José Tolentino Mendonça*
A psicanalista Françoise Dolto (1908-1988)
tinha, além do apartamento parisiense, onde viveu e morreu, uma casa de
férias em Antibes, a que chamou “La Soledad”. Podemos imaginar a razão
desse nome dado a um espaço conquistado às rotinas e fadigas, abrigo de
intimidade, criação e silêncio. Um dos seus últimos livros leva também
esse nome. É um volume que recolhe dispersos e uma longa conversa
acerca do lugar da solidão (e, logo, sobre o desejo de comunhão), e
seus efeitos sobre construção inacabada e frágil da vida.
Aí, conversando sobre a solidão, Françoise Dolto
irrompe, inesperadamente, a falar da Trindade. E modo como o faz, não a
partir das categorias catequéticas tradicionais, mas com a linguagem
que ela sempre usou para avaliar e cuidar da vida interior, pode ser
muito iluminante. Na tradição cristã, há a consciência que o discurso
sobre a Trindade nos obriga a trocar as palavras por balbucios.
Agostinho de Hipona, por exemplo, demorou dezesseis anos a concluir o
seu Tratado “De Trinitate”, e ele próprio confessa, com algum humor:
«Ainda jovem, dei início à escrita destes livros: só na velhice dei-os a
público».
A simplicidade de Dolto, recorda-nos, porém, os
benefícios de um modo didático de apresentar a Trindade, o que passará,
certamente, pelo testar de novas linguagens. Para a reputada
psicanalista, o esquema trinitário está próximo da experiência que todo
o sujeito faz na organização do seu mundo interior, na maturação de
si. Ela escreve: «Acho maravilhoso encontrar em Deus a Trindade, essa
relação de amor a três. É algo que encontramos justamente no desejo de
viver de cada um de nós. Assumimos aí o nosso papel no interior de uma
situação triangular: pai, mãe, filho. […] O facto de remontar à
Trindade, ou seja, aos três desejos divinos circulantes, é
extraordinário, pois foi assim que fomos concebidos».
Mas não só. Em todos os «segundos nascimentos»,
sempre que a vida nos impele a um recomeço, seja a partir de feridas e
perdas, seja a partir de encontros e esperanças, o «esquema trinitário»
é-nos imprescindível. «A nossa solidão só pode ser curada quando
expressa criativamente e quando ajudada por alguma outra pessoa, que
cria assim uma situação triangular. Somos dois, conversamos: o terceiro
é a palavra. A palavra, que vem sempre de outro, prova que somos
três».
---------------
* Teólogo português. Escritor. Poeta. Conferencista.
In O hipopótamo de Deus, ed. Assírio & Alvim
In O hipopótamo de Deus, ed. Assírio & Alvim
IMAGEM Santíssima Trindade - Ícone de autor russo
FONTE: http://www.snpcultura.org/renascer_com_a_Santissima_Trindade.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário