sábado, 2 de junho de 2012

A resistência artística no País

Valores: uma cédula de dólar carimbada por Cildo Meireles (Rio, 1948) com frase ‘anti-EUA’ (1970) - Wilton Montenegro/Cortesia do artista
Wilton Montenegro/Cortesia do artista
Valores: uma cédula de dólar carimbada por Cildo Meireles (Rio, 1948) com frase ‘anti-EUA’ (1970)

Professora de história da arte, Claudia Calirman analisa em livro que será lançado este mês nos EUA os caminhos da produção de três artistas durante os anos de repressão no Brasil

NOVA YORK - A curadora e historiadora de arte carioca Claudia Calirman acaba de se tornar vizinha do dissidente cego chinês Chen Guangcheng, que se instalou no mesmo complexo de edifícios do bairro nova-iorquino do Greenwich Village, onde ela mora. Se forem apresentados, é fácil prever um tema da conversa: como resistir com integridade a uma ditadura? A resistência que interessa à carioca é a dos artistas plásticos atuantes no Brasil, especificamente três nomes que seguiram carreiras consagradas; eles são o foco de Brazilian Art Under Dictatorship - Antonio Manuel, Artur Barrio, and Cildo Meireles (Arte Brasileira sob a Ditadura: Antonio Manuel, Artur Barrio e Cildo Meireles), livro que sai no dia 29 pela Duke University Press. Claudia Calirman é professora de História da Arte do John Jay College of Criminal Justice, em Manhattan. A ideia da obra veio de uma série de conversas com o crítico Frederico Morais, um curador que não se ausentou do País durante a ditadura. “Foi ele que me chamou a atenção para a narrativa individual dos três”, lembra a autora.

Claudia não romanceia a trajetória dos artistas, que analisa no período entre 1968 (AI-5) e 1975. As ações dos três, escreve, eram mais mundanas do que heroicas. O heroísmo, diz, reside na distância que eles percorreram com a arte e do que realizaram com ela. “Eles partiram de um começo que incluía nomes como Hélio Oiticica e Lígia Clark e atravessaram o pior momento da ditadura”, comenta.

Leia a seguir a entrevista exclusiva de Claudia Calirman ao Sabático.

Você destaca, no livro, a escassez de documentação jornalística sobre as ações dos artistas plásticos da época, por causa da censura.

Sim, é um ponto importante porque você vê muita gente perguntar “então, já viu uma Coca-Cola do Cildo Meireles? Viu o trabalho do Antonio Manuel nas bancas de jornal?” Não havia cobertura convencional. E os próprios artistas viam o que faziam como ações rápidas. Não é como hoje, quando há tanto trabalho performático, consciente da câmera, com a expectativa do registro.

Sua tese é que a resistência representada por este grupo de artistas plásticos se situava longe do dogma ideológico e do nacionalismo?


Não havia um movimento organizado. Esses artistas não se agruparam. Faziam sua arte e, de vez em quando, expunham juntos. E eram censurados juntos. Mas não há um rótulo, como “geração AI-5”. Acho que o teatro foi mais organizado, até ser violentamente perseguido no período do AI-5. Tivemos a Tropicália na música. Acho que as artes visuais foram menos perseguidas porque eram menos expostas.

Você cita outro marco, o boicote à Bienal de São Paulo, em 1969, que nem foi muito percebido pelo público por causa da censura. Por que acha que o boicote teve outro efeito?

O boicote internacional começou em Paris, com o critico e curador Pierre Restany, se espalhou pela Europa e chegou aos Estados Unidos. Foi um esvaziamento, que ficou conhecido com a Bienal do Boicote. Por isso mesmo, outros eventos locais, como o Salão da Bússola, começaram a ter mais importância, já que, até então, a Bienal dominava como vitrine do que acontecia na arte.

Coloque em perspectiva o trabalho do Antonio Manuel, que fez a performance em abril de 1970, no MAM-Rio, quando estava nascendo a body art.

Vejo mais o ato do Antonio Manuel de tirar a roupa no MAM naquele dia como um gesto espontâneo e não como uma estratégia de expressão. Ele - seu corpo - havia sido recusado pelo Salão de Arte Moderna. O fato de que ele apresentou o próprio corpo como obra de arte é mais importante do que o gesto de tirar a roupa. Como ficar nu provocou escândalo, ficamos com a memória de ser o fato relevante. Por ele ter tentado se inserir na exposição como uma obra, este momento é que se relaciona com a body art.

Em 2010, causou grande repercussão aqui a instalação da Marina Abramovic, em que ela passava o dia sentada no MoMA e convidava o visitante a se sentar à sua frente e fixar o olhar no seu. Qual a diferença que o contexto político faz para o artista quando a ousadia estética encontra o estado policial?

É um aspecto importante. Em momentos de repressão, a arte acaba por reinventar formas de expressão. É de novo a frase do Oiticica, “da adversidade vivemos”. E a produção artística enfrenta um obstáculo maior na autocensura, quando a criatividade do artista entra em conflito com sua autopreservação. Você vê exemplos de arte mais efêmera em situações de restrição à liberdade, como na União Soviética e China. Mas quero notar que a Marina teve que lidar com a questão institucional, corporativista do museu e fez várias concessões para fazer a exposição. E esta forma de restrição tende a ser mais branda no Brasil.

