Luiz Fernando Dias Duarte*
Foto de família. A despeito do vigor da ideologia do
individualismo na nossa cultura, a experiência analítica antropológica
demonstra que o pertencimento familiar continua sendo uma dimensão
crucial da experiência social. (foto: Francisco Cunha)
Por mais que o valor do ‘indivíduo’ em nossa cultura nos
aponte um caminho de afastamento das redes originais de parentesco, o
pertencimento familiar prevalece. O antropólogo Luiz Fernando Dias
Duarte analisa a questão em sua coluna de junho.
Um dos desafios mais sutis e constantes do saber antropológico é o de
relativizar a representação de pessoa reinante em nossa cultura.
Constituída historicamente sob a forma ideológica do ‘indivíduo’, a
pessoa ocidental porta qualidades ontológicas, simbólicas e pragmáticas
muito peculiares quando comparada com as demais culturas. Essas
qualidades são fundamentalmente as de ‘liberdade’, ‘igualdade’ e
‘autonomia’, essenciais na configuração dos valores que prezamos
hegemonicamente como os melhores e os mais legítimos.
Ocorre-me tratar aqui – até por estar ministrando no Museu Nacional
neste semestre um curso sobre a matéria – das implicações desse tema no
estudo e compreensão do fenômeno da família. Entre as múltiplas ordens
de englobamento das pessoas socialmente situadas, a família tem uma
posição privilegiada, uma vez que não há reprodução humana sem o
concurso de diversas pessoas num círculo relacional mínimo em que a
concepção, o parto e os cuidados às crianças se processam.
A forma de fazê-lo pode variar enormemente – e já tratei da complexidade dos ‘sistemas de parentesco’ humanos em outra coluna recente.
A essa trama que envolve os sujeitos na sua socialização primária
costuma-se chamar de ‘família’. O termo pode abarcar círculos e tipos de
relações muito variados, confundindo-se na nossa cultura com a forma
nuclear que passou a prevalecer no Ocidente desde o final do século 18.
Essa família reduzida a um casal e seus filhos é, assim, um ideal
recente e nem sempre completamente atingido na prática. Sua instituição
foi concomitante com a do próprio individualismo como princípio
estruturante da representação ocidental da pessoa. Essa nova família
deveria ser a mais enxuta possível, justamente para poder se desincumbir
da emergente tarefa de produzir ‘indivíduos’, ou seja, pessoas que se
vissem e se sentissem como livres, iguais e autônomas.
Uma parte fundamental dessa produção ideal passou a ser a percepção
de que a sociedade e seus múltiplos círculos e dimensões não passavam de
um acréscimo conjuntural à realidade básica dos indivíduos. O modelo da
cidadania moderna, concebida como um ‘contrato social’, é uma das
raízes mitológicas dessa representação desde o século 17.
Com isso, a família, por mais que continuasse essencial, também
passou a ser concebida como uma ordem exterior aos indivíduos, sendo
necessário dela se afastar exemplarmente para construir a vida pessoal
própria, a carreira afirmativa no mundo característica de um ser
autônomo. Pelo menos até o momento de constituir uma nova família, com
casamento e procriação; desencadeando outro lance dessa contraditória
condição, com os desafios complexos de preservação da autonomia numa
trama sempre fortemente relacional.
Sacrário original e permanente
A experiência analítica antropológica demonstra, no entanto, que a
relacionalidade intrínseca da família se afirma na vasta maioria das
culturas, prevalecendo sobre as trajetórias e identidades pessoais –
nunca imaginadas como ‘individuais’. E, mais do que isso, demonstra que,
mesmo em nossas sociedades, e a despeito do vigor da ideologia do
individualismo, o pertencimento familiar continua sendo uma dimensão
crucial da experiência social.
A despeito do vigor da ideologia do
individualismo, o pertencimento familiar continua sendo uma dimensão
crucial da experiência social
As palavras para descrever essas afirmações são muito traiçoeiras.
