Marta Suplicy*
Escreveu Fernando Pessoa:
"Há um tempo em que é preciso abandonar as
roupas usadas,
que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos
caminhos,
que nos levam sempre aos mesmos lugares.
É o tempo da
travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado,
para sempre, à
margem de
nós mesmos".
Travessias são sempre difíceis e revestidas de peculiaridades. Por isso
há os ritos de passagem. Seja para celebrar com um bom choro a saída do
útero materno para a vida, para tolerar os primeiros dias de um luto com
cerimônias religiosas e presença da família e amigos, as festas de
saída da adolescência para a vida adulta, a celebração do casamento, o
trote na universidade...
Essas são as travessias mais visíveis e que tomam formas diferentes
dependendo das culturas. Sempre existiram no decorrer dos séculos.
Mas existem outras. As que estão acontecendo nos costumes, nas regras de
comportamento, nas leis que se aprimoram para acompanhar as mudanças
das novas exigências, nas aspirações dos povos, nos sistemas de governo
que conhecemos e no direito pleno de cidadania. Agora, com a rapidez
desencadeada pela modernidade da comunicação digital globalizada.
Influencia para o bem ou para o mal, com todas as notícias ou reflexões
que mal temos tempo de digerir. Mas a mente vai se acostumando com as
pérolas e o lixo, e o trator da vida segue seu caminho.
São interessantes as contradições que brotam desses processos. Não se
chega à outra margem do rio sem respingos. Há risco de afogamento. O
difícil é fazer o percurso, mas, se vislumbrada a chegada, não há força
que segure a mudança e o crescimento.
Temos visto isso na exigência de transparência nos governos, na busca da
ética nos políticos, no respeito, na tolerância, na sustentabilidade
para o nosso planeta, no direito de os seres humanos se unirem de acordo
com seus desejos, nas famílias se constituírem por amor. E com todas as
contradições de interesses e crenças caminhando em luta feroz.
Entretanto o avanço para um processo civilizatório com mais justiça e
dignidade para todos é inexorável. Assim caminha a humanidade.
Os movimentos de massa, que chegam na outra margem, começam com pessoas
que percebem o novo, algumas que se inquietam, outras que não se
conformam, com os milhares que sonham e que são visionários e com os
poucos que captam o futuro e lançam fagulhas que, de tão fortes,
incendeiam milhares de mentes e suscitam ações. Pessoas que fizeram suas
travessias. Outras que pegam carona.
As certezas e os sonhos a serem descartados são o mais difícil na
travessia. A isto se refere Fernando Pessoa em poucas linhas. Largar as
roupas que nos levam aos mesmos lugares.
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* Psicóloga. Política. Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 02/06/2012
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