domingo, 10 de junho de 2012

A vida como armadilha

KATHRIN ROSENFIELD*

 

Falecido há 70 anos, Robert Musil (1880 – 1942) continua confundindo leitores com sua prosa sóbria e cruel, sob cuja superfície se encontra um mestre na habilidade alemã de tirar proveito da reflexão filosófica para fins poéticos

Robert Musil entrou no mundo literário em 1906 – duas décadas antes do romance O Homem sem Qualidades, pelo qual ele é lembrado mundialmente. A primeira obra (O Jovem Törless, Nova Fronteira, 1996), escrita aos 25 anos, fez, de imediato, considerável sucesso. Considerado “o mais sexual” dos escritores da então extravagante cena artística vienense e o mais agudo e inteligente expoente da intelectualidade de Viena, ele parecia estar destinado a um papel de liderança e, por um curto período, permitiu-se sonhar com um Prêmio Nobel para o futuro. Mas os anos seguintes revelaram que o apreço do público repousava num equívoco – equívoco esse que persiste talvez até hoje. É fácil perder-se nos atrativos de superfície de Musil: a ironia espirituosa dos seus retratos sociais e culturais é ímpar e o gosto atual pode se deixar seduzir pelo tom sóbrio e, às vezes, quase cruel, com o qual ele faz o leitor adentrar nos labirintos afetivos e eróticos dos seus personagens.

Muitos leitores da época e de hoje compreenderam certos personagens estupendos como alegorias de ideias ou problemas do início do século 20. Assim, o público encanta-se com as brilhantes metáforas da decadência espiritual, mental e emocional do Império Austro-húngaro em O Homem sem Qualidades. Ou vê em Törless tão somente a história de um personagem marginal, Basini: “A história de um rapaz num internato que se torna, devido a um furto, o escravo de seus camaradas e dos instintos sádicos destes. A juventude espiritual antes da guerra mundial via nas errâncias e torturas deste rapaz as suas próprias e o livro tornou-se, para eles, uma bíblia.” Assim escreve Egon Erwin Kisch, (TB II, 204) no necrológio de Musil, em 1942. Mas já o romance da juventude coloca um leque de problemas bem mais complexos que a alegoria da vitimação que lhe assegurou o primeiro sucesso. Musil põe em contraste cinco adolescentes entre 15 e 18 anos que se debatem, cada um a sua maneira, com o vazio e as dúvidas, os tédios e os desejos desse momento de transição. São diferenças de disposição e de classe (quase de “casta”) que tornam o jovem e profundamente religioso príncipe um amigo interessante e exótico para o menino inteligente e racional de classe média que é Törless. A amizade efêmera se dissolve, e Törless é recuperado por dois colegas mais velhos – Beineberg, o esnobe que se fecha na redoma esotérica de vagas sabedorias indianas e nietzschianas; Reiting, o intrigante nato que manipula e intimida seus colegas com o fino faro do ditador; o frívolo e sensual Basini ensaia bravatas bem além dos seus meios financeiros e intelectuais e ele nutre uma conivência ambígua, erótica com os colegas que, inadvertidamente desliza para prazeres e sofrimentos sadomasoquistas. Törless procura manter a postura do observador distanciado, mas seu recuo lúcido irá perder a compostura sob os choques aos quais ele se expõe: o furto de Basini abala a certeza da ética cívica (Standesethik), a secreta exploração dessa fragilidade por Beineberg e Reiting, a estranha e desencontrada cumplicidade dos quatros nos rituais do quarto vermelho, e a ambígua aceitação das humilhações por Basini terminam por intimidá-lo. Sua aguda inteligência e a viva sensibilidade estética e ética de Törless começam a mostrar sinais de uma retração para a rígida posição do esteta cauteloso e distanciado. O que Musil trabalha com maestria – já no seu primeiro romance – é o amplo leque de nuanças que tornam difícil o juízo e as decisões. Ele torna tangível a pletora de engodos nas semelhanças e diferenças parciais que criam vínculos oblíquos, indesejados e imprevisíveis, unindo personagens muito diferentes em torno de ideias e sentimentos vagos que cada um entende de uma maneira muito diferente das dos demais. Esses (des)entendimentos que levam sorrateiramente para caminhos perigosamente contrários às intenções e aos propósitos conscientes, já anunciam a “ação paralela” de O Homem sem Qualidades: nesse último romance, a busca pela “grande ideia” unificadora é o topos que permite a Musil analisar em detalhe um número estonteante das dissensões comprometendo, sem salvação possível, a integridade da Áustria (e dos seus habitantes) na iminência da guerra mundial – a dissolução da primeira anunciando o que levará à segunda.

Para apreciar Musil – do primeiro ao derradeiro romance –, o leitor tem de ter o fôlego para responder ao desafio de uma obra que é uma gigantesca reflexão sobre a problemática passagem da velha sociedade do Império para estruturas democráticas extremamente frágeis que dificultaram uma mais plena entrada na modernidade. O cosmos da Belle Époque que antecede à I Guerra de 1914-18 é um engodo, um “pretexto”, anota Musil no seu diário: esse mundo burguês já antecipa, no olhar assustadoramente lúcido de Musil, os problemas da Europa autoritária e (proto)fascista que virá depois. Nos equívocos, descuidos e, sobretudo, no preguiçoso laissez faire da velha Europa reacionária, patriarcal, atrasada, Musil localiza as raízes capilares do cipoal venenoso que brotará nos anos 1920 e 30. A velha Áustria é uma imagem de velha Europa, social e economicamente inepta e politicamente relutante diante da abertura aos desafios da sociedade democrática ou, como se dizia, da “sociedade de massas”, com suas metas de emancipação, competição e crescente velocidade.

A ambição de Musil tinha proporções gigantescas (traço frequentemente criticado neste homem reservado e cortante), mas o rigor e a graça da execução estavam à altura de seu espírito exigente, competitivo e quase belicoso: “Reerguer a Áustria (e a Europa) por meio de um romance, quem o teria ousado?” – escreve Elias Canetti com admiração irrestrita nos anos 1960 (O Jogo dos Olhos).”Eu não poderia aqui sequer começar a dizer tudo o mais que essa obra (O Homem sem Qualidades) contém.”

É essa exigência – intelectual, emocional, ética e espiritual – que torna Musil difícil para o leitor: ele nos oferece, e depois retira, os prazeres da ilusão. Seus personagens maravilhosamente vivos e interessantes nos seduzem, mas, assim que nos identificamos, Musil inviabiliza deliberadamente o engodo ficcional. O olhar radiográfico dos romances e novelas de Musil não dá aquela trégua que esperamos da literatura (de entretenimento): nas pessoas amáveis e admiráveis somos obrigados a ver os esqueletos e as úlceras que já tomam forma; e as vilanias e violências tampouco são servidas nos pratos chiques da estética do absurdo, da destruição (ou do consumo): as extravagâncias sexuais, sádicas e fantasmáticas, que hoje consumiríamos com um paladar curtido por um século de efeitos especiais, não vêm, na obra de Musil, isoladas e emolduradas em short cuts. Musil recusou-se a embarcar na estética moderna dos expressionistas, impressionistas e decadentistas que veio a ser a nossa. Pensemos apenas nas temáticas picantes que o editor esperto de Raymond Carver recortou (daí o título Short Cuts – para o desespero do autor) dos romances mais longos e complexos: esse artifício (de marketing) assegurou o sucesso editorial de uma obra reduzida a fragmentos contundentes, rápidos e efêmeros. Musil sabia bem dessa exigência, porém a ignorou em nome da ideia da literatura como vocação, obra-prima, mestria... Ele não quis o sucesso mediado pelos editores ou pelo gosto preexistente do público. Ele insistiu no sucesso (que teria sido merecido) de sua obra, de sua estética concebida como uma contínua reflexão intelectual e ética.
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* Escritora, ensaísta, professora de Letras e Filosofia na UFRGS
FONTE: ZH on line, 09/06/2012
 

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