era de uma mediocridade espantosa. A gente não diz isso porque tem uma reverência. Podia ser letrado e tudo, mas o que ele fez do ponto de vista de ativar um país deste tamanho? Nada.

ZH – Ele não teve alguma responsabilidade pelo fato de o Brasil não ter se balcanizado depois dos anos 40 do século 19?
Oliveira – Não teve, não. Isso é a nossa versão piedosa. Na verdade, ele reprimiu com uma violência que parece estar fora da história brasileira.

ZH – Mas Vargas, que o senhor qualifica de único estadista do Brasil, também reprimiu.
Oliveira – Também reprimiu. Essa é uma história comum no capitalismo. Se você tirar a Inglaterra, todos os outros países grandes do capitalismo se firmaram à custa de uma enorme repressão, incluindo os EUA, que não seriam nada sem a cavalaria.

ZH – Os governos Lula e Dilma são declaradamente inspirados no legado de Vargas.
Oliveira – Dizem isso agora. Antes, Lula era antivarguista. Ele não sabe de história um décimo. É um farsante.

ZH – O antivarguismo de Lula não foi influenciado por uma leitura da história que atribuía os fracassos da esquerda antes de 1964 a um fenômeno chamado populismo?
Oliveira – Pode ser, mas só em parte. Primeiro, porque Lula não é muito apegado à história. Lições da história, ele não aprendeu nenhuma. Lula é um descendente dos Bourbons, que não aprendeu nada nem esqueceu nada dos últimos 50 anos. Ele era antivarguista porque São Paulo é antivarguista. É uma coisa difícil de entender, e ao mesmo tempo há uma via de entendimento, porque a cabeça de São Paulo foi feita pelo Estadão (o jornal O Estado de S.Paulo). Houve uma conjunção perversa do Estadão, do Partido Comunista – que assimilou o populismo ao fascismo, o que é um equívoco teórico e prático enorme, porque o fascismo foi a exclusão da classe trabalhadora da política, e o populismo foi a sua inclusão, por uma via autoritária, mas foi – e disto aqui (a USP). A cabeça de São Paulo foi feita assim.

ZH – Lula nunca foi de esquerda?
Oliveira – Nunca. Conheço Lula de perto, ou conheci, porque faz muito que me afastei. Ele nunca foi de esquerda e diz isso. Lula foi levado por um grande movimento nacional democrático, ao qual a gente dá pouco relevo porque a esquerda tem mania de reverenciar o próprio umbigo. Foi o movimento democrático brasileiro que levou os trabalhadores para esquerda. Um movimento conduzido por figuras que davam sono quando falavam, como Ulysses Guimarães. Conduzido por Pedro Simon, que era líder do MDB quando o MDB não valia muita coisa no Brasil.

ZH – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?
Oliveira – Fernando Henrique foi meio papagaio de pirata, viu? Eu o conheço bem porque trabalhei com ele 12 anos. Não é que ele fosse falso nem nada disso, mas ele estava ali como eu poderia estar. Na verdade, as lideranças políticas eram outras. Era o que, na época, chamava-se MDB Autêntico.

ZH – Mas a ditadura prendeu Lula e o enquadrou na Lei de Segurança Nacional.
Oliveira – E daí? Me prendeu também, e por isso eu sou herói? Me prendeu durante 50 dias aqui em São Paulo, me prendeu durante 50 dias em Pernambuco, e nem por isso eu liderei coisa nenhuma. Me tratou não com regalias, como Romeu Tuma (delegado do Dops de São Paulo em 1980) tratou Lula. Me tratou no pau-de-arara, no cacete para eu revelar coisa que eu nem sabia o que era. Foi o movimento democrático brasileiro, isso precisa ser revisto com urgência. Não foi o sindicalismo, não é verdade. O sindicalismo tornou-se um símbolo quando conseguiu penetrar numa classe que estava vivendo um milagre econômico e que tinha aumentos salariais devido a sua auto-organização. Que não era voltada para o resto da sociedade, era voltada para ela mesma. É preciso dizer as coisas pelo nome delas: Lula não é, nunca foi antiditadura. Foi levado a ser, foi empurrado pelo movimento democrático. Não me refiro ao MDB: o movimento democrático fomos todos nós que, de alguma maneira, por atos variados, nos colocamos contra a ditadura, empurrando-a no canto da parede.