Falar de pertencimento, de englobamento, de relacionalidade transmite
uma imagem fraca da ideia central em jogo. Parecem sugerir apenas que os
indivíduos, autônomos como são, não podem prescindir dessas outras
relações e integrações e que o fazem por força de circunstâncias
relativamente fortuitas e frequentemente abusivas. E, por isso mesmo,
algumas obras antropológicas importantes insistem numa demonstração mais
exata do processo que se encontra aí em jogo.
Em artigo recente, o importante antropólogo estadunidense Marshall
Sahlins reaviva a consciência dessa condição relacional profunda da vida
familiar, revisando uma ampla gama de testemunhos etnográficos, de
estudos sobre outras sociedades. Propõe ou retoma de outros autores
diversas expressões que podem trazer à luz a importância dessa
relativização da condição de ‘indivíduos’ na trama familiar. Fala de
‘mutualidade de existência’, de ‘pertencimento intersubjetivo’ e de
‘participação intersubjetiva’, buscando assim sublinhar o fato de que as
pessoas encontram-se sempre imersas em uma dimensão identitária,
experiencial, que ultrapassa de muito sua eventual condição de
‘indivíduos’: a da família ou parentesco.
O ponto também é explorado pelo antropólogo português João de
Pina-Cabral, a partir de sua rica trama de estudos diretos em Portugal,
Macau, Brasil e na África meridional. A locução que nos propõe é a de
‘identidades continuadas’, que encontra e descreve, não em longínquas
sociedades tribais, mas no coração mesmo da vida urbana metropolitana
moderna. Ele sublinha com mais nitidez a dimensão temporal, de comum
pertencimento entre diversas gerações.
Sahlins faz bem em evocar um personagem fundamental da história do
pensamento antropológico, o filósofo e sociólogo francês Lucien
Lévy-Bruhl, que, nas primeiras décadas do século 20, investiu um grande
esforço reflexivo na demonstração de que o pensamento humano não opera
apenas de acordo com os preceitos da lógica formal da tradição
ocidental, mas que, na verdade, se funda em princípios de construção das
identidades e dos valores altamente integrados, englobantes, a que
chamou de ‘princípio da participação’.
Mesmo onde reina hegemônica a visão de mundo
moderna, racionalizada e individualizada, uma relacionalidade
institutiva, principial, sempre está em ação
Enfatizava com isso que, mesmo onde reina hegemônica a visão de mundo
moderna, racionalizada e individualizada, uma relacionalidade
institutiva, principial, sempre está em ação. Cada ente, ação ou valor
se encontra sempre entranhado em ordens de significado que os
ultrapassam e que não obedecem à delimitação dos conceitos nítidos e
unívocos.
‘Nós’ constituímos os ‘nós’ dessa intensa trama de papéis,
experiências e significados que constituem as famílias. Por mais que nos
representemos autônomos ou autonomizados em relação a elas, sempre
portamos uma dimensão de participação, pertencimento, englobamento e
entranhamento que nos mantêm no interior daquela configuração.
Em outro texto, cheguei mesmo a explorar as conotações religiosas de
que o pertencimento pode frequentemente se cercar, na referência a esse
sacrário original de onde nunca saímos inteiramente. Essa característica
não é apenas um efeito sentimental entre outros; é uma força
fundamental que deve ser analisada e compreendida em seus permanentes
efeitos sobre a vida social como um todo.
Sugestões para leitura
Carsten, Janet (org.) Cultures of relatedness: New approaches to the study of kinship. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
Duarte, Luiz F. D. ‘O sacrário original - Pessoa, família e religiosidade’. Religião & Sociedade, vol. 26, n.2, p.11-40, 2006.
Duarte, Luiz F. D. ‘Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família’. In: Ribeiro, Ivete e Ribeiro, Ana Clara (orgs.). Família e sociedade brasileira: Desafios nos processos contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1995.
Pina-Cabral, João de. O homem na família: Cinco ensaios de antropologia. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003.
Sahlins, Marshall. ‘What kinship is (part one)’. Journal of the Royal Anthropological Institute, vol.17, n.1, p.2-19, 2011.
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* Antropólogo. Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de JaneiroFonte: http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/sentidos-do-mundo/nos-na-familia, 01/06/2012
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