E como você vê a trajetória do Antonio Manuel saindo dos anos da ditadura?

Não quis, intencionalmente, fazer a ponte com os dias de hoje; espero que outros sigam com essa narrativa. É um ótimo pintor que se interessa pelas questões da pintura. Livre da repressão política, ele evolui para a abstração geométrica que vemos hoje.

O aspecto efêmero da obra do Artur Barrio é um desafio maior ainda para a memória do trabalho dele naquele período?

Vamos lembrar que, além de ter representado o Brasil na última Bienal de Veneza, ele ganhou, em 2011, o prêmio Velázquez de Artes na Espanha, que mostra que passou a ter reconhecimento internacional. O desafio para quem pesquisa é o fato de o Barrio não ter interesse em preservar o trabalho. Faz questão de destruir e não acredita em reprodução da obra. Acha que uma foto da obra deve ser identificada como “registro” do trabalho. Não quer que seu trabalho seja distorcido por certas formas de representação.

Um ponto em comum entre os três artistas é a juventude deles, quando é decretado o AI-5. Barrio com 23 anos, Manuel, 21, Meireles, 20. Há algo em comum na memória que eles têm daquele tempo?


São três personalidades muito distintas, que passaram por processos de evolução diferentes. Mas todos olham para aquele momento, inequivocamente, como o passado. O artista sempre quer se firmar no presente. Na verdade, foi um pouco difícil trazer a conversa para aqueles anos que, em parte, gostariam de esquecer.

E não têm uma ideia romântica do período.

Não, veem como um momento que tiveram que atravessar, fazendo uma arte tão marginal. Não era pintura, escultura, não se vende. Como sobreviver? Senti que precisam manter certa distância daquele tempo.

Entre os três, o Cildo Meireles é o que articula mais intelectualmente a questão da história e da identidade do Brasil, certo?

Com certeza. Acho que o Cildo se preocupa com a questão da trajetória narrativa da arte brasileira. Ele valoriza artistas como Oiticica, Ligia Clark, o neoconcretismo, mesmo não fazendo parte de movimentos, porque morava em Brasília. E ele veio para Nova York no fim dos anos 60. Cildo acha importante criar uma genealogia contínua da arte brasileira. Acho que o Manuel e o Barrio são mais interessados em rupturas. O Manuel era muito amigo do Hélio Oiticica e teve uma relação de trabalho com ele, que vem mais da arte construtivista, do Dada.

Você lembra no livro como a arte conceitual criou uma resposta à ditadura.


Sim, mas havia uma diferença de expressão conceitual. Nos Estados Unidos, era uma arte mais ligada à linguagem, a palavras. No Brasil, você toma como exemplo a Coca-Cola do Cildo Meireles, é mais uma estratégia, como também era a distribuição dos dólares. Os artistas tiveram que procurar estratégias conceituais para se opor ao regime, evadindo a censura. Aquela nota de 1 cruzeiro com a inscrição “quem matou o Herzog?”. Todo mundo sabia que o Vladimir Herzog tinha sido assassinado na prisão. A pergunta é pura retórica, para espalhar uma dupla consciência.

Há uma tendência nos Estados Unidos de romantizar a experiência do perseguido por um regime autoritário. De exacerbar a condição de vítima. E você afirma que a criatividade desses artistas não existia por causa da ditadura.


Achei importante dizer isso. Não se pode elevar um artista por causa do contexto político. Lembro do samba do Chico Buarque, Apesar de Você. A arte efêmera estava acontecendo em outros países. No Brasil, ela adotou um caráter mais político, mas havia a emergência de uma linguagem internacional, na performance, na body art, no conceitualismo. E sim, apesar da ditadura, eles continuavam a produzir, mas não por causa dela.

BRAZILIAN ART UNDER DICTATORSHIP

Autor: Claudia Calirman
Editora: Duke University Press (Importado, 264 págs., R$ 312,20)

Leituras afins

BRUTALITY GARDEN: TROPICÁLIA AND THE EMERGENCE OF A BRAZILIAN COUNTERCULTURE,
de Christopher Dunn (Importado, University of North Carolina Press, 276 págs., R$ 86,80). Uma história da Tropicália.

CONCEPTUALISM IN LATIN AMERICAN ART: DIDACTICS OF LIBERATION, de Luiz Camnitzer
(Importado, University of Texas Press, 364 págs., R$ 80,80). O artista conceitual alemão mostra como a arte conceitual latina se distinguiu daquela feita na Europa e dos EUA.
ARTE&POLÍTICA, org. de Annateresa Fabris (C/Arte, 198 págs., R$ 36).

CULTURA POSTA EM QUESTÃO/VANGUARDA E SUBDESENVOLVIMENTO, de Ferreira Gullar (José Olympio, 304 págs., R$ 43).
------------------
Reportagem por Lúcia Guimarães - O Estado de S.Paulo, 01/06/2012

Nenhum comentário:

Postar um comentário