ZH – O senhor escreveu sobre o Brasil, em 2003: “Espera-se que não resolva se autoclonar, perpetuando o ornitorrinco”. O que vai acontecer com esse bicho?
Oliveira – Vai seguir sendo ornitorrinco. Não há nenhuma transformação radical na sociedade brasileira à vista. Até onde a vista da ciência social, que às vezes é muito limitada, alcança. Nenhuma revolução foi prevista por nenhuma ciência social, nem pelo marxismo, que é a mais poderosa delas porque quer exatamente subverter. Revolução é uma irupção na história; se fosse prevista, não ocorreria. O Brasil está acomodado num patamar de capitalismo, e ninguém está insatisfeito. Ninguém reclama mais reforma agrária. Por quê? Será que nos avacalhamos todos? Não. É preciso ser materialista até a raiz. Não se reclama porque, na sua mesa, a reforma agrária não está mais. Talvez no Rio Grande do Sul ela nunca estivesse, mas o Rio Grande foi exatamente o lugar onde o tema da reforma agrária foi muito forte. Por que não está na nossa mesa? Porque o Brasil é o segundo maior produtor mundial de grãos e o primeiro exportador mundial de carnes. Então o capitalismo venceu no campo. Isso é o que nós, da esquerda, temos dificuldade de reconhecer.

Cultura – O capitalismo fez uma revolução agrícola sem fazer uma revolução agrária?
Oliveira – É, o que é muito comum na história. Foram poucos os países que fizeram reforma agrária, e onde houve reforma agrária sem uma força capitalista por trás foi um fiasco. A Bolívia fez duas vezes e foi um fiasco. Os camponeses bolivianos ganharam terra para queê? Para nada, como dizia o poeta Ascenso Ferreira, porque a força revolucionária boliviana estava aplastada. Vai seguir com esse capitalismo que aí está. A comparação com 1930 é equívoca, é o oposto de 1930. Quem comanda as coisas no Brasil é o mercado, não é o Estado. Parece que é o Estado porque a imprensa insiste nisso, mas não é verdade. A Petrobras não é o Estado. É a sexta ou sétima maior empresa do mundo. Isso não é o Estado, ela se rege pelas regras que fazem dela uma grande empresa. Foi o Estado brasileiro que deu o monopólio estatal do petróleo, e com os votos de quem? Com os votos da UDN (União Democrática Nacional, partido de orientação liberal-conservadora, de oposição a Vargas). A UDN votou pelo monopólio estatal do petróleo. O projeto do Partido Comunista admitia a iniciativa privada. Por quê? Os generais voltaram da guerra (a II Guerra Mundial) e viram que um exército sem combustível não vale nada. A Petrobras não é o Estado brasileiro. O Estado brasileiro de vez em quando tem espasmos. Dilma Rousseff demite Sergio Gabrielli para poder botar a pessoa em quem ela confia lá. Isso é absolutamente irrelevante, é uma bobagem. Não é o Estado, é o mercado. O Estado, como a burguesia brasileira, sempre foi débil. E depois as coisas estão muito misturadas, a tal ponto que os trabalhadores estão interessados no êxito desse mercado, via fundos de pensão, onde os trabalhadores são sócios capitalistas. É extremamente complicado você passar a linha que separa os bons dos maus, não tem mais isso. Dona Dilma pode estrebuchar como quiser, ela não vai mudar uma vírgula dessa regra, não. Ela pode até botar aquela mulher (Maria das Graças Foster, presidente da Petrobras) na Petrobras que não muda nada.
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REPORTAGEM POR LUIZ ANTÔNIO ARAUJO | São Paulo / Enviado Especial
FONTE: ZH ON LINE, 09/06/2012

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